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Jornalismo

Periferias sem aulas e sem direitos

Nas regiões pobres das metrópoles, a ausência do Estado afasta crianças e adolescentes dos estudos

PorBruna Nicolielo

09/02/2016

Responsável por cuidar da irmã mais nova, Andréa*, 12 anos, não consegue ir à escola.
Foto: Manuela Novais

Um emaranhado de barracos sem reboco domina a paisagem do Subúrbio Ferroviário, área periférica de Salvador que abrange 22 bairros e tem cerca de 600 mil habitantes - quase 25% da população da cidade. À medida que o visitante se distancia da bela Baía de Todos os Santos, descobre as vielas de Coutos, Periperi, Oxumaré e outras localidades cujos nomes remetem a portugueses, índios e africanos que habitaram a região. Esquecido pelo poder público, o lugar carece de bibliotecas, unidades de saúde, praças, áreas de lazer e delegacias. Nessa terra sem muitas perspectivas de futuro, o narcotráfico ganha importância. "Muitos alunos abandonam a escola por causa de ameaças de gangues que controlam o comércio de drogas", diz Maria*, diretora de uma unidade estadual da região, enumerando nomes e histórias de quem evadiu. As instituições de ensino são um dos poucos órgãos públicos da região, que cresceu com o aumento das ocupações irregulares nas décadas de 1970 e 1980. Em sua rotina, Maria* faz as vezes de assistente social, resolve conflitos e lida com o tráfico, além de tentar convencer, muitas vezes em vão, meninos e meninas a não desistir dos estudos. 

A violência é só um dos fatores da longa lista que tira crianças e adolescentes da escola nas periferias das grandes cidades. As principais causas são a pobreza e os problemas vinculados a ela: condições precárias de moradia, ensino descontextualizado, situações de racismo e discriminação e falta de transporte, entre outras questões. Nesse contexto de precariedade, fica evidente uma faceta perversa da sociedade brasileira. Segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70,8% da população extremamente pobre do país é constituída por pessoas dos grupos de raça ou cor preta e parda. A razão é o próprio processo histórico do Brasil, que não implementou políticas de apoio a esses grupos após a abolição, contribuindo para afastá-los de direitos básicos. "No Brasil, a desigualdade educacional tem nome, endereço e cor de pele", assinala Silvio Kaloustian, coordenador do escritório de São Paulo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A maioria (63%) das crianças e dos adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no país é afrodescendente.

A ausência do poder público acarreta também outros problemas. No Subúrbio Ferroviário, Juliana*, 17 anos, abandonou a 8ª série depois de 145 faltas. Tentou voltar, mas sequer foi reconhecida pela equipe docente e desistiu logo depois. Gabriela*, 16, largou os estudos na 6ª série. Ambas estavam grávidas quando saíram da escola e engrossam as estatísticas que relacionam a evasão à maternidade, em especial entre meninas negras e pobres. O relatório Situação da Adolescência Brasileira 2011, do Unicef, mostra que 6,1% das garotas de 10 e 17 anos sem filhos não estudavam em 2008, último dado disponível. Na mesma faixa etária, entre aquelas com filhos, a proporção chegava a 75,7%. Também é grande o número de alunas que evade para cuidar de irmãos menores. É o caso de Andréa*, 12 anos. Ela conta que a mãe é ambulante e trabalha nos arredores da estação ferroviária. A garota não consegue estudar porque cuida da caçula, Juliana*, 6 anos, que está sem vaga na escola.

Depoimento em vídeo de Maria de Salete Silva, do Unicef:

 

 

 

Ausência de oportunidades

Marina*, 9 anos, quer estudar, mas ninguéms se responsabiliza por garantir seus direitos.
Foto: Manuela Novais

Outros motivos da evasão são a indisciplina e o desinteresse pelos estudos. Para uma parcela considerável dos jovens, a realidade exterior à escola é mais atrativa que a da sala de aula. Essa aparente indiferença tem a ver, na realidade, com baixa aprendizagem, atraso escolar, repetência e distorção idade-série. "As instituições têm sua parcela de responsabilidade, pois são pouco atraentes e muitas vezes veem determinados alunos como um problema, afastando-os", afirma Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de desenvolvimento de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Um exemplo é Gabriel*, 16 anos. O menino desistiu da escola em 2013 alegando que prefere ir às lan houses do Subúrbio Ferroviário ou à Praça de Paripe ouvir música com os amigos. 

A cerca de 1,7 mil quilômetros de Salvador, no Complexo da Maré, conjunto de comunidades pobres do Rio de Janeiro com uma população de 130 mil habitantes, a história se repete. Júlio*, 14 anos, também não vê motivos para estudar. Abandonou a escola aos 12 anos, quando estava no 6º. Diz que parou porque "demora muito tempo para passar de ano". Filho de uma usuária de crack, ele mora com a avó, que é faxineira. Sem outras instituições a que recorrer, ela tenta sozinha resolver o problema. "Eu pagava até van para ele ir, mas nem isso adiantou alguma coisa. Quando eu falo para ir à biblioteca da ONG Redes da Maré, ele diz que é coisa de criança." 

A área em que o menino e a avó vivem enfrenta os mesmos problemas de tantas outras do país. A Maré começou a ser ocupada no início da década de 1940 e hoje conta com 16 comunidades. Próxima ao campus Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), teve seu crescimento impulsionado pela construção da instituição, da Avenida Brasil e de outras vias expressas. As obras, no entanto, não trouxeram muitos ganhos à população local. Marina*, 9 anos, foi criada ali e mal escreve o nome. Tampouco fala com fluência. A menina vive com o pai, que ficou dez anos preso e hoje trabalha a noite inteira em um negócio próprio. Ele alega falta de tempo para levá-la à escola. "Sei que é minha obrigação e não estou fazendo." A garota aparece vez ou outra na biblioteca da ONG próxima. "Um dia, acordei e ela já tinha se arrumado. Penteou o cabelo e disse: 'Pai, me leva para a escola'", conta ele. 

Resolver todos esses problemas significa enfrentar de fato as desigualdades. Segundo a antropóloga Jaqueline Santos, assessora do Programa Diversidade, Raça e Participação, da ONG Ação Educativa, muitas propostas afirmativas estão em curso. "A oferta de uma Educação contextualizada, com atenção ao ciclo de vida, à cultura e à etnia, é uma estratégia importante para tornar a escola mais significativa e quebrar o ciclo da pobreza", comenta. Em âmbito geral, estão sendo realizadas ações importantes voltadas às populações de periferia. Programas de transferência de renda, de construção de moradias populares e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, do Ministério da Saúde, são exemplos. 

O desafio é fazer com que todas essas iniciativas funcionem de modo efetivo. "A política pública precisa alcançar as localidades, formando uma rede de proteção articulada, com assistência social, postos de saúde e Conselho Tutelar", afirma Jaqueline. Hoje, um grande problema é o desencontro de informações entre os órgãos. Em Salvador, por exemplo, o Conselho Tutelar recebe denúncias, mas tem dificuldade em chegar às famílias. "As falhas nesse processo tornam ainda mais complicado o acesso às crianças", diz Márcia Guedes, promotora do Ministério Público da Bahia. 

Avançar rumo a uma Educação de qualidade, no caso dos meninos e meninas negros das periferias brasileiras, é superar a herança racista. Só assim eles poderão recuperar a capacidade de sonhar com um futuro e com projetos de vida. 

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