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Jornalismo

 

Escola na capital paulista recebe imigrantes de mais de dez países

 

O Índice de Desenvolvimento da Educação (Ideb) completa dez anos em 2017 e é uma das mais importantes políticas de qualidade do ensino no Brasil. Foi a partir dele - e da Prova Brasil, criada em 2005 - que construímos, pela primeira vez, uma forma de medir e acompanhar a aprendizagem em todas as escolas. Ele surge depois de um intenso processo de ampliação no Ensino Fundamental, que fez com que chegássemos a mais de 95% de cobertura e rompêssemos a barreira dos 35 milhões de crianças de 6 a 14 anos na escola. "Quando criamos o índice, o objetivo não era dar uma nota para cada aluno ou escola, mas ter um parâmetro para o governo priorizar os investimentos. O Ideb é um marco porque ele voltou o foco das políticas públicas para a qualidade", explica a ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, Maria do Pilar Lacerda.

Inclusão transformou escola gaúcha em referência

Ao longo da última década, o Ideb induziu diversas políticas e programas públicos, passou a balizar os investimentos do terceiro setor e, dentro das escolas, deu um instrumento concreto para que famílias, professores e gestores pudessem dialogar e agir para melhorar a qualidade. Ele também escancarou o que os resultados de testes internacionais e os altos índices de reprovação, analfabetismo e distorção idade-série atestavam: o nível muito baixo da Educação brasileira.

Mas, com o índice nacional, também surgiram versões municipais e estaduais, gerando sobreposições. A divulgação das notas levou ao ranqueamento e a busca por melhores posições conduziu a práticas de treinamento e ao foco curricular nos descritores de Língua Portuguesa e Matemática da Prova Brasil. "Acabamos criando mecanismos sofisticados de avaliação, mas não de mudança pedagógica na escola", reconhece Pilar Lacerda.

Autonomia e participação são as prioridades de escola de Guarulhos

Para que essa mudança aconteça, é preciso saber transformar os números das provas em ações. "Na gestão essas ações se materializam na garantia da formação continuada, do número adequado de alunos em sala, na valorização e permanência dos professores e na infraestrutura. Dentro de sala, é priorizar mais os erros do que os acertos. É da reflexão sobre o erro que vem a transformação da prática", defende Jussara Hoffman, pesquisadora em avaliação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A régua do Ideb, por sua natureza padronizada e de larga escala, também não consegue dar visibilidade para os desafios sociais, econômicos e culturais de cada escola. "É preciso ter metas para nossos melhores alunos, que aprendem menos do que os melhores em outros países, e também para os nossos piores alunos, que são em grande número e muito piores do que os piores em outros países. São diferentes desigualdades", afirma Francisco Soares, ex-presidente do Inep e um dos maiores especialistas em estatística educacional do país.

Em 2022 se conclui a série histórica proposta quando o Ideb foi criado. A ideia à época era que o Brasil cheguasse lá com nota 6, o nível dos países desenvolvidos. Na última medição, em 2015, atingimos a casa do 5 nos anos iniciais e do 4 nos anos finais. "Precisamos concluir essa série, mas pensar como criaremos mecanismos de avaliação que considerem o impacto da Educação integral, a relação da escola com a comunidade e a cidade, novas metodologias de ensino e as demandas de aprendizagem dos alunos", acredita Pilar Lacerda.

São essas aprendizagens, hoje invisíveis para o Ideb, que trazemos nas próximas páginas. Uma escola de portas abertas para os imigrantes, outra que é referência em inclusão e uma terceira que desenvolve a autonomia dos alunos, todas ainda abaixo das metas do índice. "Precisamos ter sempre em vista que quando dizemos ler, escrever, estamos afirmando: ler não apenas os livros, mas os sinais do mundo, a cultura do tempo. Escrever não apenas nos cadernos ou computadores, e sim no contexto de que participa, intervindo em sua significação. Resolver problemas não só matemáticos, mas no amplo universo das questões que desafiam os seres humanos na construção de sua história e no convívio com os outros", afirma a filósofa da Educação Terezinha Rios. 

