O primeiro beijo
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar?
Ele foi simples:
Sim, já beijei antes uma mulher.
Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
Conto publicado no livro Felicidade Clandestina, Ed. Rocco
Clarice Lispector mergulha na intimidade dos seus personagens e a investiga profundamente, em busca do que seria o próprio núcleo existencial dessas criaturas. Utiliza para isso uma prosa rica em características poéticas sonoridades, analogias, figuras de linguagem e a exposição do fluxo psicológico dos personagens. Muitas vezes, eles adquirem a consciência do próprio existir a partir de uma iluminação repentina produzida por um fato aparentemente menor. Esse momento crucial de descoberta de si mesmo e toda a solidão e as dúvidas que essa descoberta revela ao ser humano constituem os temas recorrentes da ficcionista.
Escrever é, assim, um processo de conhecimento da realidade psicológica dos seres, essencialmente emocional e intuitivo. E por meio dele se desvendam segredos íntimos, desejos reprimidos, pensamentos constrangedores, atinge-se a intimidade mais profunda. Esse mergulho na alma humana é marca de muitos prosadores de nossos dias. Lygia Fagundes Telles, Osman Lins, Ivan Ângelo, Samuel Rawet, Nélida Piñon produzem textos que revelam alguma influência dos de Clarice, feiticeira das palavras.
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Biografia
Em 1975, Clarice Lispector compareceu ao I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá. Sua participação, limitada à leitura de um conto, confirmou a opinião de muitos críticos: ela tecia encantamentos com as palavras.
Clarice nasceu em Tchetchelnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. Veio ainda bebê para o Brasil, onde seus pais levavam uma vida de comerciantes judeus pobres, primeiro no Nordeste, depois no Rio de Janeiro. A partir de 1939, já na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, trabalhou como tradutora e secretária. No ano seguinte, tornou-se redatora e repórter da Agência Nacional, iniciando sua carreira jornalística.
Em 1943, Clarice terminou o curso de Direito, casou-se com o colega de faculdade e futuro diplomata Maury Gurgel Valente e publicou seu primeiro romance, Perto do Coração Selvagem. No ano seguinte, o casal se mudou para Nápoles. Na Europa, Clarice terminou seu segundo romance, O Lustre, e trabalhou num hospital, cuidando de pracinhas feridos. Em 1946, o casal estava na Suíça, onde Maury era diplomata. Em Berna, ela teve seu primeiro filho, Pedro (1948), e terminou de escrever A Cidade Sitiada. Trabalhava com a máquina no colo, para cuidar da criança.
Na década de 1950, Clarice e a família fixaram-se nos Estados Unidos, onde nasceu seu segundo filho, Paulo, em 1953. Seis anos depois, separada do marido, voltou ao Brasil com os filhos e retomou as traduções e o jornalismo. Em 1960, com 40 anos, lançou seu primeiro livro de contos, Laços de Família. Em 1961, publicou o romance A Maçã no Escuro, considerado o melhor livro do ano. Seguiram-se os contos de A Legião Estrangeira e o romance A Paixão Segundo G. H., ambos de 1964, aclamados pela crítica e pelo público.
Em 1966, Clarice sofreu um duro golpe: adormeceu com um cigarro aceso e um incêndio no quarto provocou queimaduras por todo o seu corpo. Sua beleza foi atingida, mas não o seu status de primeira-dama das letras brasileiras. Em 1977, lançou a novela A Hora da Estrela, adaptada para o cinema. Morreu no mesmo ano, vítima de câncer.
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