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Jornalismo

A vida não é dividida em Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Matemática, História, Geografia, Ciências, Arte e Educação Física. Por isso, a difícil missão de explicar o mundo fica limitada quando se tenta enquadrar as reflexões em uma dessas caixinhas. Como diz o sociólogo suíço Philippe Perrenoud, no livro Escola e Cidadania: O Papel da Escola na Formação para a Democracia (184 págs., Ed. Penso, tel. 0800- 703-3444, 74 reais): "É preciso então encontrar espaços-tempos inter ou pluridisciplinares, centrados na mobilização de recursos heterogêneos". Perrenoud continua esclarecendo que "não se trata de abrir mão de ensinar os conhecimentos disciplinares, mas de fazer com que eles contribuam para as competências que, até certo ponto, os transcendem".  A escola precisa, portanto, buscar novos caminhos para o aprendizado e estabelecer ligações diferenciadas entre os conteúdos. É comum que o desejo por mudanças nessa linha surjam quando a direção, a coordenação pedagógica e os docentes se reúnem para o planejamento. 

E isso ganha mais força quando o ano letivo em questão possui um grande tema, como acontece agora com 2016 e as Olimpíadas. Os projetos interdisciplinares respondem a esse anseio e são uma das maneiras de  organizar essas conexões. Mas a empolgação por sair unindo o máximo de conteúdos deve ser acompanhada de cautela. Para que alcance um bom resultado, o vínculo entre as áreas tem de ser muito bem planejado. Em trabalhos desse tipo, o coordenador pedagógico atua como um importante mediador e cria condições para que a equipe docente faça articulações interessantes e significativas. 

Vamos juntos, mas para onde?
A clareza sobre como os projetos interdisciplinares devem funcionar é fundamental para que todos os envolvidos sigam no mesmo trilho e para que as iniciativas não gerem a resistência dos professores. Para começar a fazer essa integração, o coordenador necessita entender que citar um tema em uma atividade com os alunos não inclui automaticamente aquela área no trabalho coletivo. Por outro lado, não adianta forçar a barra. "O objeto de estudo deve estar relacionado à disciplina e ser pertinente a ela",  alerta Priscila Campanholo, professora de Pedagogia do Instituto Vera Cruz, em São Paulo. Débora Rana, formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo, e consultora de GESTÃO ESCOLAR, usa o exemplo das Olimpíadas: "Em Matemática, é comum que tudo vire tema de gráfico. Mas, para que a dinâmica interdisciplinar ganhe sentido, o gráfico precisa ajudar a entender os jogos e eles têm de oferecer um bom contexto para se abordar gráficos". 

Como a preocupação maior é com a aprendizagem da garotada, o coordenador tem de garantir que, por meio do trabalho de cada um dos docentes, a turma passe a um nível maior de conhecimento em todas as áreas envolvidas. Portanto, vale pensar se há, de fato, a necessidade de envolver muitas disciplinas, já que um tema costuma ser relevante para poucas. E não dá para considerar interdisciplinar uma proposta que envolve um conteúdo de uma área sobre o qual os alunos têm domínio. Esse é o caso quando há um projeto de História em que os estudantes produzem um texto descritivo, algo que estudaram em anos anteriores. Dizer que Língua Portuguesa participou da proposta é inadequado.

O caso se inverteria, no entanto, se o objetivo fosse produzir um gênero ainda desconhecido por eles, como uma reportagem de jornal, e isso fosse problematizado nas aulas voltadas à produção textual. Esse modelo foi seguido pelo Centtro Educacional de São Gonçalo do Rio Abaixo (Cesgra), que leva o nome da cidade, localizada a 98 quilômetros de Belo Horizonte. Nas aulas de Geografia do 8º ano, o currículo previa, entre o segundo e o terceiro bimestres, o estudo dos países do continente americano. O coordenador da área, Ícaro Trindade, e o professor Juny Xavier avaliaram que
o tema poderia render um trabalho mais extenso, que resultasse na organização de uma feira temática. A proposta incluía que as turmas pesquisassem informações sobre as nações com os consulados e as embaixadas e entrassem em contato com esses órgãos por meio de cartas. Ícaro foi consultar a coordenadora de Língua Portuguesa, Claudete Couto, e descobriu que esse era um dos temas programados para o ano. Foi preciso apenas um ajuste no calendário.