 

O mundo em uma escola

A EMEF que se tornou referência no acolhimento de imigrantes
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"Aqui tem vida normal. As pessoas ajudam as pessoas." É essa a resposta de Shahrazad Dakkar, 28 anos, quando perguntam por que ela gosta tanto do Brasil. A síria chegou no país em 2014 com os dois filhos, Mohamed Ghazi, 10 anos, e Mayas Ghazi, 6 anos. Para trás em Damasco, capital do país, deixou o resto da família e os escombros do que um dia foram sua casa e a loja onde trabalhava com o marido. A saudade é imensa, mas ela não pensa em voltar para uma guerra que desde 2000 já matou 400 mil e levou 4,5 milhões ao êxodo, segundo a ONU.

 

EMEF INFANTE DOM HENRIQUE

São Paulo (SP)

Matrícula

  • 501 alunos no Fundamental 1 e 2

Ideb

  • Anos iniciais: 5,4
  • Meta: 5,5

Fonte: QEDU

Encontrar uma escola para Mohamed e Mayas foi uma das primeiras providências. A indicação de uma amiga síria que já morava no Brasil foi a EMEF Infante Dom Henrique, escola tradicional do bairro do Canindé, na capital paulista, reconhecida por receber imigrantes. Atualmente, eles representam 20% do total de alunos.

São bolivianos, senegalenses, haitinos, sírios e libaneses... Mais de dez nacionalidades se reúnem nas salas da Dom Henrique, que completou 57 anos. Na maioria, filhos de refugiados ou famílias em busca de emprego. "Todo imigrante que chega é recebido por uma comissão de outros estrangeiros que mostram os ambientes e contam sobre a nossa proposta de Educação. É um acolhimento que faz diferença", conta o diretor Cláudio Marques, há seis anos na escola.

"Não maquiamos e queremos melhorar nosso Ideb, mas ele não leva em conta nossos desafios." 
CLAUDIO MARQUES, diretor

Mas nem sempre foi assim. A comunidade boliviana, primeira a chegar à escola Dom Henrique e ainda hoje a mais numerosa, sofria preconceito. "Quando cheguei, os bolivianos eram chamados pejorativamente de 'bolivas' na escola e eram os culpados por tudo de ruim que acontecia", lembra. Com a experiência que trazia do mestrado na Universidade de São Paulo (USP) e de 27 anos em escolas públicas, ele reuniu a comunidade e iniciou um trabalho de apresentação da cultura boliviana que culminou em uma visita ao país em 2014 por um grupo formado por alunos, gestores e professores. A experiência inspirou o projeto Escola Apropriada que a cada 15 dias reúne os alunos para a apresentações dos estudantes estrangeiros que mostram um pouco da arte, música, culinária ou histórias dos seus países.

Para dar conta do desafio das línguas, a Dom Henrique tem placas na porta das salas em português, árabe, espanhol e inglês. No corpo docente, três professoras são fluentes em espanhol e uma em árabe. O inglês é a língua comum. Há reforço de português no contraturno para os estrangeiros e, à noite, aulas da língua para os pais.

Todos os alunos estrangeiros fazem a Prova Brasil e são inseridos nos anos correspondentes a suas idades. "Não maquiamos e queremos melhorar nosso Ideb, mas ele não leva em conta nossos desafios. Além da língua, temos muita rotatividade entre os imigrantes e atendemos uma comunidade local muito carente, com histórico de exclusão", explica Cláudio.

ACOLHIMENTO O diretor Cláudio (à direita) com o coordenador Carlos, Shahrazad, Mohamed e Mayas na entrada

Ele se orgulha dos resultados que estão além das provas. "Somos vizinhos de escola técnica federal e nenhum aluno tinha conseguido entrar nela. Hoje 30% dos que terminam o Fundamental 2 entram. Criamos uma parceria com o instituto em que os estudantes fazem preparação para a prova de acesso já a partir do 8o ano", diz. A escola também recebeu convite da Unesco para se tornar uma de suas instituições associadas.

Os bolivianos que eram discriminados hoje estão entre os melhores alunos. Neste ano, a primeira aluna boliviana conseguiu uma vaga em uma universidade pública. Gladys Alconz entrou em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Outro orgulho de Cláudio é o filho de Shahrazad. Mohamed chegou sem falar português e hoje - três anos depois - domina o idioma e é um dos melhores alunos do 5º ano.

Os próximos passos da Dom Henrique serão trabalhar por projetos, inserir novas metodologias de ensino e desenvolver materiais didáticos que contemplem mais a cultura dos países dos alunos imigrantes. "Acreditamos no efeito da escola para mudar as histórias de vida", finaliza o coordenador pedagógico Carlos Fernandes.

