1. O papel da escola na construção dos saberes geográficos
Trabalho desenvolvido pela professora Rute Athayde Almeida, da EM Brice Francisco Cordeiro, em Goiânia. Com leitura, pesquisa e observação, a garotada aprende o conceito de bacia hidrográfica
Sueli Ângelo Furlan, professora
do Departamento de Geografia da
FFLCH-USP e selecionadora do
Prêmio Victor Civita
"Para aprender, jamais é supérfluo o sentido daquilo que se aprende. Para tanto, não basta que o saber seja inteligível, assimilável. É necessário que esteja ligado a outras atividades humanas, que se compreenda por que foi desenvolvido, transmitido, por que é conveniente apropriar-se dele. O sentido não é necessariamente utilitarista; pode dizer respeito à estética, à ética, ao desejo filosófico de compreender o mundo ou de partilhar uma cultura." (Philippe Perrenoud, no livro Pedagogia diferenciada: das intenções à ação)
Desde muito pequenas as crianças observam, perguntam e procuram explicações para o mundo em que vivem. Um mundo que se amplia à medida que crescem e se relacionam com os lugares e suas paisagens. Na escola, os alunos estudam para ampliar, rever, reformular e sistematizar as noções que trazem de suas experiências com o mundo, sempre de modo mais complexo e desafiador.Esse processo de ampliação, reformulação e sistematização é sempre inacabado e pode ser aprimorado ao longo da vida de qualquer pessoa, mas a escola tem um papel importante na sua consolidação.
A Geografia, como leitura do mundo em que vivemos, é parte desta construção gradativa dos saberes do cotidiano, relacionando-os aos saberes científicos e escolares que se desenvolvem enquanto os alunos aprendem a observar, questionar o que observam, descrever, comparar, construir explicações, representar e espacializar acontecimentos sociais e naturais, considerando dimensões de tempo e do espaço.
Por isso, aprender Geografia não se restringe apenas à exposição dos saberes do professor. As diferentes modalidades organizativas (atividades permanentes, planos de aula, sequências didáticas ou projetos) utilizadas em sala de aula têm um papel fundamental no modo instigante como o mundo pode ser trabalhado e desvelado na escola. É na intencionalidade do planejamento das situações didáticas que professores e alunos desenvolvem hipóteses cada vez mais complexas sobre os fenômenos sociais e naturais estudados a partir da Geografia.
2. Experiências pessoais e aprendizagem nos projetos de Geografia
Estudo de campo de Geografia sobre bacias hidrográficas
O projeto didático é, talvez, a modalidade organizativa mais interessante para se planejar as situações de aprendizagem de Geografia. Por sua flexibilidade quanto à forma, ao forte protagonismo dos alunos e aos desafios colocados para professores e alunos na construção de um produto final compartilhado por todos, os projetos têm sido reconhecidos pelos professores como uma das maneiras mais envolventes de estudos geográficos. Muitos educadores avaliam que os estudantes aprendem mais em projetos e que os vínculos com o conhecimento criam um ambiente rico em aprendizagens.
Mas todo esse potencial já reconhecido na literatura acadêmica - que considera produtivas as experiências com projetos didáticos - pode não resultar nos objetivos esperados se a atuação de professores e alunos não envolver a compreensão mais ampla dos saberes e fazeres da Geografia. Ou seja, para colocar em uso o modo de pensar e explicar o mundo pela Geografia, os projetos devem ser capazes de articular objetivos de aprendizagem, conteúdos da área, procedimentos de estudos, interlocução com várias fontes, trabalho de campo, além de navegar por noções, conceitos, fatos, capacidades e princípios por meio dos quais os fenômenos geográficos são estudados e contextualizados no tempo e no espaço.
Em Geografia, os conteúdos trabalhados enfocam, explícita ou implicitamente, questões relacionadas a processos da sociedade e ao funcionamento da natureza, e isto é um grande desafio para o passo a passo nos projetos. Por exemplo, qual deve ser a abordagem geográfica do estudo do tempo e do clima em uma turma do 2º ano? Ou em uma turma do 9º ano? Quais os níveis de aproximação que podemos colocar para os alunos? Em quais atividades e em que sequência de ações?
Sabemos que, para entender os fenômenos meteorológicos e climáticos, necessitamos conhecer como eles acontecem, ou seja, entender o que significam os tipos de tempo do nosso dia a dia e como o clima pode ser compreendido pelo homem por meio dos estudos de longas séries de dados do tempo meteorológico. É preciso também entender como o tempo meteorológico e o clima relacionam-se com a nossa vida. Isto é, como influem na agricultura, nas cidades, na saúde e nas práticas sociais de um modo geral.
