Série Especial Retratos da Exclusão
Reportagens publicadas nas edições 269 até 273, de fevereiro a junho/julho de 2014, indicada por Maria de Salete
15/01/2016
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Jornalismo
15/01/2016
"A revista teve a coragem de fazer algo essencial para a resolução do problema da exclusão no Brasil, que foi encarar os fatos sem medo. Além de participar da série de reportagens sobre o assunto como entrevistada, quando eu estava na coordenação do Unicef, gravei depoimentos para o site. Certa vez, me perguntaram o motivo disso. Respondi: 'Porque queremos um novo cenário, em que todos estarão dentro do espaço escolar'."
Maria de Salete, educadora, foi secretária de Educação de Salvador e coordenou o Programa de Educação do Unicef no Brasil de 2007 a 2014.
Os sem-escola
"No Brasil, todas as crianças estão na escola. O país conseguiu praticamente universalizar o acesso à Educação." Você, com certeza, já ouviu essas frases nos noticiários, mas o que existe por trás desse "praticamente"? Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012 (Pnad), 92,5% das crianças e dos jovens de 4 a 17 anos estão na escola. É um número considerável, mas todo bom professor sabe que 92,5% não é 100%. Os 7,5% que faltam significam 3.366.299 pessoas que não têm direito de aprender.
NOVA ESCOLA viajou pelo país para conhecer alguns desses meninos e meninas e encontrou relatos revoltantes, que você vai conhecer nesta edição e nas próximas. Por trás das estatísticas, estão crianças como João*, que vive na zona rural de Castanhal, a 85 quilômetros de Belém, e aos 14 anos desistiu de estudar por nunca ter aprendido a ler, ou a menina Marina*, do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, que vive com o pai em situação de pobreza e, aos 9 anos, está fora da escola. Cada um deles ajuda a contar uma história que, infelizmente, não está nos discursos oficiais.
Embora o país tenha avançado de modo considerável nas últimas décadas, ainda não conseguimos trazer todos para a escola. As primeiras barreiras a superar são econômicas. A exclusão afeta justamente as camadas pobres, já privadas de outros direitos constitucionais.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, organizadores da campanha Fora da Escola Não Pode!, as crianças mais atingidas são oriundas de populações vulneráveis, como negras, indígenas, quilombolas, pobres, sob risco de violência e exploração e com deficiência. A maioria tem entre 4 e 5 anos, ou entre 15 e 17, e grande parte vive nas regiões Norte e Nordeste, que apresentam os maiores índices de pobreza e de baixa escolaridade do país. Há um porcentual maior de exclusão na zona rural e, em geral, os mais atingidos são aqueles que vivem em famílias com renda per capita baixa.
Para agravar o cenário, é nessa parcela vulnerável da população que costumam aparecer mais casos de abandono escolar por causa do trabalho infantil - caracterizado tanto pela prática de atividades remuneradas quanto pela realização de tarefas domésticas e pelo auxílio na lavoura. A realidade vem mudando com o apoio de programas como o Bolsa Família, que atrelam a frequência escolar ao recebimento do benefício, mas ainda persiste em diversas regiões do Brasil.
Merecem atenção também problemas de infraestrutura e de oferta de Educação. O número de escolas não é suficiente para atender à demanda, uma parcela considerável delas não oferece acessibilidade para alunos com deficiência, muitas funcionam em condições precárias e em locais de difícil acesso, onde não há rede de transporte adequada. Há que se considerar, ainda, entraves socioculturais, com destaque para a discriminação racial. Todos os indicadores de acesso à escola e de conclusão dos estudos mostram que crianças e jovens negros estão em desvantagem em relação aos brancos.