 

TURNO E CONTRATURNO Na EE Coronel Pilar, alunos com deficiência recebem apoio personalizado

Incluir para aprender

Escola gaúcha vive constante reflexão para garantir a aprendizagem de todos
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Como qualquer outro aluno, quem tem deficiência e estuda na EE Coronel Pilar participa da Prova Brasil. A escola de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul, é referência no município quando o assunto é inclusão. "O Ideb é importante, mas não é a única meta que queremos atingir, porque nosso foco é a aprendizagem de cada aluno de acordo com suas possibilidades", diz Maria Jozayne Canneda, supervisora-geral.

Atualmente com cerca de mil estudantes matriculados do Ensino Fundamental ao Médio, a Coronel Pilar tem 69 alunos com deficiência, altas habilidades e de espectro autista, o que representa, aproximadamente, 7% do total.

Rafaela Zaremski, 12 anos, está no 7º ano e estuda na mesma sala que Henrique de Castro Müller, de 21 anos, que tem Síndrome de Down. "Ele é meu amigo como os demais e não atrapalha porque tem deficiência. Se atrapalha, é como qualquer um de nós. Entendemos que às vezes ele precisa de mais atenção dos professores."

 

EE CORONEL PILAR

Santa Maria (RS)

Matrícula

  • 941 alunos no Fundamental e Médio

Ideb

  • Anos iniciais: 6,3
  • Meta: 6,6

 

  • Anos finais: 3,5
  • Meta: 5,6

Fonte: QEDU

 

Para a mãe da aluna, Melissa Zaremski, membro do Conselho de Pais e Mestres, a qualidade do ensino e da convivência e o clima de diversidade oferecidos pela escola superam os de muitas em Santa Maria, inclusive particulares - tanto que a filha mais velha antes estudava em uma. "Falo como membro ativo da comunidade escolar: a Pilar não é um depósito de crianças com deficiência, como sabemos que existem por aí. Elas participam das aulas e do dia a dia da escola."

Em época de Prova Brasil, é explicado aos avaliadores externos que alguns dos alunos incluídos fazem as avaliações internas com mediação pedagógica. "Assim, esperamos a compreensão deles de que isso também é necessário para as avaliações externas, entre outras flexibilizações, como tempo maior para responderem a prova", diz Tânia de Azevedo, pedagoga e profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE).

 

Integração e pesquisa
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A chave para o desenvolvimento e aprendizagem de todos é a integração do trabalho entre os pro fissionais de AEE com os professores das salas regulares, segundo Tânia. "Planejamos as atividades em conjunto, damos apoio para os alunos em sala e no contraturno." Outro ponto positivo para o cenário inclusivo é que a escola é um ambiente de pesquisa sobre Educação Inclusiva da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Graças a isso, ela se beneficia com observações, reflexões e propostas dos pesquisadores, como se estivesse em constante formação continuada.

"O Ideb é importante, mas não é a única meta que queremos atingir." 
MARIA JOZAYNE CANNEDA, supervisora-geral

Dos seis profissionais de AEE, um deles, Bernadete Viero, atua na chamada sala especial, que reúne exclusivamente 13 alunos com deficiência. Eles não participam da Prova Brasil nem em classes regulares por dois motivos. O primeiro é que alguns precisam de um tempo de adaptação para ter condições de acompanhar os colegas - como Leonardo da Costa da Silva, 9 anos. Autista, ele ficou dois anos com Bernadete até estar semialfabetizado e mais adaptado à rotina. No início do ano letivo, passou para a classe regular do 1º ano.

O segundo motivo que ainda sustenta a existência da classe especial é a presença de estudantes que, segundo a diretora Eli, não têm condições de acompanhar as aulas ou são muito mais velhos - como Jéssica Rodrigues Lunardi, 25 anos, que tem paralisia cerebral. "Ela está há mais de dez anos na sala especial e já progrediu muito. Mas seria difícil para ela se adaptar a uma sala regular porque às vezes parece uma adolescente e às vezes uma criança de 3 anos", conta Inês Rodrigues, mãe da aluna. De acordo com Bernadete, a sala especial será extinta devido a ordens da Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul.