Como tratar deste assunto complexo ao buscar uma articulação dos conhecimentos populares e científicos, transformando-os em conhecimentos escolares? Como trabalhar esse assunto e ajudar os alunos a adentrarem na complexidade dos fenômenos do tempo meteorológico e construir entendimento do clima? Qual o caminho? Quais as práticas? Que fontes de informações são adequadas? Como sequenciar as situações de ensino para que os alunos possam animar sua curiosidade científica sobre esse fenômeno?
Trabalhando com projetos didáticos, o professor pode definir caminhos nos quais os alunos possam:
- Colocar suas experiências pessoais e sua bagagem cultural a serviço do projeto de estudo;
- Dar sua opinião e lidar com vários pontos de vista sobre as concepções de tempo e de clima;
- Dialogar com os colegas, professores, familiares, outras fontes orais e escritas sobre o assunto;
- Argumentar sobre o que observam no cotidiano, nos meios de comunicação e nas fontes bibliográficas, e desenvolver a capacidade de realizar pesquisas;
- Aprender a buscar informações em diferentes fontes;
- Entrevistar especialistas no assunto, entre outras possibilidades.
O projeto de estudo deve articular o passo a passo que permita a alunos e professores percorrer esses desafios e, assim, perceber que, para entender o tempo meteorológico e o clima, muitos saberes estão em jogo. É preciso construir uma série de dados e saber analisá-los e que, apesar de complexo, esse estudo pode ser feito por eles e, mais ainda, que entender desse assunto é fundamental em sua vida, pois ajuda a tomar decisões, situar-se diante dos fenômenos da natureza e participar opinativamente no debate sobre tempo e clima, assunto que nos é apresentado cotidianamente nos meios de comunicação.
3. Estudos geográficos devem integrar vários campos do conhecimento
Alunos do 2º ano analisando as casas do entorno da EMEF do Campo Professor Herminio Pagotto, no Assentamento Bela Vista do Chibarro, em Araraquara (SP)
Ainda com relação à construção de projetos didáticos, é preciso ter claro que muitos temas geográficos buscam enfoques socioambientais. No exemplo abordado no capítulo anterior, por exemplo, não se deve separar o estudo do tempo e clima (como fenômeno da natureza) do estudo social (das interações humanas com estes fenômenos). Os estudos geográficos também não podem deixar de enfocar a sociedade e sua integração com outros campos do conhecimento. A flexibilidade dos projetos permite que a organização dos conteúdos favoreça recortes múltiplos a partir dos objetivos a serem alcançados. Neste sentido, decidir sobre os conteúdos é um dos focos principais dos projetos.
Criar situações didáticas que permitam aos alunos progredirem em suas aprendizagens sobre o mundo e sua própria vida nas diferentes paisagens é a meta geográfica da sala de aula. Portanto, os projetos de estudo devem promover discussões e favorecer o desenvolvimento de uma atitude propositiva perante os temas abordados. É importante que os alunos possam protagonizar ações e atuar a partir do que aprenderam. Nos projetos, a relação entre objetivos, conteúdos e metodologia é muito articulada, permitindo que o aluno coloque em uso o que aprende. Os projetos permitem ao professor planejar atividades em que os estudantes são convidados a informar, comunicar e influenciar colegas, funcionários da escola, familiares e a comunidade na sua compreensão de que são parte dos assuntos - tais como a conservação ambiental, a relação entre qualidade de vida e saúde, a valorização da pluralidade cultural e da diversidade ambiental, o mundo do trabalho e as desigualdades socioeconômicas, entre outros.
Muitos professores justificam o trabalho com projetos por meio de estudos que envolvem trabalho de campo ou temas ambientais, associando o projeto ao protagonismo do aluno. No entanto, qualquer conteúdo da área pode ser trabalhado por meio dessa forma de organizar as situações de aprendizagem. O importante é a flexibilidade e a interação entre todos os que participam e clareza de onde se pretende chegar, o que precisam saber e como podem aprender a usar, progressivamente, o que sabem.