Atender a cada um desses meninos e meninas pressupõe uma articulação efetiva entre as diferentes áreas do governo. Como explica Maria de Salete Silva, coordenadora do Programa de Educação do Unicef, "é fundamental que exista uma busca ativa a essas crianças e esses adolescentes. É preciso que Educação, Saúde e Assistência Social se articulem para entender onde eles estão e quais problemas precisam ser sanados para trazê-los às salas de aula". Além de olhar para quem já está fora, é imprescindível atentar a quem estuda e começou a ficar para trás, tendo probabilidade de desistir. "Um dos principais fatores de risco à permanência das crianças na escola é o fracasso escolar, representado pela repetência, que provoca elevadas taxas de distorção idade-série", alerta ela.
Conhecer de perto os problemas que afastam crianças e jovens da escola é, portanto, fundamental para garantir a todos o direito à Educação. Para ajudar você a ter um retrato mais claro da exclusão escolar, dividimos esta série de reportagens em cinco capítulos, voltados a cada um dos grupos mais vulneráveis do país. Na primeira delas, mergulhamos nos desafios vividos pelos povos indígenas Brasil a fora. Nas próximas edições vamos falar sobre crianças negras na pobreza das grandes cidades; populações que vivem no campo, em quilombos e comunidades ribeirinhas; meninos e meninas vítimas de exploração e violência; e crianças com deficiência. Acreditamos que o acesso a essas informações seja o primeiro passo para mudar esse cenário.
Povos indígenas isolados do aprendizado
O guarani Edgar* tem 19 anos e não estuda desde os 12, quando terminou a primeira etapa do Ensino Fundamental. Ele vive na aldeia Y'hovy, em Guaíra, a 642 quilômetros de Curitiba, e sua história ajuda a entender os problemas da exclusão escolar de crianças e jovens indígenas no Brasil. A área em que mora fica na fronteira com o Paraguai e ainda não está demarcada, razão pela qual a maioria das aldeias da região não conta com uma escola oficial. Para crianças e adolescentes sobra a opção de estudar nas escolas "de branco" localizadas dentro da cidade.
Surgem aí os primeiros entraves. O principal é a falta de documentos. Como nasceu do lado de lá da fronteira, Edgar* não possui certidão de nascimento brasileira e diz que, por isso, teve sua matrícula negada nos dois estabelecimentos de ensino em que tentou ingressar. Só entre os índios de até 10 anos no Brasil, mais de 30% não possuem qualquer registro civil, segundo o Censo Demográfico 2010. A ausência do documento não deve impedir o direito de aprender, mas por falta de informação a família do garoto não procurou outras instâncias e a Secretaria de Educação do Paraná diz não ter recebido denúncias a respeito.
Enquanto a situação não se resolve, a saga do jovem começa a ser repetida por outro Edgar* da mesma aldeia, que, além de homônimo, tem uma história semelhante à do amigo. Nascido no país vizinho, o adolescente de 15 anos está prestes a terminar o 5º ano e terá de mudar de escola. Porém, já diz ter ouvido que em outras instituições não há vagas para quem, como ele, não tem documentação. "Não quero parar de estudar, mas já disseram que eu não poderei mais", afirma.
O drama dos dois guaranis não existiria se as orientações para a Educação Indígena fossem seguidas à risca. Por lei, o ideal não seria eles irem para a escola comum, e sim terem acesso a uma instituição oficial na aldeia. O direito a um ensino diferenciado, específico, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitário é garantido por lei e está descrito na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em normativas do Conselho Nacional de Educação (CNE) e no Plano Nacional de Educação (PNE) 2001- 2010.
Segundo Rita Potyguara, coordenadora-geral de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação (MEC), a criação de uma escola indígena independe da condição jurídica da terra. No entanto, de acordo com a secretaria do Paraná, a questão fundiária é um grave obstáculo. Muitas aldeias de Guaíra estão em áreas de disputa judicial com os proprietários rurais da região, tornando as relações extremamente tensas.
