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Jornalismo

Na EMEF Monteiro Lobato, em Novo Hamburgo, a 47 quilômetros de Porto Alegre, os alunos do 6º ano da professora Daiana Campani de Castilhos já sabem que segunda-feira é dia de ler jornal. Desde que o diário local firmou parceria para entregar exemplares uma vez por semana para os estudantes da rede pública da cidade, ela utiliza os gêneros textuais presentes no periódico como objeto de estudo para desenvolver as competências de leitura e escrita da garotada. Põe em prática, dessa maneira, a máxima "Ler se aprende lendo. Escrever se aprende escrevendo", contra a qual é difícil alguém argumentar. No entanto, Delia Lerner alerta, em Ler e Escrever na Escola: o Real, o Possível e o Necessário (120 págs., Ed. Artmed, tel. 0800 703 3444, 49 reais), que "apesar de esses lemas estarem, hoje, muito difundidos, sua concretização na atividade cotidiana de sala de aula é ainda pouco frequente".

Modalidades organizativas

  • Projetos - O educador conduz uma série de propostas relacionadas em função de um produto final.
  • Sequências didáticas - Possuem etapas de menor duração, que se concentram no aprofundamento de determinado aspecto de um assunto estudado. Cada fase prepara a turma para o que será solicitado no momento seguinte.
  • Situações independentes - São pontuais e servem para consolidar os conhecimentos já adquiridos, seja na forma de uma produção - como escrever uma carta para um colega -, seja de um momento expositivo para a sistematização dos conhecimentos estudados.
  • Atividades permanentes (ou habituais) - Ocorrem com uma frequência constante (todos os dias, semanal ou quinzenalmente), propiciam um contato maior com os gêneros e ajudam a consolidar os hábitos leitores e escritores.

Para contornar essa limitação e aproximar a prática escolar de situações rotineiras de uso da língua, a pesquisadora argentina recomenda planejar as aulas de modo a contemplar a estruturação do trabalho em projetos, sequências didáticas, situações independentes e atividades permanentes (entenda as diferenças no quadro ao lado). "Com base na definição dos objetivos de aprendizagem de cada ano, é possível estabelecer de que forma os conteúdos serão apresentados nas diferentes modalidades organizativas ao longo de toda a escolaridade, considerando as oportunidades em que podem ser tratados e as várias perspectivas para a aprendizagem", recomenda Sandra Medrano, coordenadora pedagógica da Comunidade Educativa Cedac, na capital paulista. 

Andréa Luize, coordenadora pedagógica do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISE Vera Cruz), em São Paulo, ressalta que, quando um projeto termina, a conexão do aluno com determinados textos também acaba e isso faz com que, aos poucos, essa aprendizagem se perca. "As atividades permanentes permitem esse contato mais perene que ajuda na assimilação dos conteúdos", afirma. Com esse olhar, a rotina se torna algo positivo e colabora para a evolução da turma.

Daiana seguiu essa linha e levou um hábito para a sala de aula. Quando começou o trabalho com o 6º ano da EMEF Monteiro Lobato, a primeira providência foi fazer uma leitura coletiva para explicar como o jornal está estruturado. Dessa  abordagem inicial surgiu a decisão de direcionar o olhar para a interpretação das charges. "Eles gostavam delas, mas muitos não conseguiam entendê-las completamente." 

Um equívoco frequente era tomar esses textos por histórias em quadrinhos, sem diferenciar charge e tirinha. Diante dessa constatação, ficou clara a necessidade de explorar a relação delas com os diferentes gêneros presentes no jornal. Para terminar o diagnóstico, Daiana propôs duas atividades. Na primeira, a turma analisou uma imagem em que o personagem Pateta, da Disney, faz uma trapalhada na execução dos hinos nacionais durante uma partida de futebol, algo que de fato havia acontecido. Ao perguntar sobre o sentido do texto visual, obteve respostas como: "O jogo estava tão lento que ele acabou dormindo" ou "Ele não sabia cantar o hino, aí botou o CD", o que mostrava que eles não tinham feito a relação com o episódio real. A segunda proposta consistia na criação livre de uma charge sobre a Copa do Mundo. As dúvidas durante o processo ficaram evidentes em falas como "Charge é um quadro só?" e "Não tem pessoas falando?". "Eles tomavam a charge apenas como um desenho, não tinham ideia que se tratava de um comentário muitas vezes marcado pelo humor", conta a professora. 

