O trágico para além das peças de teatro
Trabalhar aspectos da tragédia em linguagens diversas amplia as possibilidades de expressão da garotada
PorFernanda SallaAnna Rachel FerreiraJacqueline Hamine
13/08/2015
Este conteúdo é gratuito, entre na sua conta para ter acesso completo! Cadastre-se ou faça login
Compartilhe:
Jornalismo
PorFernanda SallaAnna Rachel FerreiraJacqueline Hamine
13/08/2015
Uma profecia é feita: o rei seria morto pelo filho, que desposaria a mãe. Para que isso não se cumprisse, o governante Laio deixa Édipo, seu descendente, para morrer em uma floresta, mas o bebê é adotado pelo rei Pólibo. Já crescido, ao ouvir a predição, Édipo foge de casa. Em suas andanças, mata um velho após uma discussão. Anos depois, por decifrar o enigma da esfinge de Tebas, recebe a mão de Jocasta, a rainha viúva de Laio, em casamento. O local é atingido por uma peste que, segundo o oráculo, só passaria se encontrassem o assassino do rei. Édipo, então, descobre ter sido ele mesmo o algoz de Laio, que era seu pai. Com a revelação, a rainha se suicida. Édipo fura os próprios olhos e se torna andarilho.
Esse é um resumo da peça teatral Édipo Rei, de Sófocles, considerada o exemplo mais perfeito da tragédia pelo filósofo Aristóteles em seu livro A Arte Poética. Apesar de especialistas afirmarem que esse modelo teatral não exista de forma pura, ele está na origem do teatro ocidental, na Grécia, e é nele que se baseia o drama, muito presente nas telenovelas atuais. Características trágicas são encontradas também em outras linguagens, como nas artes plásticas, na dança e na música.
Por causa de sua importância histórica, a professora Milena Mariz, do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), decidiu abordar a questão com o 9º ano.
Antes de mais nada, vale esclarecer a diferença entre a tragédia e o trágico como adjetivo. A primeira é um modelo de teatro definido por Aristóteles e segue uma série de regras estruturais, como ter verossimilhança e ser um encadeamento de ações em tempo real. "Outro aspecto é ter um herói que comete um erro fatal", diz Henrique Azevedo, ator e integrante da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Porém, as montagens de tragédia, em grande parte, não correspondem ao ideal do filósofo. O que prevalece, tanto nas artes cênicas quanto em outras linguagens, são certas marcas que acabam por compor o conceito de trágico, como ter um acontecimento ruim com consequências desastrosas - chamado de incidente trágico.
Como exemplifica o crítico alemão Anatol Rosenfeld (1912-1973), isso também acontece com as representações literárias reconhecidas por Aristóteles como a dramática - caso do Édipo Rei -, a épica e a lírica. Apesar de serem gêneros, eles são usados como características, ou seja, o traço de estilo mais evidente de cada um o torna um adjetivo. "Pode-se falar de uma noite lírica, de um banquete épico ou de um jogo de futebol dramático", afirma o autor no livro O Teatro Épico (184 págs., Ed. Perspectiva, tel. 11/3885-8388, 35 reais).
Em suas aulas, Milena enfocou nas características trágicas. Para começar, ela mostrou à turma uma reportagem sobre um fato real ocorrido em 2014, quando duas meninas se mataram após ter as fotos nuas divulgadas em um grupo do aplicativo WhatsApp. "Aproximar elementos da tragédia da realidade faz com que ela não pareça algo distante, apenas da Grécia antiga. Aspectos dela sempre estiveram presentes na arte e na vida", diz Carmem Machado, diretora teatral e mestre em Educação pela Universidade de Sorocaba (Uniso). Os alunos debateram sobre como uma ação pode ter consequências graves, que é o que define o sentido do trágico. Eles ainda falaram sobre o sentimento de culpa que norteou as ações das garotas e de como isso pode ocorrer com qualquer um.
