Reconstrução coletiva
Junto com a comunidade, diretor acabou com depredações e reduziu indisciplina e evasão
PorKarina PadialRosi RicoPatrick Cassimiro
09/11/2015
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Jornalismo
PorKarina PadialRosi RicoPatrick Cassimiro
09/11/2015
Na primeira semana de aula de 2014 na EM Darcy Ribeiro, em São José do Rio Preto, a 450 quilômetros de São Paulo, o então vice-diretor Diego Mahfouz Faria Lima se deparou com uma cena de filme: alunos ateavam fogo em cestos de lixo, seguravam cartazes anunciando uma "rebelião" e atiravam restos de merenda contra ele. Diego estava sozinho, já que dois dias antes a recém-empossada diretora, depois de ter o carro cercado pelos adolescentes quando chegava à instituição, pedira licença. Era preciso lidar com os ânimos exaltados. Ele, então, pegou o microfone e avisou que daquele jeito os estudantes não conseguiriam nada. Disse que queria ouvi-los. Logo, as vozes se multiplicaram em insatisfações. "Eles diziam que a escola era feia e suja, estava abandonada e tinham vergonha de estudar lá", lembra o hoje diretor. Surpreendidos com a iniciativa, os jovens identificaram nele um aliado e não um inimigo a ser combatido. Foi o primeiro ato de uma gestão participativa.
Cursou Pedagogia pela Unirp e fez três pós-graduações, entre elas uma em Gestão escolar.
"Tive professores que mostraram a necessidade de um novo olhar para a Educação, pautado em uma transformação coletiva e significativa para todos da comunidade"
Mas não era só a garotada que percebia o descaso reinante ali. O ambiente denunciava isso. Paredes marcadas pelo fogo provocado em cortinas, classes com janelas e carteiras quebradas e banheiros sem portas ou privadas. A violência estava nos jornais da região, em manchetes como "Aluno é pego com arma de fogo dentro da sala de aula" e "Agressão dentro da escola acaba na polícia". O reflexo: a taxa média de evasão era de 200 estudantes por ano, o índice de falta de professores era alto e os pais procuravam outras unidades, mesmo distantes, para matricular os filhos.
Era preciso um projeto que transformasse a instituição em todos os sentidos - o espaço físico, a relação de toda a comunidade com o lugar, o olhar para a aprendizagem e a participação dos jovens. Foi (tudo) isso que o diretor fez, de maneira concomitante, ao longo de um ano e meio.
Diego tem apenas 27 anos, mas já tinha atuado como gestor. Foram os bons resultados alcançados que o fizeram ser convidado para, inicialmente, ser vice-diretor onde ninguém mais queria estar. Sua experiência o fez perceber, assim que chegou, que as pessoas não sentiam que a instituição lhes pertencia. Junto com a equipe, composta de uma vice-diretora e uma coordenadora pedagógica, tratou, primeiro, de andar pelo bairro Santo Antônio, considerado um dos mais pobres e violentos do município. Conversou com comerciantes e visitou famílias de alunos.
Para ter um panorama melhor, reformulou a ficha de matrícula. Entre outras coisas, descobriu que recebia jovens de 11 bairros diferentes e que 14,1% dos responsáveis eram analfabetos. As informações o ajudaram a transformar a prática. Um exemplo foi o carro de som, comum na região, que, graças à colaboração de um pai, passou a circular pelo bairro para avisar sobre eventos como reuniões, festas e entregas de uniforme. Dessa maneira, as famílias, mesmo aquelas cujos membros não sabiam ler e as em que os filhos não entregavam os bilhetes, ficam sabendo das ações.
Depois disso, os gestores foram em busca de conhecer os professores e os funcionários. Elaboraram um questionário com perguntas sobre tempo na função, pontos positivos da escola, dificuldades enfrentadas, sonhos profissionais e pessoais. Também reuniram documentos dos anos anteriores sobre faltas, transferências, distorção idade-série, evasão e desempenho e transformaram tudo em gráficos e relatórios. Discutido com os docentes na semana de planejamento, o material, que contava com informações sobre a realidade da comunidade, algo desconhecido por muitos deles, embasou a definição coletiva dos objetivos e das ações prioritárias para o ano.