Para iniciar a semana, a turma de Novo Hamburgo lê jornal e comenta as charges | Fotos: André Feltes

A partir de então, os momentos semanais foram dedicados à análise sistemática da produção dos dois chargistas locais. Em esquema de rodízio, os alunos ficavam responsáveis por recortar diariamente o jornal recebido pela escola e colar o material em dois cartazes, um para cada autor. No dia em que todos recebiam os exemplares do periódico, junto com a análise do que foi coletado ao longo da semana, a turma preenchia uma ficha em que tentava relacionar cada imagem com uma notícia. "Na leitura de charges, utiliza-se muito a capacidade de inferência para entender a mensagem não verbal. Para isso, é preciso considerar que até o local onde elas aparecem no jornal tem uma função", comenta Célia Prudêncio, formadora do programa Ler e Escrever, da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. 

No decorrer do ano, foram estudadas ainda a tirinha e as reportagens. No final, muitos se tornaram leitores assíduos de jornal. "Ler notícias todos os dias e comentar sobre elas é essencial para o aluno entender criticamente o mundo a sua volta e saber como interpretar esse tipo de texto. Isso não acontece trabalhando apenas uma vez. Ele só cria essa percepção se isso for permanente", avalia Cláudio Bazzoni, professor do Colégio Santa Cruz e da pós-graduação da Universidade Padre Anchieta (Unianchieta). Com a turma de Daiana, funcionou. Antes ela tinha de explicar o sentido dos chistes, agora os adolescentes a procuram para comentar as charges da semana.

A biblioteca vai até os alunos

No clube do livro, em Bonito, a classe e a professora se acomodam para ler | Foto: Sthel Braga

Há algum tempo, Lucivane Fernandes de Souza e toda a equipe da EM 13 de Junho, em Bonito, a 425 quilômetros de Salvador, se perguntavam como fazer a garotada tomar gosto pelos livros. Apesar de a escola ter um acervo de obras literárias, a biblioteca era pouco utilizada. Raramente alguém fazia um empréstimo. Em busca de alternativas, a professora, responsável pela área de Língua Portuguesa, e a coordenadora pedagógica Ivone Mina Cedro resolveram fazer um curso de pós-graduação na Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e estudar sobre o desenvolvimento de iniciativas de fomento à leitura. 

"Ler notícias todos os dias e comentar sobre elas é essencial para o aluno entender criticamente o mundo a sua volta e saber como interpretar esse tipo de texto. Isso não aconce trabalhando apenas uma vez."

CLÁUDIO BAZZONI,
professor da Unianchieta

Surgiu, então, a ideia de transformar a sala de aula em um espaço dedicado aos livros. Uma vez por semana, as carteiras do 6º ao 9º ano cedem lugar a tapetes, pufes e almofadas para que a turma
possa sentar de modo mais confortável e dar asas à imaginação. Distribuídas sobre a mesa, algumas obras previamente selecionadas pela docente podem ser escolhidas com liberdade. Na porta da sala, um cartaz pede silêncio aos passantes. Os dez minutos finais da aula são reservados para a tomada de breves notas sobre o que mais chamou a atenção no trecho lido. Essas anotações servem de guia para cada um contar o que mais agradou, em rodas de conversa mensais. Ao final do processo, todos podem escolher novas obras. A formadora Célia comenta que não é preciso que
todos tenham finalizado a leitura para poder comentá-la. Afinal, repetimos esse comportamento no dia a dia. É muito comum conversar com alguém sobre um livro que ainda estamos lendo.