4. Um bom projeto didático requer diversidade de conteúdos
Trabalho desenvolvido pela professora Rute Athayde Almeida, da EM Brice Francisco Cordeiro, em Goiânia. Com leitura, pesquisa e observação, a garotada aprende o conceito de bacia hidrográfica
O trabalho com projetos didáticos precisa, também, estar ancorado por uma ampla variedade de materiais que possibilitem planejar boas situações didáticas, buscando uma boa articulação de conteúdos. Para isso, costumamos dizer que o professor não deve restringir o seu trabalho ao uso de um único tipo de material, como o livro didático, por exemplo.
É comum observar no trabalho didático com projetos a combinação de diferentes fontes, quase sempre ancoradas pelo livro didático. O que é menos frequente observar é a seleção, pelo professor, de fontes intencionalmente pesquisadas, mesmo com a fartura de acesso às informações disponíveis na internet. O uso de revistas, jornais ou sites, por exemplo, pode ser objeto de trabalho dos alunos como leitura de aprofundamento, leitura de informação ou mesmo como fonte de problematização de um tema de pesquisa. Mas, muitas vezes, o uso dessas fontes se faz sem que o professor estabeleça objetivos para seu uso. Prevalece um uso ‘espontâneo’ dos materiais, como se eles dessem conta de "ensinar sozinhos". Defendemos que qualquer material didático precisa entrar na sala de aula dentro de um planejamento que permita ao aluno desenvolver conhecimentos conceituais, procedimentais e atitudinais por meio do seu uso.
Os materiais podem e devem promover a aprendizagem, pois tendem a envolver os alunos em situações de estudo que implicam em procedimentos, valores e atitudes característicos do ofício de estudante.
Alunos e professores devem pesquisar antes e durante o desenvolvimento do projeto, visando interagir com o conhecimento publicado nas fontes textuais. Por meio dos diferentes tipos de textos, os alunos:
- Dialogam com os assuntos em foco no projeto;
- Envolvem-se no processo de desenvolvimento do projeto de maneira ativa;
- Ampliam suas possibilidades de intervenção ao longo do projeto;
- Observam, interpretam e buscam fontes diversificadas;
- Criam estratégias variadas para possibilitar uma melhor compreensão do conteúdo estudado.
Vale lembrar o professor de seu papel como mediador entre os alunos e as fontes de informação utilizadas. Sempre ocorre de os alunos não compreenderem ou não conhecerem o significado de um assunto, de um texto ou do vocabulário específico da Geografia. Cabe ao professor ajudá-los a resolver as dúvidas, orientá-los nos procedimentos de busca de novas informações, levá-los a comparar ideias diversas a respeito do tema, debater com os colegas etc.
O trabalho com documentos é especialmente importante. Por seu intermédio, os alunos podem entender o conhecimento geográfico como produto da elaboração humana, realizada por pessoas em determinados contextos. Para conhecer a paisagem e ler sobre ela é preciso ter acesso a fontes documentais diversificadas, que forneçam informações e tragam problematizações interessantes. As revistas, os jornais e outras fontes - tais como livros de arte, álbuns de fotografias, cartões postais, relatos de memórias, livros de cartas, livros de literatura, biografias etc. - fornecem uma diversidade de dados que podem ser articulados nos projetos didáticos.
O material produzido por alunos e professores durante o desenvolvimento do projeto também pode se constituir em uma valiosa fonte documental. Muitas vezes, a consolidação de conhecimentos inéditos sobre os lugares e suas paisagens acontece quando o próprio grupo os produz.
No Brasil não existem informações sobre os lugares, suas paisagens e as escolas. Textos, coleções de mapas, documentação fotográfica podem ser produzidos para serem revisitados e, ao mesmo tempo, formar uma memória documental da escola sobre os estudos que realiza. Normalmente não se valoriza tanto essas produções como aquelas que recebem tratamento editorial mais comercial, mas o que os professores muitas vezes não sabem é que livros didáticos e paradidáticos muitas vezes nascem destes materiais.
Hoje, com os recursos da informática, podemos melhorar a qualidade editorial das produções escolares. Os alunos podem ser orientados a utilizar softwares para produção de textos, mapas e trabalhos multimídia. Isso depende, no entanto, da valorização, pela própria escola, do protagonismo dos grupos que produzem esses registros. O seu uso, evidentemente, deve partir dos mesmos princípios pedagógicos comentados anteriormente.