A EM Darcy Ribeiro tem 827 alunos nos anos finais do Ensino Fundamental e mais 180 na Educação de Jovens e Adultos (EJA), divididos em 28 turmas atendidas por 42 professores. Era muita gente para ser ouvida, mas Diego sabia que a transformação da realidade daquele lugar passava também pelo protagonismo juvenil.
Quais as expectativas dos jovens em relação à escola? O que gostavam mais e menos nela? Uma das respostas foi que a instituição era muito punitiva. E não tinha como negar: contavam-se cerca de 60 suspensões semanais. Os docentes relatavam que os bilhetes já ficavam assinados e bastava preencher o número de dias de punição antes de mandar os alunos para casa. Nessa dinâmica, muitos nem voltavam a frequentar as aulas.
Os gestores levaram o tema à reunião de professores. A ideia era elaborar normas de convivência, que não existiam, e, com base nelas, rever o regimento interno. O que derivou disso foi a construção de um texto-base, que contou com a cola boração dos funcionários e do conselho escolar, e foi discutido com os jovens. "Por ajudar a criar os acordos, eles se sentem responsáveis por garantir o cumprimento e passam a cobrar o mesmo dos colegas", diz Diego. O resultado foi o fim das suspensões e o início da conciliação.
Ao fazer um curso de mediação de conflitos oferecido pela Secretaria Municipal de Educação (SME), Diego percebeu que permitir aos próprios implicados em um problema encontrar a solução para ele proporcionava reflexão e corresponsabilização. O educador levou a proposta para a escola e, com a ajuda da SME, formou alunos mediadores - hoje, há jovens atuando nos três turnos.
Mas não é só nesse momento que os estudantes têm destaque. Às sextas-feiras, quando ocorrem assembleias, os temas propostos por eles são discutidos e votados. "Passamos a ter voz. Hoje, quando há um problema, tentamos encontrar uma solução que melhore a situação. Todos querem ajudar, inclusive o diretor, que deixa a porta da sua sala aberta para conversar", diz Geisa Cândida da Rosa, aluna do 8º ano e representante do projeto Vereador Mirim na Assembleia Legislativa.
Outros fóruns que dão sustentação a uma gestão democrática foram reativados. É o caso do grêmio, para o qual foram feitos eleição e estatuto. O conselho escolar e a Associação de Pais e Mestres (APM) foram ressignificados. Se antes seus membros nem se conheciam, porque eram convocados só para assinar documentos, agora, depois de uma formação sobre suas atribuições, se reúnem todo mês e se envolvem nas decisões pedagógicas, administrativas e financeiras.
Também uma vez ao mês há as avaliações institucionais, em que todos analisam questões sobre a organização e as ações das diversas instâncias. As informações, expostas nos murais, pautam as reflexões sobre o que precisa ser implantado, revisto ou aprimorado. "A valorização dos segmentos e o protagonismo dado aos jovens recuperou o sentimento de pertencimento que estava desaparecido", diz Maura Barbosa, consultora pedagógica de GESTÃO ESCOLAR e selecionadora de projetos de direção do Prêmio Educador Nota 10.
De um lado, alunos que não tinham interesse em estudar; de outro, professores cansados e desestimulados. Conclusão: mais de 200 reprovações por ano. A mudança exigia estruturar uma série de medidas e enfrentar as resistências de um grupo de educadores. Diego não se intimidou e, junto com a equipe, elaborou um plano de ações.
Uma das primeiras iniciativas foi implantar as tutorias de classe. Cada professor tornou-se responsável por uma turma. Isso significa que cabe a ele conhecer melhor os estudantes, suas dificuldades e avanços, conversar com os demais docentes da sala, chamar os pais, quando necessário, para reuniões e intervir em casos de indisciplina.
Também foi mudado o modelo de avaliação, agora contínua, para permitir ajustes na rota. Por isso, nos horários de trabalho pedagógico coletivo (HTPC), semanais e em dois turnos para que todos participem, os docentes debatem os roteiros de aprendizagem e, com base neles, fazem registros do rendimento da turma e os compartilham. Esse material favorece a reflexão sobre as práticas e o planejamento de ações. "Garantir tempo e espaço para que todos olhem juntos para um mesmo objetivo é importante para conseguir o avanço dos alunos", diz Cybele Amado, presidente do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (Icep).