 

Cidadania desde cedo

Autonomia e participação dos alunos são as metas de escola paulista
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"Aqui na escola você pode dar a sua opinião, escolher o que quer estudar e até como melhorar seu desenvolvimento." A frase, que resume o trabalho da EPG Manuel Bandeira, localizada em um bairro pobre de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, poderia muito bem ter sido dita pela diretora Solange Turgante, pela vice, Ana Paula Souto, ou pela coordenadora pedagógica Camila Tesche. Mas não. O autor dela é Vinicius Barbosa, 10 anos, que cursa o 5º ano.

O garoto integra a equipe de ajuda da classe, o que significa que quando acaba uma tarefa está pronto para auxiliar os colegas que precisam. Esse é só um dos grupos de apoio que as turmas contam: tem o da organização da sala, o de sugestões para o recreio e o de mediação de conflitos.

Vinicius estuda com Mariana Cardeal, também de 10 anos, representante de classe. Cabe a ela registrar as informações das assembleias de turma semanais, levá-las aos encontros que mantêm regularmente com as gestoras e apresentar aos colegas as discussões propostas pela direção.

Em outubro do ano passado, eles precisavam debater a programação da Semana das Crianças. As turmas do 4º e 5º anos sugeriram fechar a rua em frente à escola para brincar - de queimada, vôlei, mãe da rua. A vice-diretora levou o pedido à secretaria de Trânsito, que autorizou o bloqueio. "Veio pai, mãe, pessoas da própria rua brincar com a gente", conta Mariana.

 

EPG MANUEL BANDEIRA

Guarulhos (SP)

Matrícula

  • 681 alunos da creche ao Fundamental I 

Ideb

  • Anos iniciais: 5,5
  • Meta: 6,0

Fonte: QEDU

 

Os pequenos de 4 e 5 anos também deram suas sugestões. Em uma roda de conversa - estratégia que substitui as assembleias de classe dos maiores -, eles fizeram o desenho do que queriam: piscina de bolinhas, tobogã e jardim florido. E apresentaram os mais votados para a equipe gestora.

As discussões não se restringem a temas dessa natureza. O uso de celular na escola, por exemplo, é assunto recorrente. Na assembleia do 5º B é José Igor dos Santos, 10 anos, que puxa o assunto. "Eu que escrevi isso. Vi que algumas pessoas não estão cumprindo com os combinados da assembleia geral (da qual participam alunos, professores e gestores) e tem mexido no celular dentro da classe", falou sem citar nomes, regra número 1 que a escola inteira estabeleceu para que ninguém seja exposto. A número 2 é que todos têm que levantar a mão e esperar a vez, inclusive a diretora.

 

Em busca de sentido
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A consolidação de tantos espaços de decisão é resultado de uma mudança que começou em 2013, quando Solange e Ana Paula assumiram a gestão. "Minhas experiências de professora e coordenadora me revelaram que algo no sistema educacional precisava mudar", conta Solange. Ela queria construir um projeto que considerasse os desejos dos alunos e transformasse a relação deles, das famílias e da comunidade com a escola. "É claro  claro que competências matemáticas, de leitura e escrita são essenciais, mas não se forma ensinando só Português e Matemática."

O primeiro passo foi propor o trabalho por projetos - e já nesse momento com temas escolhidos pelos alunos. Realidade que ganhou consistência nos encontros de formação com os docentes e com a consulta a pesquisadores.

TURNO E CONTRATURNO Na EE Coronel Pilar, alunos com deficiência recebem apoio personalizado
 

No ano passado, uma mudança de rota, no entanto, foi necessária. E quem apontou isso foi justamente o Ideb, com a ajuda das avaliações feitas pelos professores e das autoavaliações dos estudantes. "Identificamos a necessidade de ter eixos para os projetos. Definimos três: literatura, cultura popular e ciências e tecnologia", afirma Ana Paula. A grade horária também passou a contar com tempos específicos para conteúdos que os projetos não conseguiam abordar.

"Em outras escolas nunca quiseram saber o que eu penso, aqui me ouvem." 
MARIANA CARDEAL, aluna do 5o ano

Para Camila, o Ideb não pode ser o indicador mais importante de uma escola. "Além de ele não conseguir medir a formação cidadã, não mapeia o contexto." Isso significa dizer, no caso da Manuel Bandeira, que o índice ignora, por exemplo, o alto número de alunos novos que entram todo o ano e o esforço de inovar em metodologias de ensino e organização construídas coletivamente com os alunos e a comunidade.


Fotos: MARCELO CURIA e MARIANA PEKIN

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