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Jornalismo

Uma radiografia completa dos currículos estaduais

Duas pesquisas analisam documentos para os anos fnais do Fundamental e o Ensino Médio

PorVictor MaltaRosi Rico

05/02/2016

Organizar e orientar a prática dos professores é premissa de todo currículo. Mas os detalhes de como esses documentos são elaborados e o que contêm variam bastante. Do muito ao pouco descritivo; dos que propõem apenas o que ensinar e aprender aos que incluem o como fazer tudo isso; dos que se restringem aos conteúdos aos que abrangem formação e avaliação. Não há um modelo único sendo utilizado no Brasil, como mostram duas pesquisas encomendadas pela Fundação Victor Civita (FVC), em parceria com Itaú/BBA, Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social e Instituto Península.

O Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) se debruçou sobre as orientações curriculares dos anos finais do Ensino Fundamental, enquanto a Fundação Carlos Chagas (FCC) se concentrou no Ensino Médio. Primeiramente, ambos tentaram analisar o que já havia sido produzido pelas 27 secretarias estaduais de Educação do país, utilizando como base os documentos e também questionários enviados aos representantes de todos esses órgãos.

Uma constatação em comum aos estudos foi a existência de um movimento intenso para construir ou reconstruir documentos próprios. Segundo o Cenpec, nos anos finais do Fundamental 19 estados promoveram a renovação ou reformulação dos currículos até 2014. Outros cinco estão sendo elaborados ou renovados, enquanto três estados não implementaram o não possuem os documentos. Já entre os 27 analisados pela FCC, nove entraram em vigência até 2010, 17 após esse ano e um estado (Alagoas) não formulou currículo (veja mapas abaixo).

Embora sigam as diretrizes nacionais, os documentos curriculares dos estados para as duas etapas do ensino são muito heterogêneos entre si, revelando relativa autonomia e criando textos bastante diferenciados. Além disso, eles são muito desiguais em termos de complexidade ou de detalhamento. Para Gisela Lobo Tartuce, coordenadora da pesquisa realizada pela FCC, essa diferença também depende das condições das secretarias de Educação. "Há os casos em que se têm equipes grandes e consolidadas há tempos; e há aqueles em que os técnicos são poucos e trabalham em situações mais precárias. Os documentos situam-se, assim, entre extremos, o que revela a variedade existente no país e a impossibilidade de dizer que há currículos que o representam por inteiro", completa a pesquisadora.

Ainda que heterogêneos, é possível apreender certas tendências nos documentos (veja as leis que os influenciaram na linha do tempo abaixo). Nos anos finais do Fundamental, as mudanças foram feitas com a adoção de novos princípios, que apontam para uma discriminação mais pormenorizada de conteúdos, com maior detalhamento do que se deve ensinar e aprender ao longo dessa etapa.

O grau de especificação de metas ou objetivos e das abordagens metodológicas influenciou a definição feita pelo Cenpec para os tipos de documentos, ainda que os nomes oficiais sejam bem variados. Também foi analisada a intervenção no processo didático, a articulação com os sistemas de avaliação, a abertura à iniciativa da escola em sua construção e o detalhamento de progressão e do ritmo das aprendizagens. Da maior concentração desses elementos ao menor, os pesquisadores chegaram a quatro modelos: currículo, matriz, proposta e diretriz. "Como um mesmo documento pode apresentar traços conflitantes, pertencentes a mais de um modelo, buscamos apreender o que é preponderante. A tentativa é de entender o que norteia a elaboração deles", diz Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de desenvolvimento de pesquisas do Cenpec.

Em 2014, a análise mostrou que 15, portanto a maioria, utilizam o modelo matriz curricular, termo que se refere a um modo de organização diferenciado, em que de um elemento considerado central decorre um conjunto de outros elementos, com um grau cada vez maior de especificação sobre o que ensinar e aprender. Por exemplo: do eixo temático para objetivos, depois conteúdos, expectativas de aprendizagem e assim por diante. "É diferente do que era feito antes dessa onda de renovação, cuja ênfase maior era na fundamentação teórica e na definição de objetivos mais gerais, o que fazia os documentos muito dependentes da formação dos professores e de sua capacidade de articular essas teorias e objetivos com a prática pedagógica", afirma Batista.

Iniciada em 2014 e concluída em abril de 2015, a pesquisa do Cenpec, após o estudo inicial de 23 documentos, restringiu seu foco para 16 deles, considerando como critérios o ano de elaboração - foram priorizadas as propostas mais recentes ou ainda em fase de implementação - e o ineditismo, optando por aqueles que não foram analisados em outros trabalhos conduzidos pelo centro de pesquisas.

Algumas questões pautaram esse segundo olhar mais aprofundado, como a verificação da influência dos sistemas de avaliação na elaboração dos currículos, a conciliação entre conteúdos universais e locais, a relação entre políticas centrais e locais, o modo como consideram a relativa autonomia das escolas, a atenção à diversidade cultural do país e a busca por especificidades que caracterizam os anos finais do Fundamental. Pontos difíceis de equilibrar, geram tensões e debates constantes, como exposto na reportagem que você confere na próxima reportagem.

