Compartilhe:

Jornalismo

O passado do Brasil como colônia de exploração foi marcado por uma série de fluxos migratórios, que acabaram formando uma das características mais relevantes do nosso povo: a miscigenação. Quase todo brasileiro carrega em suas raízes um pouco de indígena, africano ou europeu. E a mistura não parou naquela época. Nosso país recebe imigrantes de diversos lugares do planeta até hoje.

Muitos são refugiados - como os sírios, angolanos e colombianos - que sofreram perseguição e encontraram aqui um lugar mais pacífico para tentar reconstruir suas vidas. Em outros casos, famílias saem de seus países - quase sempre ilegalmente - em busca de melhores condições de trabalho. Grande parte dos que integram esse segundo grupo vem da própria América Latina e consegue apenas subempregos, permanecendo em condições precárias. 

Apesar da nossa fama de acolhedor, não é raro encontrar relatos de discriminação contra imigrantes ao longo da história brasileira. Do final do século 19 ao início do 20, italianos, alemães e japoneses que fugiam das graves crises socioeconômicas já sofriam com o preconceito. Muitos chegavam a mudar o sobrenome para mascarar a origem estrangeira. Infelizmente, esse tipo de intolerância ainda acontece. E não é difícil imaginar que esse comportamento possa ser reproduzido pelas crianças dentro do ambiente escolar.

Cláudio Marques notou algo assim em 2011, quando se tornou diretor da EMEF Infante Dom Henrique, na capital paulista, que há anos recebe alunos de várias nacionalidades. "Estudantes vindos de outros países sofriam bullying dos colegas, que não sabiam lidar com o diferente e transformavam isso em agressão", conta. "Não existia trabalho nenhum com esses alunos. Eles não faziam nada, mas levavam a culpa por tudo de ruim que acontecia na escola", completa o educador.

"Muitos profissionais sabem pouco sobre essas crianças com quem convivem diariamente. Ignoram a realidade delas e suas expectativas em relação ao ambiente escolar", diz Giovanna Magalhães, mestra em Sociologia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), que estuda a presença de bolivianos nas escolas públicas paulistanas. Para ela, o desconhecimento dos processos migratórios atuais e a falta de propostas de diálogo são os principais fatores que contribuem para que o preconceito ocorra.

Identidade e tolerância

 

"Estudantes vindos de outros países sofriam bullying dos colegas, que não sabiam lidar com o diferente e transformavam isso em agressão. Eles não faziam nada, mas levavam a culpa por tudo de ruim que acontecia na escola."
CLÁUDIO MARQUES, diretor da EMEF Infante Dom Henrique

Buscando mudar esse quadro, em 2012, a coordenação da escola paulistana lançou o projeto Valores Que Não Têm Preço. O objetivo era discutir a importância do respeito e da tolerância com os colegas. Para isso, gestores e professores se reuniram para criar atividades adequadas a cada faixa etária e disciplina sobre temas como identidade e amizade. "Eu só respeito a identidade do outro quando conheço a minha", destaca Juliano Sobrinho, docente da Universidade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo.

A coordenação decidiu convidar os responsáveis dos alunos para apresentar o projeto e esclarecer que o objetivo era melhorar a convivência no ambiente escolar. Depois dessa conversa em conjunto, os pais falaram com os professores das turmas de seus filhos. Assim, tanto os estudantes como suas famílias sentiram-se mais à vontade para contribuir com as atividades propostas.

Explicar a causa do deslocamento, as dificuldades encontradas pela população migrante e as consequências da chegada dela a um novo local são pontos fundamentais para abordar a questão nas aulas de História. "Nesse tipo de iniciativa, deve-se buscar conhecer também a trajetória da cidade onde se vive para desmistificar a ideia de superioridade de um povo sobre os outros", sugere Juliano, lembrando de São Paulo, que tem fortes influências de pessoas vindas de outras nações.

Inspirado pelo projeto da escola, o professor Admilson Ferreira levou o tema para as aulas com a turma do 4º ano. Em uma roda de conversa no primeiro bimestre, ele levantou questões como "Quem somos nós? De onde viemos? Qual é a origem dos nossos pais e avós?". Alguns alunos sabiam, outros não. Então, eles foram buscar as respostas com as famílias. 

Em seguida, os estudantes registraram suas trajetórias pessoais em desenhos e textos sobre temas como: "Eu bebê", "Eu na pré-escola", "Eu hoje", "As coisas que eu gosto" ou "O que acontece na escola que eu não gosto". Esse trabalho durou dois meses e resultou na produção de livros individuais.

"Como muitos que sofriam bullying não se sentiam à vontade para falar sobre isso, eles conseguiram expressar o que os deixava tristes na hora de desenhar e escrever para compor os livros", conta Admilson. Quando os trabalhos ficaram prontos, a turma se reuniu para ler e comentar as histórias uns dos outros.

Todos ficaram sabendo que tinham cinco colegas bolivianos na sala. A partir daí, o país vizinho virou o centro das atenções e os estudantes pesquisaram mais sobre a História e a Geografia da Bolívia e de outros países que fazem fronteira com o Brasil. Por meio de mapas e pesquisas no laboratório de informática, a turma aprendeu sobre as festas típicas, os lugares mais conhecidos, a cultura e o modo de vida desse povo.

Admilson incentivou as crianças a ler e comentar as trajetórias uns dos outro. Foto: Verônica Mancini

Nesse tipo de atividade, é interessante que o professor vá além das fontes primárias - entrevistas com familiares ou moradores do bairro - e apresente documentos históricos escritos, visuais ou auditivos. Admilson levou reportagens atuais para a classe e pediu que os alunos identificassem, em grupos, o que diferenciava e aproximava os bolivianos e os brasileiros. 

"Mas agora vamos estudar só a Bolívia?", perguntaram alguns. O professor explicou que a intenção do projeto era justamente promover a integração entre os colegas. Para aproximar ainda mais o tema da realidade da turma, ele decidiu abordar também as migrações internas do Brasil. "As pessoas do Nordeste vêm para o Sudeste para quê?", questionou. Muitos estudantes eram descendentes de nordestinos e sabiam que a família havia mudado em busca de melhores condições de vida. Assim, os brasileiros puderam relacionar suas trajetórias às dos colegas estrangeiros.

O projeto terminou no quarto bimestre com a exposição das pesquisas e dos livros feitos pelas crianças. Mais que o aprendizado de História, o trabalho em conjunto de toda a escola resultou no fim das agressões entre os alunos. "O começo não é fácil para ninguém. Há a questão do novo idioma e os relatos da chegada sempre trazem situações delicadas. Mas, depois de algum tempo, é comum encontrar estudantes bolivianos que têm uma boa experiência", comenta Giovanna. 

Depois da pesquisa com familiares, cada aluno contou sua história em um livro ilustrado. Foto: Verônica Mancini

Veja mais sobre

Últimas notícias