A solução viável no curto prazo seria matricular essas crianças em escolas regulares e ofertar na aldeia, paralelamente, um ensino focado nas tradições próprias. "Na falta de Educação Indígena apropriada, eles deveriam ter assegurado o acesso à instituição de ensino regular e frequentar as aulas de conhecimentos e práticas indígenas no outro período, mas em quase todas as aldeias o ensino é improvisado", diz Henrique Gentil Oliveira, promotor do Ministério Público Federal do Paraná (MPF-PR). Na aldeia Y'hovy, essas aulas são dadas em uma cabana precária, de chão de terra e paredes feitas de ripas de madeira velhas. Ali, a professora Paulina Martines ensina elementos da cultura guarani, como a medicina, os valores, a língua materna avá guarani e o dialeto mbyá. Dos 32 estudantes atendidos por ela, apenas 15 frequentam também as escolas da cidade a que têm direito por lei.
Histórias como as de Edgar* se repetem pelas diferentes regiões do país e ajudam a compor um quadro preocupante. Muito longe dali, a mais de 3 mil quilômetros de Guaíra, a pequena Sara* compartilha a tristeza de não estudar. Com 5 anos, a indiazinha tembé vive em Santa Luzia do Pará, a 169 quilômetros de Belém, e não está na pré-escola por não ter educador nem uma unidade disponíveis na aldeia. "Quero estudar, como as outras crianças", reclama a menina. Puyr Tembé, coordenadora de Educação Indígena da Secretaria de Educação do Pará e moradora do mesmo lugar, afirma que, apesar dos esforços, faltam vagas para todos. "Nas aldeias mais distantes e pobres, com cinco a dez famílias, o governo não constrói escolas. Nas mais próximas, foram feitos 17 prédios, mas estão fechados por falta de docentes", conta.
Os obstáculos enfrentados pelos indígenas variam de acordo com a região do país e incluem questões geoclimáticas - como a distância de determinadas aldeias - e técnicas - como a produção de material didático específico e formação de professores de cada etnia. Os índios se deparam com a falta de escolas e professores, transporte escolar insuficiente, desinformação por parte dos profissionais do setor e até preconceito, que gera abandono. "Como não há um acompanhamento sistematizado do governo federal para garantir a eficácia da proposta, essa Educação depende de cada estado e das relações que ele tem com os povos locais, nem sempre amigáveis. Assim, podem ocorrer desvirtuamentos", diz Luís Donisete, pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo (USP).
O problema se agrava pela falta de informações sobre a questão dos índios no país. Não há um número preciso de quantos representantes das 305 etnias existentes no Brasil estão fora da escola. Segundo o Censo Escolar 2012, há uma queda significativa nas matrículas indígenas, que passam de 129.123 (49,87%) nos anos iniciais do Ensino Fundamental para 51.597 (19,9%) nos anos finais e apenas 26.424 (10,2%) no Ensino Médio, indicando uma alta taxa de evasão. "No médio Xingu, constatamos a oferta escolar indígena só até o 5º ano. Frequentar escolas não indígenas se torna impossível no local por causa das grandes distâncias e os alunos são obrigados a parar de estudar", diz Paulo Leivas, coordenador do Grupo de Trabalho em Educação Indígena do MPF.
O tema está em debate e houve avanços significativos. "A transferência da responsabilidade por essa Educação da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o MEC, em 1991, foi uma grande conquista. Com isso, ela deixou de ter um caráter assistencialista para ser obrigação do Estado", afirma Donisete. A partir daí, outras medidas reforçaram a importância de olhar para as especificidades desses povos, como o PNE 2011-2020, em tramitação no Congresso, que aborda a questão.
"O país tem uma das legislações mais interessantes e abrangentes que se conhece, mas os indígenas são povos desfavorecidos historicamente. Para reverter essa situação, é fundamental que haja articulação entre os diferentes setores da sociedade, a fim de entender as necessidades regionais e trabalhar em conjunto para atendê-las", afirma Unai Sacoma, chefe da Plataforma Amazonas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Somente com um olhar atento para esse público é possível impedir que trajetórias como a de Sara*, do jovem Edgar*, de seu amigo da mesma tribo e de tantos outros se repitam.