De olho no planejamento de História, área que também é supervisionada por ele, Ícaro notou que era possível estabelecer mais uma conexão, pois as classes iriam estudar o processo de colonização da América do Norte. Formou-se, assim, um trio que compôs o projeto. Cada disciplina manteve seus objetivos e conteúdos, mas, como foram abordados em conjunto, eles contribuíram para um aprendizado mais potente (veja pontos que receberam a atenção dos gestores nas imagens ao longo da reportagem). 

Ícaro e Claudete, do Cesgra, uniram Geografia, Língua Portuguesa e História 

Olhar articulador

A visão ampla que o coordenador possui sobre as diversas áreas do conhecimento permite analisar, entre outras coisas, quais cruzamentos são possíveis e assim contribuir com os professores que buscam essas interfaces. Com isso, evita-se a criação de um currículo paralelo e a paralisação de tudo para que a interdisciplinaridade aconteça, como citou Felipe Bandoni, docente da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, no texto Qual Deve Ser o Limite da Interdisciplinaridade, publicado em NOVA ESCOLA. "O cotidiano acaba dividido em dois momentos distintos - o da aula e o do projeto - que não estão associados entre si. Muitos educadores acabam insatisfeitos com essa situação e reclamam por ter de interromper o que já estava planejado", escreveu Felipe. Geralmente, os docentes de Arte são prejudicados, pois as aulas são ocupadas pela produção de enfeites, como bandeirinhas no caso das Olimpíadas, limando o que estava previsto.

 

É comum que os professores tenham tido experiências ruins em iniciativas coletivas, portanto o coordenador precisa reservar algum tempo para quebrar possíveis desconfianças e mostrar as vantagens de romper a divisão hermética das disciplinas. "Nas reuniões pedagógicas, ele pode contar sua experiência com esses projetos, levar relatos de educadores que já os desenvolveram e mostrar os resultados alcançados e as produções finais", indica Nélio Bizzo, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Parte desse estímulo é deixar o planejamento anual de cada área disponível para a equipe e propor uma construção permanente e coletiva. 

O ideal é que o projeto interdisciplinar tenha no máximo um trimestre, para que a sistematização ocorra antes que alguns conhecimentos se percam. Também é fundamental programar momentos de troca entre os educadores - os ambientes virtuais são ferramentas valiosas porque permitem a elaboração de documentos coletivos e o compartilhamento de materiais e comentários. Além disso, ajudam a contornar a dificuldade de juntar todos os professores. Os coordenadores do Cesgra enfrentaram esse problema. Como os horários dos docentes não batiam, foram eles que realizaram a maior parte das reuniões. "Conversávamos individualmente com os educadores, discutíamos quais seriam as próximas atividades e, depois, sentávamos nós dois para fazer a articulação entre as disciplinas e voltávamos a  falar com eles sobre os ajustes", conta Ícaro.

Manuela e Laura conduziram o trabalho conjunto nos anos iniciais da Escola Carlitos 

Para Priscila, dificuldades como as de reunir toda a equipe em um mesmo horário precisam ser enfrentadas. "Nas reuniões gerais, quando todos estão presentes, vale dividir os docentes em grupos. Assim, enquanto alguns estão trabalhando em um projeto, outros podem estudar um texto ou analisar algo da sua área", sugere. Quem coordena os anos finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio ainda costuma encontrar desafios extras por não possuir a formação nas diversas disciplinas. O gestor pode se valer do saber dos professores e contribuir com suas habilidades de planejamento e seu conhecimento sobre didática, que o credenciam a colaborar com as diversas áreas. "O conceito de problema, percurso e sequência é o mesmo para todas. Além disso, há princípios comuns de organização de projetos", afirma Patricia Diaz, diretora de Desenvolvimento Educacional da Comunidade Educativa Cedac, em São Paulo.