Apesar da empolgação inicial - ou justamente por causa dela -, a iniciativa não decolou de imediato. No começo, a informalidade do ambiente foi interpretada pela classe como um momento propício para brincadeiras e descontração. "O primeiro encontro foi uma algazarra. Eles fizeram de tudo, menos ler", lembra Lucivane. Para acalmá-los e dar o exemplo, a docente leu trechos de uma das obras disponíveis. Além de serenar os ânimos, essa atitude também tem propósito pedagógico, uma vez que a professora serve de modelo para os estudantes.

"Participando desse tipo de situações, as crianças estão se formando como leitores e se nutrindo de palavras, ideias e formas que incidirão positivamente na elaboração de suas produções escritas", afirma a pesquisadora argentina Ana María Kaufman em Leer y Escribir: El Día a Día en las Aulas (256 págs., Ed. Aique, sem tradução para o português). Com o passar do tempo, a agitação foi deixada de lado. "No clube do livro, eles desenvolveram o comportamento leitor, aprenderam a tomar notas, melhoraram a oralidade e criaram gosto pela leitura", comemora Lucivane.

Contos de terror para perder o medo

 

A cada sexta-feira, o 8º ano se aventura na produção de um gênero em São Caetano do Sul | Foto: Raoni Maddalena

O planejamento de Christiane Teresa Haydu para o 8º ano da EMEF Professor Rosalvito Cobra, em São Caetano do Sul, região metropolitana de São Paulo, previa a realização de um projeto que resultaria na produção de uma revista digital. Mas, nas primeiras semanas de aula, ela percebeu que deveria reavaliar a decisão. "Eles ficavam muito apreensivos sempre que tinham de produzir algum texto", recorda. Ao conversar com a moçada, ela notou que a resistência vinha do temor de não saber escrever adequadamente e esse receio decorria da falta de prática com textos autorais.  

"Se há um projeto sendo realizado em algum gênero, o professor pode direcionar por um período o trabalho para isso. A ideia é sempre usar as atividades permanentes a serviço do que se pretende abordar."

ANDRÉA LUIZE,
coordenadora pedagógica do ISE Vera Cruz

A solução foi adiar para o último trimestre o projeto da revista e concentrar os esforços em um momento semanal dedicado à leitura e à escrita de diferentes materiais. Cláudio ressalta que é difícil para o professor definir quais atividades permanentes privilegiar no planejamento. Antes de decidir isso, assim como Christiane fez, é importante que o docente realize um diagnóstico e conheça melhor o grupo.

Para estimular a classe sem assustá-la com desafios ambiciosos demais, a professora optou por começar com propostas mais simples e ir aumentando de forma gradativa a extensão e complexidade. Nos primeiros encontros, a turma leu notícias e escreveu novos títulos para elas. Toda sexta-feira, uma nova sequência era feita, com apreciação, leitura e produção de texto. "Se há um projeto sendo realizado com algum gênero, o professor pode direcionar por um período o trabalho para isso. A ideia é sempre usar as atividades permanentes a serviço do que se pretende abordar e colaborar para que os alunos usufruam do prazer de ler", diz Andréa, do ISE Vera Cruz.

Depois da reescrita de títulos, a classe de Christiane passou a estudar crônicas. Para apresentar o assunto, a docente optou por fazer um recorte temático com textos que abordassem os dilemas próprios da adolescência, como os que estão no livro Porta do Colégio e Outras Crônicas (Affonso Romano de Sant?Anna, 128 págs., Ed. Ática, tel. 11/4003-3061, 37,50 reais). Seguiu-se uma troca de ideias sobre as características do material, os assuntos levantados e a opinião de cada um sobre eles. Os alunos foram orientados a tomar notas para redigir um comentário sobre as questões suscitadas pelo debate. Esse foi também o momento de chamar a atenção sobre as especificidades das crônicas. Aí, chegou a hora de escrever. 