5. Alfabetização cartográfica por meio de projetos didáticos
Alunos do Professor Francisco Eudes Farias da Silva pesquisando mapas na Biblioteca da Fundação Bradesco
Um último ponto a se destacar diz respeito ao trabalho com a cartografia nos projetos didáticos. Desenvolver raciocínios espaciais é uma aprendizagem específica da área de Geografia. Todas as pessoas têm noções espaciais, mas a Geografia em particular é a ciência que sistematiza os procedimentos de leitura e escrita da linguagem cartográfica.
A cartografia é um meio de registro e transmissão de informação. Além de constituir-se em um recurso visual muito utilizado em projetos, a cartografia escolar oferece aos professores a possibilidade de trabalhar em três níveis, conforme destaca Maria Helena Ramos Simielli no texto Cartografia no Ensino Fundamental e Médio:
1. Localização e análise - Quando se trata um fenômeno em particular e se procura lê-lo espacialmente. Por exemplo, a distribuição da população no Brasil, a ocorrência de florestas tropicais, os tipos de solos ou mesmo os mapas e croquis de percursos em escala local etc.
2. Correlação - São muitas as situações em que os professores podem combinar mapas de análise para correlacionar fatos simultaneamente. Por exemplo, a ocorrências de florestas tropicais e a distribuição da população ou movimentos migratórios no Brasil.
3. Síntese - Ao reunirmos vários mapas de análise, estamos realizando sínteses. Por exemplo, o professor pode articular os mapas de chuvas no Brasil, florestas tropicais e população para discutir os problemas do desmatamento ou erosão dos solos.
Muitos professores escolhem trabalhar a alfabetização cartográfica por meio de projetos, reconhecendo que o passo a passo flexível e ajustado aos saberes dos alunos permite que desenvolvam habilidades do desenho da realidade e da comunicação gráfica por meio da linguagem cartográfica. Ou seja, a partir de um texto (o mapa), o aluno inicia a leitura (a linguagem do mapa).
Parece-nos, no entanto, que a alfabetização cartográfica não leva o aluno a produzir mapas mais complexos (analíticos e sintéticos). A didática da cartografia envolve aprender a respeito de recursos visuais, desenhos, fotos, maquetes, plantas, mapas, imagens de satélite, figuras, tabelas e representações feitas pelos alunos que vêm sendo tematizadas em projetos, mas com maior foco no estudo da gramática cartográfica. No entanto, a cartografia temática e a cartografia ambiental requerem do professor planejar quais fundamentos podem ser antecipados ou postergados no processo de aprendizagem, tanto da comunicação visual como dos atributos técnicos dos mapas (tais como escala, projeção, entre outros).
Há pouca literatura didática sobre a produção dos mapas temáticos. Mas a cartografia temática pode ser desenvolvida por problemas que tendem a ser aprofundados de modo progressivo, acompanhando os conteúdos da Geografia e o desenvolvimento da representação gráfica e da comunicação visual. Por exemplo, projetos para analisar a degradação ambiental podem partir da produção de mapas de uso da terra articulados à proteção ambiental no município; ou análises sobre a perda da cobertura florestal a partir do estudo de imagens de satélite ou fotografias aéreas da Mata Atlântica ou da Amazônia. Esses mapas podem permitir problematizações interessantes de fenômenos espaciais e, ao mesmo tempo, enfocar aspectos mais complexos dos fenômenos representados em mapas.
Ainda em sentido mais amplo, seja na aprendizagem dos mapas ou nas aprendizagens pelo uso dos mapas, podemos dizer que toda aula de Geografia deve se apoiar neles. O problema básico que o professor deve enfrentar é conhecer a percepção que o aluno tem sobre um determinado fenômeno, sua leitura individual daquele espaço, sua criatividade e seu processo de cognição para ler e produzir mapas e propor situações didáticas em que o mapa possa ser o produto de um estudo de problemas geográficos, tais como o desmatamento das florestas tropicais.
A utilização de croquis nos três níveis propostos por Maria Helena Ramos Simielli tem sido uma prática valiosa para o desenvolvimento da representação figurativa e ajuda o aluno a se colocar diante dos mapas que, muitas vezes, exigem níveis de aquisições de leitura e de escrita cartográfica que só se concretizam com o tempo.
Concluindo, vale dizer que nem sempre as explicações que construímos dão conta da totalidade da paisagem. Nem sempre temos a intenção de abarcar essa totalidade. Às vezes, nos interessam apenas alguns aspectos da paisagem. Nesse sentido, os projetos didáticos em Geografia buscam focar os recortes e utilizar uma ampla gama de recursos criativos, cunhados em parceria com os alunos, desde que desenvolvidos sob o olhar clínico do professor.