Periferias sem aulas e sem direitos
Um emaranhado de barracos sem reboco domina a paisagem do Subúrbio Ferroviário, área periférica de Salvador que abrange 22 bairros e tem cerca de 600 mil habitantes - quase 25% da população da cidade. À medida que o visitante se distancia da bela Baía de Todos os Santos, descobre as vielas de Coutos, Periperi, Oxumaré e outras localidades cujos nomes remetem a portugueses, índios e africanos que habitaram a região. Esquecido pelo poder público, o lugar carece de bibliotecas, unidades de saúde, praças, áreas de lazer e delegacias. Nessa terra sem muitas perspectivas de futuro, o narcotráfico ganha importância. "Muitos alunos abandonam a escola por causa de ameaças de gangues que controlam o comércio de drogas", diz Maria*, diretora de uma unidade estadual da região, enumerando nomes e histórias de quem evadiu. As instituições de ensino são um dos poucos órgãos públicos da região, que cresceu com o aumento das ocupações irregulares nas décadas de 1970 e 1980. Em sua rotina, Maria* faz as vezes de assistente social, resolve conflitos e lida com o tráfico, além de tentar convencer, muitas vezes em vão, meninos e meninas a não desistir dos estudos.
A violência é só um dos fatores da longa lista que tira crianças e adolescentes da escola nas periferias das grandes cidades. As principais causas são a pobreza e os problemas vinculados a ela: condições precárias de moradia, ensino descontextualizado, situações de racismo e discriminação e falta de transporte, entre outras questões. Nesse contexto de precariedade, fica evidente uma faceta perversa da sociedade brasileira. Segundo dados de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 70,8% da população extremamente pobre do país é constituída por pessoas dos grupos de raça ou cor preta e parda. A razão é o próprio processo histórico do Brasil, que não implementou políticas de apoio a esses grupos após a abolição, contribuindo para afastá-los de direitos básicos. "No Brasil, a desigualdade educacional tem nome, endereço e cor de pele", assinala Silvio Kaloustian, coordenador do escritório de São Paulo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A maioria (63%) das crianças e dos adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola no país é afrodescendente.
A ausência do poder público acarreta também outros problemas. No Subúrbio Ferroviário, Juliana*, 17 anos, abandonou a 8ª série depois de 145 faltas. Tentou voltar, mas sequer foi reconhecida pela equipe docente e desistiu logo depois. Gabriela*, 16, largou os estudos na 6ª série. Ambas estavam grávidas quando saíram da escola e engrossam as estatísticas que relacionam a evasão à maternidade, em especial entre meninas negras e pobres. O relatório Situação da Adolescência Brasileira 2011, do Unicef, mostra que 6,1% das garotas de 10 e 17 anos sem filhos não estudavam em 2008, último dado disponível. Na mesma faixa etária, entre aquelas com filhos, a proporção chegava a 75,7%. Também é grande o número de alunas que evade para cuidar de irmãos menores. É o caso de Andréa*, 12 anos. Ela conta que a mãe é ambulante e trabalha nos arredores da estação ferroviária. A garota não consegue estudar porque cuida da caçula, Juliana*, 6 anos, que está sem vaga na escola.
Outros motivos da evasão são a indisciplina e o desinteresse pelos estudos. Para uma parcela considerável dos jovens, a realidade exterior à escola é mais atrativa que a da sala de aula. Essa aparente indiferença tem a ver, na realidade, com baixa aprendizagem, atraso escolar, repetência e distorção idade-série. "As instituições têm sua parcela de responsabilidade, pois são pouco atraentes e muitas vezes veem determinados alunos como um problema, afastando-os", afirma Antônio Augusto Gomes Batista, coordenador de desenvolvimento de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Um exemplo é Gabriel*, 16 anos. O menino desistiu da escola em 2013 alegando que prefere ir às lan houses do Subúrbio Ferroviário ou à Praça de Paripe ouvir música com os amigos.