Uma terceira parte se concentrou no estudo de três casos, com o objetivo de verificar os processos e condições de produção e apropriação das políticas curriculares. Para tanto, foram feitas entrevistas com gestores das secretarias estaduais de Educação envolvidos na concepção e na implementação dos documentos, e também com diretores, coordenadores pedagógicos e professores de escolas nesses locais. A escolha foi por Pernambuco, Acre e São Paulo, por representarem ciclos diferentes de implementação dos documentos, do inicial ao intermediário e avançado, respectivamente. Também foram consideradas a cobertura e a abrangência geográfica e a maior possibilidade de conseguir informações e entrevistas.

  


Como atrair o interesse dos jovens

No Ensino Médio, o currículo é reconhecido como um dos pontos fundamentais para reverter a situação de desinteresse e desmotivação dos jovens em permanecer na escola. Apontado como vilão por muitos, ele é classificado como desarticulado e com excesso de disciplinas e conteúdos. Não atenderia, portanto, às necessidades dos estudantes de 15 a 17 anos (leia avaliação sobre esse quadro na entrevista com Gisela Lobo Tartuce, da Fundação Carlos Chagas).

Para entender esse contexto, a pesquisa da FCC investigou o que está sendo proposto como política pública para o segmento e também procurou identificar quais as concepções que norteiam os documentos, as aproximações e os distanciamentos em relação às normatizações e/ou programas curriculares nacionais e como foram realizados os processos de implementação nas escolas.

Essa análise mais detalhada foi realizada em dez estados, selecionados após considerar tamanho da rede, dados de matrículas, evasão e repetência. Somou- se a esses elementos a necessidade de mostrar a diversidade existente no país. O resultado foi um painel formado por Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Piauí, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal.

Com esse recorte definido, a equipe de pesquisa realizou entrevistas com todos os gestores que cuidam do currículo do Ensino Médio nas secretarias desses estados, com o responsável pelo segmento na secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) e com o representante do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).

Um ponto de convergência entre os documentos investigados é a participação dos docentes no processo de produção. Quase a totalidade aponta isso, o que seria um reconhecimento da importância do envolvimento deles. "Quando os professores dão contribuição, as chances de implementação aumentam. Afinal, o documento não está acabado quando é entregue  pela secretaria e o educador não vai implementar sem realizar nenhuma modificação. Ele reconstrói o currículo de acordo com sua formação, suas convicções e as condições oferecidas pela escola. Ele é construtor", afirma Elba Siqueira de Sá Barretto, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e consultora da FCC e do Cenpec.

"A pesquisa não captou os mecanismos da participação dos docentes, mas as entrevistas realizadas nos permitem afirmar que ela é bastante desigual: pode ser baseada em representantes de professores ou envolver consulta a todos, via alguma plataforma online", explica Gisela. Para ela, essa diferença deriva, provavelmente, da própria desigualdade técnica entre as secretarias estaduais de Educação e, também, do tamanho da rede de ensino. "Mas causa espanto o fato de os jovens - os sujeitos do processo educativo -  não terem sido sequer ouvidos. Nenhuma das secretarias mencionou esses atores na elaboração curricular", completa a pesquisadora.

Oito dos dez estados pesquisados no Ensino Médio pela FCC possuem um texto introdutório no qual se discorre sobre fundamentos norteadores, normalmente centrados no aprimoramento do educando, no desenvolvimento de sua autonomia intelectual e do pensamento crítico. "Em geral, há intenção de ultrapassar um ensino focado apenas na transmissão dos saberes escolares para se alcançar outro, mais integrado, que articule diferentes tipos de conhecimentos e seja capaz de promover a participação do estudante", afirma Gisela. A questão principal é como conseguir chegar a isso.

Outra similaridade entre as entrevistas realizadas nas dez redes é que elas colocam como principal foco dessa etapa de ensino e motivação central dos alunos a continuidade de estudos. Daí decorreria o fato de o novo Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) - ao lado do Programa Ensino Médio Inovador (Proemi) - surgir como a proposta do governo federal que mais impacta as discussões sobre currículo e que induz as políticas estaduais. A influência de sistemas de avaliação externa aproxima, mais uma vez, os documentos curriculares dos segmentos de ensino estudados peloCenpec e pela FCC.

Ao investigar como estão os currículos nos estados, as duas pesquisas também contribuem para o atual debate sobre a Base Nacional Comum, documento que irá definir o que todos os alunos brasileiros precisam aprender em cada etapa da Educação Básica. "Todas essas tentativas dos estados de fazer propostas mais específicas, mais claras sobre o que deve ser aprendido e ensinado, precisam ser levadas em conta nessa construção", afirma Elba.

 

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Ilustrações: Bruno Algarve 

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