Carta de um defunto rico
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLA
19/09/2016
"Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro nº 7..., da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta... Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.
Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.
Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.
Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.
Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.
Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.
É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si etc. etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.
Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.
De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.
Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos.
Mas... estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.
Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da superexistência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.
Os que não conseguem isso ai deles!
Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.
O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.
Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.
É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.
O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.
Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.
Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.
Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.
Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que...
Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por "tuta-e-meia"; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres... ai de ti!
Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.
Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre...
Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.
Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?
Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.
Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do
José Boaventura da Silva.
N.B. Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. J.B.S."
Posso garantir que transladei esta carta para aqui sem omissão de uma vírgula.
Lima Barreto escreveu em linguagem simples para ser compreendido pelas pessoas humildes, pois via seus contos e romances como uma arma contra os mecanismos de dominação social. Seus textos apontam no dia-a-dia dos subúrbios cariocas as formas de pressão e controle que a sociedade exerce sobre os indivíduos. Mostram-se situações em que a liberdade de viver é limitada por preconceitos de cor e de classe ou simplesmente porque as idéias diferem das do senso comum. O autor desmascara intenções ocultas nos gestos e atitudes e investiga como os homens são capazes de justificar para si mesmos suas decisões, particularmente as que produzem ascensão social, o que o aproxima de Machado de Assis.
Por ser um observador crítico do cotidiano, Lima Barreto conseguiu transportá-lo para seus livros com olhos de repórter sensível o que originou uma renovação temática próxima daquela que os modernistas iriam mais tarde promover. Prosadores como Antonio Callado e João Antônio, que aproximam literatura e jornalismo, podem ser considerados seus continuadores.
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Biografia
Mestiço, de origem humilde, grande escritor: essas palavras poderiam descrever tanto Machado de Assis quanto Lima Barreto, considerado por muitos críticos seu sucessor natural. Porém, Machado de Assis alcançou a maturidade literária e pessoal, enquanto Lima Barreto não conseguiu domar os seus demônios.
Nascido em 13 de maio de 1881, no Rio de Janeiro, Afonso Henriques de Lima Barreto era filho de um tipógrafo e de uma professora, ambos mulatos. Perdeu a mãe aos 7 anos. Aos 16, ingressou na Escola Politécnica, mas cinco anos depois seu pai enlouqueceu e o rapaz teve de abandonar os estudos para sustentar a família. Em 1903, com 22 anos, conseguiu um cargo modesto na Secretaria de Guerra e passou a desenvolver uma produção literária sistemática. Em 1904, começou a escrever o romance Clara dos Anjos e, no ano seguinte, iniciou a elaboração de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em Lisboa em 1909. Também passou a trabalhar como jornalista e fundou, em 1907, a revista Floreal. Quatro anos depois, o Jornal do Comércio publicou, em folhetins, seu romance Triste Fim de Policarpo Quaresma.
Em 1914, Lima Barreto foi internado por alcoolismo no Hospício Nacional. Apesar disso, continuou a colaborar com o jornal Correio da Manhã e a revista Careta, entre outras publicações, e viu o jornal A Noite publicar em folhetins, em 1915, seu romance satírico Numa e a Ninfa. Em 1916, foi internado para tratamento de saúde, devido ao alcoolismo. Em 1917, teve sua candidatura à Academia Brasileira de Letras sumariamente ignorada. Nessa ocasião, escreveu textos em apoio a greves e colaborou na imprensa socialista. Em 1919, ano da publicação do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, candidatou-se de novo à ABL sem se eleger e foi internado no hospício pela segunda vez. Em 1921, apresentou-se candidato pela terceira vez à Academia, mas desistiu "por motivos pessoais". A essa altura, as seqüelas do álcool eram irreversíveis. Morreu em 1º de novembro de 1922.
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