Animada com o resultado, a garotada sugeriu abordar, na sequência, um tipo de narrativa apreciada por todos: histórias de terror. Christiane viu ali a oportunidade de trabalhar com textos mais longos. Depois de expor as origens desse tipo de literatura, ela os colocou em contato com os contos. No livro Histórias para Não Dormir (vários autores, 152 págs., Ed. Ática, tel. 11-4003-3061, 25 reais), eles conheceram obras de escritores como Edgar Allan Poe (1809-1849), Machado de Assis (1839-1908) e Pedro Bandeira. As propostas evoluíram da criação de novos finais para as narrativas para a adaptação deles como história em quadrinhos e, por fim, a escrita de um conto de própria autoria. Essa progressão proporcionou uma aproximação gradual, que permitiu a apropriação das particularidades desse gênero textual. Célia, do programa Ler e Escrever, destaca a importância de deixar as aulas expositivas de lado e fazer um mergulho no estudo do gênero antes de propor produções. "Depois, deve-se trabalhar os procedimentos escritores, ou seja, planejar, textualizar, revisar durante o processo e revisar no final".

Todo dia, quase sempre igual

Em São Paulo, a agenda vai para o quadro todo dia e é lida em conjunto com as crianças | Foto: Raoni Maddalena

Nas salas de alfabetização, encarar os momentos de organização da rotina da aula como atividades permanentes pode trazer um duplo benefício. Comunicar por escrito os afazeres diários, por exemplo, favorece o desenvolvimento da autonomia das crianças e ainda fornece uma poderosa fonte de consulta. "A ideia é que os alunos, de tanto verem essas palavras, possam utilizá-las como apoio em outras situações de escrita", afirma Beatriz Gouveia, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá, em São Paulo. Ciente disso, a primeira atitude da professora Eveline Oliveira da Silva, da EE Maria do Carmo Campos Ferreira, em São Paulo, ao entrar na sala do 1º ano é escrever no quadro a programação do dia. 

"Existe uma série de ações simples do dia a dia que docentes podem potencializar para promover a refexão sobre a escrita."

CÉLIA PRUDÊNCIO,
formadora do programa Ler e Escrever

Essa prática estende-se por todo o ano, mas as intervenções vão se diversificando. No início do período letivo, quando boa parte dos pequenos ainda não sabe ler de forma convencional, ela escreve a lista no quadro e analisa junto com eles. À medida que vão se apropriando do sistema de escrita, os pequenos são convidados a tentar ler. "Eu sempre chamo alguém e pergunto onde ele acha que está escrito recreio, por exemplo. Quando a criança acerta, peço para ela falar por que acha isso." Se necessário, a docente levanta questões como "com que letra começa essa palavra?" ou "que palavras começam com essa letra?".

"Outra possibilidade é a escrita colaborativa, na qual pede-se para que cada aluno escreva um tópico da lista no quadro e depois a professora propõe uma discussão sobre esses temas", sugere Beatriz. Célia ainda destaca algumas situações recorrentes que também são aliadas interessantes, como a leitura da lista de histórias da semana ou da relação com os nomes dos ajudantes do dia. "Existe uma série de ações simples do dia a dia que os docentes podem potencializar para promover a reflexão sobre a escrita." 

Seja nesse contato inicial com o sistema alfabético, seja na produção e interpretação de textos mais complexos, as possibilidades são inúmeras e não há uma fórmula pronta. Mas, à medida que o processo de escolarização avança, é comum que as atividades permanentes percam espaço. Com um currículo cada vez mais extenso, fica difícil para o professor reservar muito tempo para uma mesma prática e costuma-se considerar o que já foi feito uma ou duas vezes como missão cumprida. "São tantos temas, que o docente opta por trabalhá-los de uma maneira mais rápida. Ele precisa dar conta de certos assuntos para que o colega do ano seguinte possa continuar dali. Isso é um problema", diz Cláudio, da Unianchieta.

Para assegurar que o foco seja mantido, Lerner dá uma singela, porém valiosa dica: "Administrar o tempo de tal modo que o importante ocupe sempre o primeiro lugar". Assim como Daiana, Lucivane, Christiane e Eveline, cada professor precisa olhar para a realidade da sua turma e mapear quais momentos da rotina podem ser aproveitados para aprimorar o aprendizado. Continue investindo em projetos inovadores, sim, mas não se esqueça de dar espaço para aquelas atividades que fazemos quase sempre igual, mas cada vez com um pouco mais de profundidade.

Foto: André Feltes

Foto abre: Raoni Maddalena 

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