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Jornalismo

Clarice pergunta, as crianças respondem

Ela mesma, Clarice Lispector. Saiba como usar os textos da escritora para criar gosto pela leitura

PorCamila Camilo

21/08/2016

Em roda, a turma do 3º ano da EMEF Professora Marili Dias, em São Paulo, aguardava o início da leitura em voz alta que seria realizada pela educadora Suse Mendes. Com um livro em mãos, ela dá início à atividade: "Antes de começar, quero que vocês saibam que meu nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o nome de vocês e o meu coração vai ouvir. Peço que leiam esta história até o fim. Vou contar umas coisas (...)". As crianças dizem seu nome. Esse é um dos trechos de uma obra (A Mulher Que Matou os Peixes, 32 págs., Ed. Rocco, tel. 21/ 3525- 2000, 29 reais) em que a autora Clarice Lispector (1920-1977) estabelece um diálogo com os leitores ao escrever para o público infantojuvenil. Na história, ela conta que os peixes de seu filho (na época, com 20 anos) foram mortos por culpa sua, mas que tudo não passou de um acidente. E explica que vai provar que é incapaz de "matar uma coisa viva". O tempo todo, quem lê a obra é provocado a pensar sobre os atos narrados e convocado a julgar se a morte dos bichos foi ou não proposital.

Elaborar um trabalho para levar essa autora à sala de aula é uma oportunidade rica por vários motivos. Além de colocar os alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental em contato com uma literatura de qualidade e sem tom moralizante - ao contrário de boa parte dos títulos voltados ao público infantil -, Clarice tem o costume de dialogar com as crianças em diversas obras. De acordo com Olga, especialista em Teoria Literária e vice-diretora das Faculdades Integradas Teresa D'Avila (Fatea), a escritora não ignora ou subestima a capacidade que meninos e meninas têm de raciocinar, entender e criar. "Clarice considera a criança um ser pensante, com condições para ler, encarar o que acontece e encontrar caminhos dentro da história." E mais: segundo o artigo Aprendizagem da Leitura no Ensino Fundamental: Lendo Contos Infantis de Clarice Lispector, de Josiane Becker e Nilson Fernandes Dinis, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), os títulos revelam histórias provocativas, que desafiam o leitor a refletir e a emitir opiniões.

A dinâmica de diálogo com o leitor foi explorada por Suse com um objetivo bem definido: despertar nos estudantes o hábito da leitura. Ela elegeu Clarice pelas razões já citadas e também por seu envolvimento pessoal com a obra da autora. Leitora habitual de seus livros voltados ao público adulto, ela se dedicou a estudar também os infantojuvenis antes de iniciar o trabalho. De acordo com Olga, para colocar em prática um trabalho como esse, é fundamental que o professor leia o material, estude críticas sobre ela e investigue o contexto de produção. "Isso dá subsídios para desenvolver boas propostas", esclarece.

Descobrir um pouco sobre a autora

Antes de começar a ler os livros para os alunos, Suse levou para a classe os títulos que seriam explorados. Além de A Mulher Que Matou os Peixes, faziam parte da lista O Mistério do Coelho Pensante (32 págs., Ed. Rocco, 26,50 reais), A Vida Íntima de Laura (32 págs., Ed. Rocco, 26,50 reais) e Quase Verdade (32 págs., Ed. Rocco, 29 reais). Ela mostrou as capas para as crianças e perguntou se alguém conhecia uma das histórias. 

Como esperado, poucas disseram que já tinham visto um exemplar. Então, Suse sugeriu que a classe fosse até o laboratório de informática pesquisar na internet sobre a pessoa que os escreveu. Ela indicou o Blog da Criança como fonte. "A turma encontrou fotos e dados biográficos, como o fato de Clarice ser uma ucraniana que veio morar no Brasil. Também descobriu que era famosa por escrever para adultos", diz Suse. Denise Guilherme, assessora pedagógica e formadora de professores, ressalta que é importante conversar com os estudantes sobre o escritor e por que ele será lido, mas no tom certo, sem exageros. "A escola muitas vezes insiste em mitificar o autor literário como alguém excepcional, quando na verdade ele é um trabalhador da palavra. Por isso é preciso evitar que a apresentação seja um momento de excentricidade e curiosidade." A respeito de Clarice, por exemplo, um fato que merece destaque é o de que foi casada com um diplomata. Por causa do trabalho dele, ela morou em vários lugares diferentes, entre eles a Itália, onde foi dona de Dilermando, um cachorro citado em A Mulher Que Matou os Peixes.

Ler na escola e em casa também

Encerrado o momento de pesquisa na internet, Suse realizou a leitura em voz alta de cada uma das histórias selecionadas - uma por dia. A participação dos alunos foi constante, respondendo aos questionamentos da autora e, às vezes, fazendo comentários sobre o que acontecia na trama. 

Para seguir adiante, a professora fez com que todos levassem para casa um dos cinco exemplares dos títulos lidos, usando como critério de escolha a história de que mais tinham gostado. "Criei a oportunidade de as crianças terem um contato diferente com a obra eleita: elas poderiam olhar as ilustrações com calma, ganhar intimidade com o objeto livro e ler no próprio ritmo", explica Suse. Para que ninguém deixasse de aproveitar a chance e também para comunicar às famílias o objetivo da atividade, a professora enviou um bilhete sugerindo que a leitura fosse feita na companhia dos pais, irmãos ou de outro adulto, que poderia ajudar a criança em caso de alguma necessidade ou, então somente compartilhar aquele momento prazeroso. 

Embora você possa pensar que os alunos não vão se interessar por títulos já conhecidos e lidos para eles, lembre-se de que o comportamento leitor da criançada ainda precisava ser muito desenvolvido nesse caso. "Para a formação de leitores, é importante reler a obra já conhecida estando sozinho e depois ter tempo para trocar ideias com os colegas", diz Beatriz Gouveia, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá e professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (Isevec). 

Quando voltaram à escola, os estudantes compartilharam suas escolhas e as novas impressões que tiveram a respeito das histórias. Sobre A Mulher Que Matou os Peixes, por exemplo, a turma mostrou que havia sido conquistada pelos argumentos lançados pela autora. Com uma decisão unânime, a classe aceitou que Clarice não tinha matado os animais intencionalmente e a absolveu. "Agora a criançada tem bastante interesse pelos livros e sabe que ler é bom e importante", comemora a educadora. 

Uma sequência didática de leitura de obras de um mesmo autor como a organizada por Suse oferece aos estudantes a chance de interagir com ele e entrar em contato com textos que provavelmente eles não leriam por conta própria. Além disso, a proposta se revela muito apropriada para comunicar aspectos do comportamento leitor e demonstrar que ler é uma atividade valorizada. 

"A forma como se distribui o tempo de aula representa a importância que se atribui aos diferentes conteúdos", explica a argentina Delia Lerner, pesquisadora da Didática da Leitura e da Escrita, no livro Ler e Escrever na Escola: O Real, o Possível e o Necessário (128 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 46 reais).

1 Um pouco sobre Clarice Selecione livros infantojuvenis de Clarice Lispector e mostre-os para a turma. Alguém conhece algum? Proponha uma pesquisa sobre a vida da autora em sites ou em livros. 

2 Conversando com Clarice Organize momentos de leitura diários e observe como as crianças reagem aos questionamentos que a autora faz durante a narrativa. Se for necessário, incentive-as a responder. 

3 Conversando sobre Clarice Planeje um rodízio que possibilite às crianças levar para casa o livro de que mais gostaram. Depois, reúna todas e peça que falem sobre a obra lida.

 

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