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Jornalismo

"No pátio, um caldeirão com água para beber. Banheiros sem descargas. Seis, entre dez das salas de aula, tinham o teto desabado. Nos corredores, preservativos usados, drogas e alunas grávidas. A maioria dos professores mal aparecia. Essa era a escola em que eu estudava. Até que em 2003, Marcos e Aiza chegaram e perguntaram o que queríamos. Dissemos: 'Água e aula'. Rapidamente, tínhamos classes improvisadas e um bebedouro."

Essa é a história da EEEMF Ministro Jarbas Passarinho, em Camaragibe, região metropolitana de Recife, no olhar de Edjane Cavalcanti, aluna da Educação de Jovens e Adultos (EJA) entre 2001 e 2004. Depois de uma fase ruim, a instituição foi reerguida. Edjane se formou professora, estagiou e matriculou seus filhos na escola. Entre eles, Matheus,18 anos, (veja foto abaixo). "Estudar na Jarbas dá gosto. A escola é referência na cidade", diz.

A instituição sofria com questões relacionadas ao entorno - está no centro, região de pouca segurança ainda hoje. "Escolas em territórios vulneráveis costumam ser o principal equipamento social da região e acabam internalizando dinâmicas da área", diz Antonio Augusto Gomes Batista, coordenador da pesquisa Educação em Territórios Vulneráveis na Metrópole, do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Além disso, gestões anteriores não administraram o cotidiano da instiuição. Por três anos, a escola não prestou contas à secretaria de Educação, levando à suspensão do repasse de verbas, o que piorou o caos. Depois de muita pressão de alguns professores, o órgão chamou Aiza Fernandes e Marcos de Jesus para assumir a Jarbas. Ele como diretor e ela diretora adjunta. A dupla, conhecida pelo trabalho em uma escola vizinha, aceitou.

"Era preciso recuperar a infraestrutura, a parte pedagógica e a dignidade dos alunos."

MARCOS DE JESUS, diretor

 

Reconhecendo o território

Em novembro de 2003, quando Marcos chegou, o antigo diretor já havia deixado o cargo. Por isso, teve de descobrir tudo por conta própria. Na primeira semana, ele e Aiza visitaram os alunos. "A chegada em ambientes hostis deve ter diálogo e escuta atenta", diz Juliana Piauí, formadora de gestores da Comunidade Educativa Cedac, em São Paulo. Ele listou as causas mais urgentes e providenciou a instalação de um bebedouro que a escola já tinha, mas estava abandonado em um depósito. Na emergência da situação, Marcos tirou dinheiro do bolso para arcar com serviços na infraestrutura da instituição, pôr em dia a papelada e comprar um portão para a segurança de alunos e funcionários. "Gastei mais de 2 mil reais. Não via outra forma de resolver as coisas rapidamente", diz. Ainda que a atitude seja louvável, Juliana sugere outras saídas, como articular ações com a comunidade para levantar fundos ou escrever uma carta assinada por todos para o prefeito ou secretário, pedindo ajuda emergencial.

Depois, com a ajuda de um marceneiro, foram improvisadas quatro salas com compensados no pátio. Já a falta de docentes fez com que o diretor e Aiza assumissem algumas disciplinas. "O ideal é que o conselho escolar pressione a secretaria estadual para que ela resolva o problema", diz Juliana. As melhorias foram implantadas no primeiro mês da nova gestão e fizeram sucesso: em dezembro, o número de matrículas passou de 366 para 669.

Depois, hora de organizar o quadro docente. Havia os que nunca apareciam, chegavam atrasados e pouco trabalhavam. Aiza e Marcos fizeram uma reunião. "Dissemos que queríamos ajudá-los mas precisaríamos de profissionais que conferissem qualidade ao ensino", diz. Só seis ficaram. Os 20 restantes saíram da escola aos poucos. Para completar o quadro, Marcos chamou colegas da escola que geria antes e 25 toparam a empreitada.

 

Mobilizando a equipe
Quando se depararam com a nova gestão, o primeiro pedido dos estudantes foi acesso a água e a aulas. Antes da mudança geral na Jarbas, a turma não aprendia. Poucos professores compareciam à escola e os que lá estavam raramente trabalhavam.

 

Qualidade em toda parte

Aiza, hoje aposentada, lembra do quão duro foi encontrar uma sala que tinha só uma carteira universitária para ser usada como mesa da direção. Para envolver a todos na missão de reeguer a escola, ela foi disseminando a mensagem: "Qualidade é nossa meta". Com o passar do tempo, todos se apropriaram do discurso. Até os muros da quadra exibiam os dizeres em letras garrafais. A equipe pedagógica foi convidada a se debruçar sobre os resultados das avaliações externas e encontrar as defasagens a superar.

Foi Aiza também quem lidou com o tráfico de drogas no colégio. Ela adotou conversas particulares como estratégia. "Dizia que havia recebido uma denuncia anônima envolvendo o nome de quem traficava, mas não acusava ninguém. Falava que não acreditava e pedia para que tomassem cuidado", explica. Segundo Maria Suzana Menin, uma das autoras de Projetos Bem-Sucedidos de Educação em Valores: Relatos de Escolas Públicas Brasileiras, não é recomendável inventar histórias. "Melhor deixar claro que a prática não pode continuar e perguntar se precisam de ajuda. A princípio, não se deve fazer abordagens agressivas, como chamar a polícia, para não se expor a retaliações", explica.

Decidido a eliminar os entraves burocráticos que impediam a Jarbas de seguir em frente, Marcos ficou conhecido na secretaria de Educação de Pernambuco como "cri-cri". Depois de organizar todos os documentos da escola, semanalmente ele ia até o órgão pressionar para que a situação fosse regularizada. Só com esse processo concluído, a instituição voltaria a receber verbas que lhe eram de direito e a gestão poderia se inscrever em programas do governo. "É interessante montar um dossiê com fotos da escola, dados e assinaturas da comunidade para fazer mais pressão ainda", aconselha Juliana, do Cedac.

Enquanto pressionava, Marcos queria reformar a Jarbas. "A secretaria disse que para a obra começar, eu teria de ter um lugar para não interromper as aulas. Consegui em uma semana", lembra. O local foi o espaço de um clube próximo à escola. A gestão da rede cuidou da parte burocrática e arcou com os custos. Em maio de 2004, a escola tinha novo local, com dez salas de aula adaptadas, uma cabine de DJ transformada em copa e um palco para ser usado como a sala dos professores. Durante um ano, a Jarbas funcionou lá.

"A água da cisterna não era usada porque havia um sapo morto dentro dela."

AIZA FERNANDES, diretora adjunta

 

Credibilidade conquistada

Quando a escola voltou a operar na sede, contava com mais de 1.200 alunos. Enquanto funcionava no clube, a Jarbas reconquistou de vez a confiança da comunidade com projetos como o de atendimento às famílias. Docentes readaptados ficavam disponíveis para conversar e auxiliar pais sobre questões que envolviam alunos.

Hoje, há mais de dez anos, a instituição é disputada e ostenta um razoável Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 4 - o de Pernambuco é 4,1. Prestes a se aposentar, Marcos está tranquilo com o legado que deixa. "O próximo gestor vai encontrar ações que garantem a aprendizagem, contas em dia e infraestrutura digna", garante.

A escola, antes sem portão, agora tem fachada limpa, bonita e segura


Fotos: Lana Pinho

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