O Haiti é aqui
Imigrantes fogem da pobreza e encontram na rede pública brasileira a esperança de um futuro melhor
17/08/2015
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Jornalismo
17/08/2015
Dividindo uma ilha caribenha com a República Dominicana está uma das poucas ex-colônias francesas nas Américas. O Haiti é um país pequeno se comparado ao Brasil e continua pequeno se analisado pela relevância política e econômica. Mas lá vivem quase 10 milhões de pessoas que sofrem com a falta de serviços básicos como água, luz, energia elétrica, comida e Educação - problemas agravados após o terremoto que dizimou mais de 100 mil pessoas em janeiro de 2010. Foi de lá que vieram Harolson e Jocelyn, de 11 anos. O que eles têm em comum? Além da nacionalidade e da língua, o fato de terem deixado cedo o país natal para acompanhar as famílias na busca por um futuro digno.
As histórias dos dois garotos se misturam às de centenas de haitianos que têm chegado ao Brasil por diferentes vias. Nosso país não foi escolhido como morada por acaso. Há 11 anos, o exército brasileiro comanda a missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) na ilha e vem estreitando relações com seus habitantes. O país passou a ser visto por muitos como uma oportunidade de mudar de vida, a imigração se intensificou e, desde 2012, haitianos podem viver legalmente aqui por meio de um visto humanitário que vale por cinco anos e pode ser prorrogado.
Na maioria dos casos, a história se repete: o primeiro a vir é o pai, que chega ao país depois de uma longa trajetória - viajando de barco, trem e ônibus, e passando por países como República Dominicana, Panamá, Equador e Peru. Após se instalar no Brasil, começa a saga para juntar dinheiro e trazer a família. Segundo informações da Missão da Paz, entidade que recebe imigrantes na cidade de São Paulo, eles costumam buscar empregos com alojamento na construção civil para economizar na moradia e guardam tudo o que podem. Foi assim que Arold Gerome, pai de Harolson, juntou em três anos os 3 mil dólares (cerca de 8,5 mil reais) necessários para trazer a esposa Rosemarie, o garoto e a irmã Alexandra, 7 anos. Desde então, a família vive na capital paulista e conta agora com a primeira integrante brasileira: a pequena Rosebelin, nascida há dois meses. Caminho semelhante está sendo trilhado por Leon Charles, pai de Jocelyn. Há quatro meses, ele conseguiu o dinheiro necessário para trazer a mulher, Rosemene, e o filho caçula. Faltam, ainda, recursos para a viagem do mais velho, Josue, 21 anos, que permaneceu no país de origem.
Uma vez no Brasil, as crianças têm de começar ou continuar os estudos. Harolson e Jocelyn conseguiram vaga na EE Presidente Roosevelt, na região central de São Paulo, e convivem com colegas das mais variadas nacionalidades. A adaptação não é fácil para eles nem para a equipe que os recebe. "Temos bolivianos, chineses, haitianos e agora sírios", comenta a diretora Plantina Fernandes Melo. Dados da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo mostram que eles fazem parte de um grupo de 8.579 estudantes estrangeiros que estavam matriculados na rede em 2014. No Brasil, esse número sobe para 60.372, conforme informação do Censo Escolar de 2013.
No caso das crianças, a chegada à escola acontece em meio a um complexo momento de mudanças: um novo país, idioma estrangeiro, regras estranhas e um currículo ainda desconhecido. Nos primeiros momentos de conversa, Harolson se mostra tímido. Quando perguntado sobre a vida antes do Brasil, ele abaixa o rosto, coça a nuca e esboça um sorriso para desconversar. Leva algum tempo para que se sinta confortável e discorra sobre esse assunto. Até que embarca em uma narrativa animada com toques de saudosismo, mesmo quando revela uma condição de vida precária. "Eu ia com a minha mãe comprar água. A gente pegava dois galões e seis baldes", narra recorrendo aos desenhos e à mímica com o intuito de ter certeza que está sendo plenamente entendido.
O garoto revela que ficou admirado com os prédios altos do centro da cidade. Acostumados a correr pelas plantações próximas à casa dos avós, na província rural de Saint-Marc, no Haiti, ele e a irmã sentem falta de ter espaço para se divertir e de uma amiga, Jovana, que deixaram na ilha. "Ela só tinha a gente para brincar. Agora, ficou sem ninguém", lamentam. O menino lembra com saudades também das feiras livres que ocorrem diariamente no país natal, onde a mãe vendia frutas.
