O trabalho que ninguém vê
Garantia de um terço da jornada ainda não é o ideal, mas já faz diferença
POR: Patrick Cassimiro, Camila Camilo e Elaine IorioA sala de leitura interativa é o ambiente de trabalho de Sandra Regina Silva, professora do IME Anjela Maria de Souza Alves, em São José dos Campos, a 94 quilômetros da capital paulista. É lá que ela se encontra duas vezes por semana com as oito turmas da escola, compostas por crianças até 5 anos. O espaço tem alguns cantinhos ambientados para os pequenos com objetos decorativos, brinquedos e fantasias, além de tecidos, instrumentos musicais e materiais para desenho. Com uma jornada de 30 horas semanais, ela passa 20 delas com as crianças e outras cinco com os demais professores e a coordenação no horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC). Em quatro horas, ela aproveita para preparar atividades, organizar a sala, separar objetos para a aula e até confeccionar alguns deles. E ainda sobra uma horinha, que ela utiliza de acordo com as necessidades da semana. Tudo isso na escola.

É comum associar o trabalho do professor apenas às atividades desempenhadas em sala, como expor um conteúdo, conversar sobre a solução de uma tarefa ou conduzir um debate. Pouco se fala do que ele realiza antes e depois da aula. Ou seja, os momentos de planejamento, correção de provas, reunião com pais e responsáveis, estudo e busca de referências para a prática docente. Sem falar no importante tempo dedicado à formação, conduzida pela coordenação pedagógica da escola no HTPC, pela rede ou fora dela.
Após muita pressão da categoria, a legislação passou a preservar essa preciosa parte do trabalho. Promulgada em 2008, a Lei nº 11.738 - a mesma que define o piso salarial do magistério - estabelece que o limite máximo para atividades com os alunos seja de dois terços da jornada. Assim, um terço do total se destina aos afazeres individuais, à formação e aos encontros com as famílias. Antes disso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, já obrigava os sistemas de ensino a prover aos docentes "período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho", mas isso nunca chegou a ser amplamente respeitado.
A conquista da Lei do Piso é considerada positiva, já que ter algumas horas na semana para as atividades extras permite que, dentro da sala, o ensino seja mais eficaz. "A abordagem dos assuntos é melhor se o professor está devidamente preparado. Por isso, a discussão sobre o cumprimento da lei é também sobre qualidade do ensino", defende Salomão Ximenes, doutor em Direito do Estado e professor de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC).
O caso da professora Sandra exemplifica bem essa relação. Antes da promulgação da lei, ela e os demais docentes faziam toda a preparação das aulas em casa - e se viravam para levar tudo até a instituição - ou no curto tempo que restava após o HTPC. "Agora é melhor, porque faço quase tudo na escola, onde tenho acesso ao almoxarifado, posso trocar opiniões com meus colegas e não preciso ficar carregando tanta coisa de um lado para o outro", relata.
Quando está sozinha, ela faz pesquisas na internet, separa o que vai usar em aula, escreve os relatórios sobre as turmas e arruma os materiais da Educação Infantil. No horário coletivo, discute sua prática entre pares e, individualmente, com a coordenadora, estuda a matriz curricular da rede e relaciona o projeto político-pedagógico (PPP) da escola com leituras formativas.

Em Capinzal, a 378 quilômetros de Florianópolis, a professora Silvia Maria da Rosa também dedica parte da rotina ao debate sobre os conteúdos e as sequências didáticas com outros educadores do mesmo segmento e a coordenação. E faz isso em dobro - mais especificamente duas horas por semana -, já que o regime de 40 horas semanais é dividido por duas turmas na EM Bernardo Moro Sobrinho, de 1º e 4º anos. Ao todo, são 26 horas e meia dentro de sala (veja no gráfico abaixo como ela e Sandra dividem sua rotina)..
Em outras duas horas, na sala dos professores, Silvia corrige avaliações e produções dos alunos, programa atividades, faz pesquisas em livros e na internet e finaliza o planejamento iniciado na reunião coletiva. O restante do tempo é dedicado à formação continuada, realizada na escola ou orientada pela secretaria de Educação do município. "Tenho, em momentos diferentes, a oportunidade de refletir sobre o que faço, discutir com meus colegas e pensar como colocar as ideias em prática", conta a educadora.
Mais tempo a favor do aluno
Os exemplos se destacam pelo fato de as escolas conseguirem se organizar para cumprir o que determina a lei. E mais: garantiram um tempo, ainda que curto, para os deveres que os professores fazem sozinhos e até para leituras que vão enriquecê-los culturalmente e como profissionais. Mas nem sempre isso acontece. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), entre os 27 entes federativos, oito não cumprem a lei: Bahia, Maranhão, Pará, Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (confira mais detalhes aqui).
Faltam dados sobre as redes municipais, mas é consenso entre os especialistas que a aplicação da legislação é bastante controversa. Uma vez que não há especificação no texto sobre o que fazer no tempo fora da sala, fica a critério dos gestores a divisão do horário docente. Por um lado, isso dá autonomia para as redes e as escolas se organizarem conforme as necessidades e a realidade local. Por outro, a falta de regras claras pode excluir da agenda situações da rotina necessariamente solitárias, como a preparação de atividades e a correção de provas. A consequência é que muitos deles acabam realizando essas tarefas em casa, fora do período de trabalho e sem remuneração.
O pano de fundo desse debate é a valorização docente, prevista em referências nacionais importantes e que vislumbram o progresso da Educação brasileira, como o Plano Nacional de Educação (PNE). Para Rubens Camargo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), um terço da jornada ainda é insuficiente. Ele acredita que é preciso desmistificar a ideia de que o trabalho pedagógico só se faz em sala e compreender que o educador é um intelectual. Parte de sua função é, portanto, pensar como dar boas aulas e procurar os meios para isso (leia mais sobre o assunto na coluna Entre Colegas).
O ideal, segundo ele, seria acatar a reivindicação histórica dos sindicatos de professores que pedem 50% da jornada para as demandas extraclasse. "Isso já acontece em algumas unidades de tempo integral e de Ensino Técnico, com bons desempenhos nas avaliações nacionais. Parte desse sucesso, sem dúvida, tem a ver com o tempo de planejamento garantido a esses docentes."
Salomão concorda: "A lei é um pequeno avanço, mas não podemos esquecer que ela se fundamenta na viabilidade orçamentária, e não no tempo realmente necessário". Ele também destaca a infraestrutura inadequada de muitas escolas. Poucas têm computadores com acesso à internet disponíveis a todos os educadores e contam com um acervo de boas práticas ou biblioteca sobre didática e outros temas de interesse da equipe. A precariedade, para o especialista, dificulta o cumprimento da jornada na escola, dentro do horário previsto no contrato de trabalho.
As jornadas de Sandra e Silvia estão afinadas com a legislação, e o trabalho delas melhorou bastante com a medida. "As reuniões em grupo são uma oportunidade de compartilharmos as angústias e buscar soluções em conjunto", exemplifica a professora de Capinzal. Mas, para que os avanços determinados pelo PNE alcancem o país inteiro, é preciso levar a sério o que o docente faz quando não está diante da classe. "Se queremos um ensino que vá além dos testes e aulas expositivas, que conte efetivamente com a participação dos alunos, é imprescindível considerar o tempo que o professor tem para planejar e fazer uma boa aula", argumenta Salomão.