A cerca de 1,7 mil quilômetros de Salvador, no Complexo da Maré, conjunto de comunidades pobres do Rio de Janeiro com uma população de 130 mil habitantes, a história se repete. Júlio*, 14 anos, também não vê motivos para estudar. Abandonou a escola aos 12 anos, quando estava no 6º. Diz que parou porque "demora muito tempo para passar de ano". Filho de uma usuária de crack, ele mora com a avó, que é faxineira. Sem outras instituições a que recorrer, ela tenta sozinha resolver o problema. "Eu pagava até van para ele ir, mas nem isso adiantou alguma coisa. Quando eu falo para ir à biblioteca da ONG Redes da Maré, ele diz que é coisa de criança."
A área em que o menino e a avó vivem enfrenta os mesmos problemas de tantas outras do país. A Maré começou a ser ocupada no início da década de 1940 e hoje conta com 16 comunidades. Próxima ao campus Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), teve seu crescimento impulsionado pela construção da instituição, da Avenida Brasil e de outras vias expressas. As obras, no entanto, não trouxeram muitos ganhos à população local. Marina*, 9 anos, foi criada ali e mal escreve o nome. Tampouco fala com fluência. A menina vive com o pai, que ficou dez anos preso e hoje trabalha a noite inteira em um negócio próprio. Ele alega falta de tempo para levá-la à escola. "Sei que é minha obrigação e não estou fazendo." A garota aparece vez ou outra na biblioteca da ONG próxima. "Um dia, acordei e ela já tinha se arrumado. Penteou o cabelo e disse: 'Pai, me leva para a escola'", conta ele.
Resolver todos esses problemas significa enfrentar de fato as desigualdades. Segundo a antropóloga Jaqueline Santos, assessora do Programa Diversidade, Raça e Participação, da ONG Ação Educativa, muitas propostas afirmativas estão em curso. "A oferta de uma Educação contextualizada, com atenção ao ciclo de vida, à cultura e à etnia, é uma estratégia importante para tornar a escola mais significativa e quebrar o ciclo da pobreza", comenta. Em âmbito geral, estão sendo realizadas ações importantes voltadas às populações de periferia. Programas de transferência de renda, de construção de moradias populares e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, do Ministério da Saúde, são exemplos.
O desafio é fazer com que todas essas iniciativas funcionem de modo efetivo. "A política pública precisa alcançar as localidades, formando uma rede de proteção articulada, com assistência social, postos de saúde e Conselho Tutelar", afirma Jaqueline. Hoje, um grande problema é o desencontro de informações entre os órgãos. Em Salvador, por exemplo, o Conselho Tutelar recebe denúncias, mas tem dificuldade em chegar às famílias. "As falhas nesse processo tornam ainda mais complicado o acesso às crianças", diz Márcia Guedes, promotora do Ministério Público da Bahia.
Avançar rumo a uma Educação de qualidade, no caso dos meninos e meninas negros das periferias brasileiras, é superar a herança racista. Só assim eles poderão recuperar a capacidade de sonhar com um futuro e com projetos de vida.
Educação no campo sem perspectivas
No meio do caminho há montanhas, pedras, riachos, estradas malcuidadas, sol escaldante, chuvas torrenciais e outros tantos obstáculos. Quando se fala de Educação no campo, o problema número 1 é: "Como chegar à escola?". Moradores de locais afastados dos centros urbanos e, às vezes, de difícil acesso, milhares de crianças e adolescentes da zona rural, de quilombos e de comunidades ribeirinhas se veem impedidos de avançar nos estudos porque as salas de aula simplesmente estão fora do alcance.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), toda criança tem direito a uma "escola pública e gratuita próxima a sua residência". Em lugares como o Quilombo de Bombas, no município de Iporanga, a 313 quilômetros de São Paulo, a realidade é outra. A comunidade fica a três horas de caminhada da cidade e só é alcançada por uma trilha com subidas e descidas íngremes, trechos de mata fechada e nenhuma segurança. A área é dividida em duas: Bombas de Baixo e de Cima, uma aos pés e outra no topo de um morro. Na primeira, funciona uma escola multisseriada para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Em condições precárias, com janelas quebradas e vazamento de água, a casa serve de moradia para Dolores Pedroso, que vive ali durante a semana e leciona a quatro alunos. Na parte alta da comunidade, há outra instituição para essa etapa, em condições semelhantes, que atende sete crianças.
