Dois velhinhos
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
Dois inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um consegue espiar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, para o outro é a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz.
Com inveja, pergunta o que acontece. Deslumbrado, anuncia o primeiro:
Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remorde-se no seu canto.
O mais velho acaba morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dorme, antegozando a manhã. O outro, maldito, lhe roubara todo esse tempo o circo mágico do cachorro, da menina, do enterro de rico.
Cochila um instante é dia. Senta-se na cama, com dores espicha o pescoço: no beco, muros em ruína, um monte de lixo.
Conto publicado no livro Mistérios de Curitiba, Ed. Record
Dalton Trevisan produz contos curtos, escritos em linguagem tão concisa que muitas vezes chega a ser elíptica: ele mesmo declarou que seu caminho vai "do conto para o soneto e dele para o haicai". Seu estilo é direto e ágil e suas narrativas apresentam os dramas de pessoas que se movem entre as expectativas de felicidade e realização que aprenderam a alimentar e a realidade crua e desumana, que as frustra e aniquila. As relações humanas que apresenta comprovam que a realidade é degradada e cruel: as pessoas se maltratam e se ferem em vez de manterem no cotidiano vínculos de carinho e respeito. Assim, marido e mulher estão sempre em conflito, pais e mães oprimem os filhos, amigos se confrontam e disputam o poder... Nem os animais de estimação escapam desse moinho de sentimentos: sua ingênua dedicação recebe impaciência e indiferença como retribuição.
Sua escrita sintética e contundente pode ser considerada uma referência constante no trabalho de muitos contistas recentemente surgidos, como os da Geração de 90.
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Biografia
Tímido e arredio, o curitibano Dalton Trevisan foge do assédio dos jornalistas e guarda sua vida pessoal a sete chaves. Não fornece seu telefone, tem raros amigos nos círculos literários e por vezes se recusa a receber pessoalmente os prêmios conquistados por seus contos magníficos. Mas é possível imaginá-lo à noite, percorrendo às escondidas as ruas da capital paranaense, escutando atrás das portas as manifestações dos desejos escondidos da população, alimentando-se deles, trazendo-os à superfície e incorporando-os a seus escritos.
Não por acaso, o escritor que muitos consideram o maior contista brasileiro contemporâneo costuma ser designado pelo título de um de seus livros de histórias curtas: o Vampiro de Curitiba.
Nascido em 14 de junho de 1925, Dalton Jérson Trevisan estreou na literatura em 1945, quando ainda cursava Direito. Entre 1946 e 1948, tornou-se conhecido como editor da revista literária Joaquim, que reuniu ensaios de críticos como Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux, textos em prosa e poemas inéditos de autores brasileiros e traduções de Joyce, Kafka e outros nomes das letras mundiais. Ao mesmo tempo, continuou a burilar os seus contos, em geral ambientados na capital paranaense. O conto foi praticamente o único gênero a que Trevisan se dedicou, pois além deles escreveu apenas um romance, A Polaquinha (1992).
Em 1959, publicou Novelas Nada Exemplares, que lhe valeu o Prêmio Jabuti: o primeiro dos muitos de sua carreira. Em 1965, foi lançado O Vampiro de Curitiba, com o emblemático personagem Nelsinho, de uma sensualidade febril, que assedia velhinhas, respeitáveis donas-de-casa, virgens e prostitutas polacas ou bem brasileiras. Dez anos depois, seu livro Guerra Conjugal foi adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Em 2003, dividiu o 1º Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, com o livro Pico na Veia: o vampiro recluso permanece ameaçador.
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