Essa identificação das pessoas com as ações e o destino do protagonista (seja ele o personagem principal da peça ou as duas adolescentes) proporciona catarse, que é outro elemento essencial da tragédia. Esse conceito se refere ao estado de purificação experimentado pela plateia por meio das diversas emoções transmitidas na encenação. Por exemplo, no teatro grego, o herói é sempre alguém admirável, o que causa empatia no público. Assim, quando sofre as consequências de seu erro fatal, causa em quem assiste os mesmos sentimentos vividos por ele, como se todos perguntassem "O que eu fiz para merecer isso?", indagação recorrente quando algo ruim e definitivo acontece com uma pessoa.
Milena propôs, então, a montagem de uma peça teatral, com base em A História Secreta da Lua, de Mila Mariz. Antes de a garotada entrar em cena, a professora fez uma leitura dramática do texto. Ele narra uma crise existencial da Lua após a criação do Universo. Na trama, a alma dela se separa do corpo e vai até a Terra em busca de um sentido para a vida. Lá, ela experimenta um fruto proibido - como Eva, na Bíblia -, sofre com a culpa e não consegue desvendar qual o seu propósito. Assim como em Édipo, a protagonista foge por não aceitar o que crê ser seu destino. Ela quer solucionar o dilema, mas não é bem-sucedida.
Os alunos escutaram atentos à professora, deitados no chão e de olhos fechados. Depois, Milena pediu que eles relacionassem o que ouviram com o caso das adolescentes mortas, visto na aula anterior. Os estudantes apontaram a incapacidade da protagonista de se livrar da culpa e do que parece ser seu destino trágico, mesmo que ela lute todo o tempo contra isso.
Assim como na vida real, também é possível encontrar as marcas do trágico em outras linguagens. Fazer essa relação em aula ajuda os estudantes a observar como ele é tratado por cada artista, em suportes e com recursos diferentes. Dessa maneira, a turma desenvolve um olhar sensível e amplia as possibilidades de representação e expressão. Na dança japonesa butô, por exemplo, o bailarino expressa sofrimento por meio de movimentos lentos, fortes e intensos, sem usar palavras ou ter uma narrativa. Uma sugestão é exibir um vídeo da dança e perguntar aos alunos as impressões que tiveram, que sensações sentiram e até que história eles acham que aqueles gestos contam. Depois, é interessante pesquisar sobre o surgimento do butô, no pós-guerra - um momento extremamente trágico -, para relacionar esse contexto à arte.
O mesmo percurso pode ser feito com as artes plásticas. Parte da obra da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954) tem características trágicas. A tela A Coluna Partida, por exemplo, é um autorretrato em que ela aparece chorando, com pregos espetados pelo corpo e, no lugar da espinha dorsal, uma coluna jônica rachada. A imagem remete à biografia da própria artista, marcada por acontecimentos calamitosos, como um acidente que afetou sua coluna. Para que possam fazer a relação entre a vida e a obra dela, exiba o filme Frida (Julie Taymor, 123 min, Miramax Fimes, 15,90 reais).
Autoria coletiva
O coro, que é um elemento presente na tragédia, representado por diversas pessoas que narram e comentam a história, foi privilegiado na montagem dos alunos de Milena. Para criar cada uma das cenas em que ele aparece, foram realizados jogos cênicos e de improviso variados, incorporados à peça posteriormente. "O coro pode circular com muita liberdade durante o espetáculo fora do espaço cênico tradicional, criando infinitas e ricas imagens, além de ter grande potencial dramático", defende o ator Henrique.
Todo o restante da peça sobre a Lua e sua crise foi construído da mesma maneira, coletivamente. Isso fez com que os estudantes se tornassem coautores da obra. Ao trabalhar o trágico de maneira ampliada, a garotada entende a origem do conceito e que o sentido dele vai além de uma classificação. Isso também desperta nos alunos o olhar para enxergar as possibilidades de expressão e de ressignificação da realidade dentro das diversas manifestações artísticas, como fez Frida e fazem tantos outros artistas do teatro, da dança, da música e das demais linguagens.
Últimas notícias