O que está por trás da batida do funk
Reportagem da edição 287, de novembro de 2015, indicada por Mônica Pinto
15/01/2016
Este conteúdo é gratuito, entre na sua conta para ter acesso completo! Cadastre-se ou faça login
Compartilhe:
Jornalismo
15/01/2016
"Achei o projeto da professora incrível e a matéria muito interessante. A construção da linha do tempo, a ampliação do repertório cultural, a preocupação com as formas de registro e o cuidado estético são elementos fundamentais a serem tratados com estudantes dessa faixa etária. Metodologicamente, é um trabalho exemplar."
Mônica Pinto, gerente de Desenvolvimento Institucional da Fundação Roberto Marinho (FRM) e jurada da 18ª edição do Prêmio Educador Nota 10.
O que está por trás da batida do funk
Funks de Mc Guimê e outras músicas do gênero não saíam da cabeça nem da boca da sala do 4º ano da EEEF Professora Delfina Loureiro, em Lagoa Vermelha, a 260 quilômetros de Porto Alegre. Em vez de torcer o nariz e proibir os alunos de cantar, a professora Alessandra Bremm resolveu conversar e saber o que conheciam sobre música. "Poucos tinham referências além dos hits das rádios", diz. Então, ela planejou um estudo de canções brasileiras de várias épocas.
Pedagoga graduada pela Universidade de Passo Fundo (UPF).
"As aulas de Metodologia do Ensino de História da graduação me ajudaram com exemplos de como trabalhar de forma concreta elementos ligados à História e como usar a linha do tempo de maneira adequada."
Para Antonia Terra, docente do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e selecionadora da área no Prêmio Educador Nota 10, o diferencial do trabalho de Alessandra é romper com a tradição escolar para turmas dos anos iniciais do Fundamental. Geralmente, os professores organizam os conteúdos começando pela história do indivíduo, depois da família, do bairro, aumentando o raio de atuação. "Alessandra escolheu um tema da história cultural, provando que as crianças têm condições de estudar épocas diferentes com base em temas diversos", diz Antonia. Outro mérito é ter dado abertura para o que a meninada considera parte de seu universo cultural. "Ela olha o funk sem preconceitos", diz Sandra Garcia, educadora de Pedagogia da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Para começar o trabalho, a professora pediu que cada estudante escrevesse um texto sobre música, tratando dos artistas e estilos de que gostava. O funk dominou as produções. Feito isso, Alessandra explicou que todos pesquisariam e analisariam letras e clipes de músicas de estilos diversos e tomariam nota das informações que considerassem mais importantes.
A tarefa seguinte era entrevistar os adultos da família sobre quais músicas eles gostavam quando mais novos. "Queria conhecer o contexto cultural familiar e fazer as crianças descobrirem composições antigas." Marco Antônio e Luiz Ulisses Moreira Pasquali, gêmeos de 11 anos, contaram aos colegas que os pais gostavam de sertanejo. Os dois conheciam o estilo porque estavam aprendendo a tocar violão com as canções Chico Mineiro, de Tonico (1917-1994) e Tinoco (1920-2012), e Menino da Porteira, de Sergio Reis. "Aprendemos que o sertanejo de raiz fala muito sobre a vida do homem do campo", diz Kauê da Silva, 10 anos.
O passo seguinte foi explorar os principais gêneros e artistas desde 1910. "Optei por analisar os últimos 100 anos, para estabelecer um recorte amplo em conteúdo, mas não muito longo do ponto de vista temporal", diz Alessandra. A turma ouviu Pelo Telefone, de Donga (1890-1974), considerado o primeiro samba gravado em estúdio, em 1916. A professora contou que antes disso as composições eram só reproduzidas ao vivo. Já as transmissões de rádio começaram em 1922.
A ideia para prosseguir com o estudo era que a garotada pesquisasse por conta própria, mas a escola estava sem acesso à internet. "Então, eu mesma selecionei vídeos e textos sobre os estilos, organizei slides e materiais impressos", diz a docente. Ela usou como fonte os sites dos artistas. Por exemplo, viniciusdemoraes.com.br e sergioreis.com.br/site, além de blogs, jornais e o Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira. "A professora teve o trabalho de ler e preparar o próprio conteúdo, em vez de se basear em coisas prontas", diz João de Carvalho, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A turma do 4º ano estudou um pouco de samba, sertanejo, MPB, rock e funk, é claro. A cada música colocada em cena, Alessandra tinha o cuidado de situá-la no contexto histórico do qual fazia parte. Também incentivava o grupo a fazer análises das letras. Com isso, todos entenderam que questões do passado são diferentes das que tangem a atualidade.
Entre as aprendizagens, os alunos descobriram que havia um famoso compositor de samba onde moram, no Rio Grande do Sul: Lupicínio Rodrigues (1914-1974), autor do hino do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Aprenderam que algumas músicas-tema de novelas infantis, como Alegria, Alegria e A Banda, tinham sido criadas na época da ditadura militar, e ainda estudaram as origens do funk. "Não sabia que esse ritmo começou nos Estados Unidos, com o nome de soul, e o artista mais famoso era o James Brown (1933-2006). Quem trouxe o funk para o Brasil foi o Tim Maia (1942-1998). Mas quando comparamos a música Não Quero Dinheiro, composta por ele, e Plaquê de 100, do Mc Guimê, vimos que o estilo mudou muito", explica Emiliny Reche, 11 anos.
1916 - PELO TELEFONE. Primeiro samba é gravado em estúdio por Donga.
1946 - CHICO MINEIRO. Uma das músicas mais representativas da moda de viola e do sertanejo de raiz é lançada por Tonico e Tinoco.
1962 - GAROTA DE IPANEMA. Vinicius de Moraes (1913-1980) e Tom Jobim (1927-1994) fazem uma das canções mais famosas da bossa nova, que se torna conhecida mundialmente.
1966 - ALEGRIA, ALEGRIA. Caetano Veloso compõe a música, que, assim como Apesar de Você, de 1970, de Chico Buarque, é um marco artístico contra a ditadura no Brasil.
1985 - SERÁ. Legião Urbana, inspirado no punk inglês, estoura com essa canção. Titãs e Paralamas do Sucesso surgem na mesma década.
2000 - O BAILE TODO. Bonde do Tigrão lança CD de funk homônimo à música. Outros funkeiros também fazem sucesso, como Mc Guimê e Mc Gui.
Para sistematizar o conhecimento reunido, Alessandra propôs ao grupo fazer uma linha do tempo da música brasileira com base no que tinha sido aprendido (veja alguns marcos acima). A linha é um importante recurso no estudo de História. Mas deve ser trabalhada com cuidado. "O tempo histórico é um tempo social, construído pelo homem, não é linear. Apresentar os fatos linearmente pode dar a falsa impressão de que o tempo histórico é uma sucessão de etapas, como se as coisas estivessem em constante evolução ou que um acontecimento levasse ao outro", alerta João.
A meninada também elaborou biografias sobre os artistas estudados. As produções foram reunidas em um volume e entregues à biblioteca da escola. As aulas sobre a trajetória da música despertaram o olhar de historiador na turma. "A escola tem a responsabilidade de fazer as crianças entenderem o tempo atual, visitando o passado. Os alunos tinham uma questão do presente, o funk, e investigaram o passado da música. Alessandra poderia ter escolhido qualquer outro tema. O importante é desenvolver o pensamento histórico. Mas lançar mão de algo que é de interesse deles ajuda muito", diz Antonia.
Fotos: Janaina Ribeiro. Ilustração: Raphael Salimena.
Foto entrevistada: Arquivo pessoal/Mônica Pinto
Últimas notícias