Em meio a todas essas mudanças, Harolson diz que contava as horas para chegar à escola. Quando pequeno, ele havia passado seis anos com a mãe e a irmã na República Dominicana e dado início aos estudos por lá. A experiência lhe deu um segundo idioma - o espanhol - e facilitou a comunicação com os brasileiros, apesar de não trazer lembranças tão agradáveis. "Lá, a polícia leva os haitianos embora", conta ele, referindo-se à política dominicana de deportação de imigrantes. De volta ao país de origem, o garoto ficou um ano sem estudar, enquanto aguardava a vinda para o Brasil. A oferta de escolas no Haiti é mínima e acontece basicamente por iniciativas de ONGs.
Ansiosa também estava a professora Rosângela Maria da Silva Birrer, que passou a lecionar para o garoto. "Fiquei sabendo às 17 horas do dia anterior que receberia um aluno haitiano", diz. Ela passou a noite pesquisando informações sobre o país, tentando encontrar algumas palavras em francês e pensando como fazer para que o estudante estrangeiro fosse bem acolhido por todos.
Em sala, foi tudo diferente do imaginado. A educadora não esperava que o garoto não falasse francês. Embora seja o idioma oficial do país, ele só chega à elite escolarizada. A maioria da população fala creole, uma mistura de francês com influências africanas. Rosângela usou, então, outras estratégias. Algumas imagens combinadas às palavras em português foram cruciais nas primeiras semanas. Mas a ajuda dos estudantes foi mais efetiva do que qualquer planejamento didático.
Os alunos se animaram com a ideia de ter um estrangeiro entre eles e passaram a auxiliá-lo. Logo nos primeiros dias, Harolson passou a sentar ao lado de Enzo Camilo do Nascimento, 9 anos, que se propôs ajudá-lo com o idioma. "Ele já sabia um monte de coisas de Matemática", diz o amigo brasileiro. Aos poucos, o garoto começou a se arriscar no português e compartilhar sua cultura.
Essa troca foi valorizada pela docente. Ela propôs, por exemplo, que ele ensinasse aos colegas como fazer um colar de barbante e tecido típico do Haiti e convidou a mãe do garoto a ir à escola fazer penteados com tranças nos cabelos das meninas. O único tema sobre o qual Harolson se reserva ao direito de não falar é o abalo sísmico que assolou seu país. A escolha é conhecida e respeitada pelos colegas. "Ele disse que muita gente morreu no terremoto. Isso o deixa triste, então a gente não pergunta", diz Enzo.
Com menos tempo no Brasil, o recém-chegado Jocelyn Charles também está começando seu processo de adaptação. O pai, que hoje trabalha na construção civil, lecionava francês no Haiti, razão pela qual ele e o garoto dominam o idioma, além do creole. A língua portuguesa, no entanto, ainda é um desafio. Charles, como é chamado pela turma, é um menino sempre sorridente e agitado. Em sala, vira a cabeça para um lado e outro, na tentativa de captar tudo o que acontece ao seu redor. Cada palavra que aprende em português é um troféu a ser compartilhado com todos. O garoto conta com a ajuda do conterrâneo Harolson, que faz as vezes de tradutor em sala. "Eu o chamo quando não conseguimos nos comunicar", explica a professora Ana Luíza Carlos Masson, que prepara propostas diferenciadas para que Jocelyn se alfabetize na língua portuguesa.
A chance do filho de estudar emociona o pai, que costuma levá-lo à escola e se mostra empolgado com tudo o que pode aprender. Ele conta que as pessoas estão morrendo por causa da cólera e das inundações em Gonaives, cidade em que viviam. E isso os motivou a vir. "Quando cheguei aqui, estava muito cansado do meu país. Mas gostaria de voltar um dia para lá", explica. Seria preciso, no entanto, que várias coisas mudassem. O pai assume um tom desesperançado quando fala dos governantes haitianos, enfatizando que não pensam no povo. Aqui é diferente, segundo a percepção dele. O objetivo da família agora é ajudar Jocelyn na adaptação escolar e trazer o mais velho, Josue, o mais rápido possível para o Brasil.
O sentimento de empolgação do pai com a escola parece ter passado para o pequeno Charles. Ele começou a estudar quando chegou ao Brasil, no final do ano, mas logo veio o recesso escolar. "Tive de explicar a ele que não podíamos vir mais à escola porque estaríamos de férias", conta Harolson ao se lembrar da insatisfação do colega com a notícia. A declaração singela mostra como a Educação pode ser a porta de entrada desses e de outros estrangeiros para uma vida nova.
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