O processo também é propício para realizar pesquisas e se aprimorar aproveitando a troca com outros educadores. Não pense que quem faz isso com professores polivalentes está livre de percalços. "Se, por um lado, a articulação dos conteúdos é mais contínua e as condições de trabalho são mais favoráveis, já que o docente fica mais tempo com o aluno e consegue acompanhar todas as disciplinas, por outro, a falta de aprofundamento nas áreas de conhecimento pode exigir mais tempo de estudo e de preparação", explica Patricia.

Monitorar para melhorar
Na Escola Carlitos, em São Paulo, antes que um trabalho interdisciplinar seja colocado em prática, as reuniões pedagógicas são utilizadas para que o tema seja estudado pelos docentes. É assim com um projeto, realizado desde 2012, que envolve Língua Portuguesa, Arte e Cinema, disciplina regular na instituição. A ideia é que as turmas de 4º ano, cujo planejamento prevê o estudo do gênero contos, adaptem a história de um filme para um livro, que também é ilustrado por elas. Em 2015, os alunos se basearam em Na Idade da Inocência (L'Argent de Poche, François Truffaut, 105 min., Silver Screen, 39,90 reais), chamado de "dinheiro de bolso", na tradução livre. "As crianças devem analisar e compreender o filme e saber quais recursos são utilizados para transmitir as emoções, de maneira que consigam fazer o mesmo na linguagem escrita. É fundamental, portanto, que os professores dominem esses conteúdos. Por isso, programamos quatro encontros preliminares", explica Laura Piteri, diretora pedagógica dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

Essas reuniões de formação são lideradas pela diretora-geral Manuela Anabuki. Com ela, as docentes estudam o filme e o diretor, discutem o que é uma adaptação, analisam as características de um conto e as etapas para a construção de um texto desse tipo. Depois, Laura continua acompanhando o trabalho das educadoras e define com elas os objetivos que a garotada deve alcançar (veja um resumo do planejamento realizado aqui) e as atividades a ser desenvolvidas em cada momento. Essa preparação serve de orientação para um monitoramento constante. Aspecto essencial, segundo Nelio. "A avaliação dos projetos costuma ser negligenciada porque, muitas vezes, se tem a ideia de que basta colocá-los em prática para que os resultados apareçam. Mas mesmo quando se tem equipes bastante engajadas, pode não ficar claro o que os alunos aprenderam. Por isso, é necessário acompanhar as etapas."

Diferentes estratégias complementam esse esforço avaliativo. A primeira é, mesmo depois de iniciados os trabalhos, manter uma rotina de reuniões, que podem ter diversos propósitos, entre os quais saber se a sequência didática está andando bem ou se é preciso propor novas atividades, planejar respostas aos imprevistos que surgem e orientar os docentes em relação aos registros que devem ser feitos e que colaboram para a equipe se aperfeiçoar. "Semanalmente, realizamos encontros entre os professores e a coordenação pedagógica. Avaliamos se as metas estão sendo cumpridas, analisamos as produções e fazemos as correções de rota necessárias", conta Laura. 

Os resultados precisam ser registrados, tanto quanto as lições aprendidas. Aí, cabe um olhar para a atuação de cada professor, uma reflexão sobre como os gestores desempenharam suas funções e, claro, a análise do que está sendo produzido pelos alunos. Com isso, se garante o aprimoramento do projeto para os anos seguintes. Quando o planejamento recomeçar, as experiências anteriores serão revisadas por todos e as novas metas poderão dar saltos em relação ao que foi conquistado. Dessa maneira, assim como os estudantes, os docentes e os gestores também aprendem e evoluem com a interdisciplinaridade. 

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