Outra estratégia desenvolvida, desta vez como apoio pedagógico, é o plantão de dúvidas. Divididos em turnos diários, os docentes realizam atividades diversificadas e orientam os estudos dos jovens no contraturno. A iniciativa é aberta a todos. Também depois das aulas regulares, ocorrem ações de alfabetização com uma educadora enviada pela SME. A medida foi necessária porque, após sondagem, foram identificados 99 alunos do 6º ano com problemas de leitura e escrita.
Para tornar a instituição mais atrativa, há oficinas de teatro, cinema e grafite, entre outras. A maioria é feita com a colaboração da comunidade e algumas com recursos do programa Mais Educação do Ministério da Educação (MEC). Os destaques são o Clube de Astronomia e a Camerata Jovem Beethoven. "Estou na escola há quase 20 anos e não via a hora de me aposentar. O ambiente era péssimo", diz Maria Silvia Dela Giustina, professora de Ciência do 7º ao 9º ano. "A mudança reascendeu nossa motivação. Não foi um processo fácil e vários docentes que não concordavam com o projeto foram embora. Mas hoje venho trabalhar com prazer e, mesmo me aposentando em 2016, não pretendo deixar de dar aulas aqui."
O aprimoramento do processo educativo também passa pela realização do conselho de classe, com representantes de todos os segmentos, e das reuniões de pais, que começaram com a presença de 50 responsáveis e hoje recebem cerca de 500.
A equipe gestora também entra em ação sempre que o sistema aponta que um adolescente faltou dois dias consecutivos: manda bilhetes, telefona para os pais ou vai à casa do aluno identificar a razão da ausência e incentivar o retorno. "Eu tinha receio de matricular minhas filhas por tudo que ouvia. Mas os professores me pediram um voto de confiança e eu dei. Não me arrependo. A escola é aberta à participação de todos e eu mesma já fui voluntária nas oficinas do contraturno", conta Ana Lúcia Pinheiro Dutra, mãe de Anaelly e Rita, 11 e 12 anos, ambas do 6º ano.
A degradação das instalações também se refletia na maneira como os alunos reagiam, por meio de posturas agressivas e com mais depredação. Com o repasse de verbas bloqueado por falta de prestação de contas dos antigos gestores - algo que os atuais já regularizaram -, o jeito foi pedir ajuda. Diego enviou um e-mail para mais de 100 diretores pedindo restos de tinta - as escolas da rede são da mesma cor. Em pouco tempo, tinha o suficiente para pintar duas das salas mais detonadas. Depois, a SME liberou dois pintores para trabalhar na Darcy Ribeiro por uma semana. A notícia da arrecadação, porém, se espalhara. Os gestores rodaram a cidade recolhendo as doações, pois muitos queriam contribuir. Até funcionários e famílias dos alunos ajudaram na pintura.
Outros espaços foram reformados. A sala de informática, antes desativada e transformada em depósito, e a biblioteca, na qual caixas colocadas em frente às prateleiras, muitas nunca abertas, tornavam os livros quase inacessíveis, voltaram a estar a serviço de alunos, professores e pais, que agora podem fazer empréstimos de obras.
O fundo da instituição, que vivia trancado, recebeu melhorias. O muro que a separa da rua tinha buracos por onde entravam e saíam drogas. Hoje ele é parte da praça de leitura, com grafites feitos pelos alunos e caixotes que exibem livros. Um jardim sustentável coabita o espaço. A unidade ganhou três novas salas: uma de jogos, uma para o plantão de dúvidas e outra multimídia. A quadra e os banheiros foram arrumados.
Pelo histórico de depredação, a conservação que se seguiu à reforma impressionou a todos. A diferença é que, quando os estudantes se sentem o pertencentes à escola, o vandalismo não se justifica. A mudança de postura foi reconhecida pela rede com a troca das carteiras velhas por novas.
A surpresa após todo esse trabalho ocorreu no início deste ano. Os alunos foram recepcionados com um café da manhã. "Passamos um vídeo com fotos do antes e depois da instituição. Foi uma maneira de os estudantes verem o que todos tinham feito por eles e, assim, se sentirem valorizados", diz o diretor. Enquanto isso, os funcionários seguravam cartazes nos quais estava escrito: "Sejam bem-vindos à nossa nova escola".
Fotos: Erick Men e Ilustração: Bruno Nunes
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