Os estudantes que conseguem completar o 5º ano param em seguida. Não há, no quilombo, instituições de ensino voltadas aos anos finais do Ensino Fundamental ou ao Médio, e a recomendação do município é que todos estudem em Iporanga. Como a comunidade fica distante, ir e voltar a pé todos os dias é inviável. A opção seria passar a semana na cidade, mas a empreitada causa receio às famílias. "A secretaria quer colocá-los morando com alguém que a gente não conhece. Quando tentamos isso, teve adolescente indo para as drogas e para a prostituição. Acabaram nem estudando", diz Edmilson de Andrade, conselheiro dos quilombos da região e pai de uma das jovens que está sem estudar. Soma-se ao quadro o preconceito que existe contra essa população. "Muitos moradores da cidade tacham os quilombolas de negros sujos que vivem no mato e reclamam por acreditar que há políticas demais os beneficiando", comenta Nilto Tatto, coordenador da equipe do Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA).
Apesar dos obstáculos, as famílias não desistem. Eduarda*, 14 anos, está sem estudar há quatro, mas tenta se manter em contato com a leitura e a escrita. Grande admiradora da literatura, a garota carrega consigo um caderno com textos e ilustrações que produz inspirados em livros que pega emprestados na escola que frequentou nos anos iniciais. "Quando não misturo o que acontece em duas histórias, mudo alguma coisa ou só copio os textos. Mas sinto falta dos novos conhecimentos que aprenderia nas aulas", conta. As expectativas dela e de outros 17 adolescentes são o foco da mobilização dos adultos, que buscam o apoio de pesquisadores e universidades para reivindicar, da prefeitura e do governo do estado, a construção de escolas e a alocação de docentes para lá.
O caso de Bombas é uma amostra do que se repete pelo Brasil, não apenas em terras quilombolas mas também em regiões ribeirinhas e na zona rural como um todo. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2012, para cada 5,1 matrículas nos anos iniciais no campo, são feitas 2,8 nos anos finais e somente 0,6 no Ensino Médio. "Não há vagas em condições adequadas para ser preenchidas pelos estudantes da zona rural", explica Mônica Molina, coordenadora da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília (UnB).
Entre as soluções pensadas para resolver o problema está a nucleação, que consiste em reunir alunos de regiões menos populosas, até então atendidos por escolas menores, em uma única instituição de ensino maior. De 2001 a 2012, essa política foi responsável pelo fechamento de 39 mil escolas do campo, mas não conseguiu garantir que todos os alunos fossem atendidos.
Um dos principais entraves da nucleação é o transporte, área que requer uma estrutura nem sempre condizente com a realidade das prefeituras menores. "Parte do transporte feito com recursos municipais é voltado a alunos de escolas estaduais", comenta Rui Aguiar, oficial de programas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A situação exige cooperação financeira e técnica entre prefeitura e estado, o que nem sempre acontece pelo país afora.
Chegar à escola não é o único problema enfrentado pelos 764.513 meninos e meninas do campo que estão sem estudar no país. Baixa qualidade do ensino, problemas de aprendizagem, repetência e evasão são parte de um ciclo comum na zona rural. Dados de 2010 do Ministério da Educação (MEC), os últimos disponíveis, mostram que a defasagem idade-série no campo nos anos finais chega a 43,8%, diante de 27,8% na área urbana. Ou seja, longe das cidades, quatro em cada dez alunos estão atrasados, sob o risco de desistir.
Foi o que aconteceu com João*, 14 anos, morador de uma agrovila em Castanhal, a 85 quilômetros de Belém. O local é composto de um conjunto de casas do programa Minha Casa, Minha Vida, em que moram famílias que trabalham na roça. Apesar de ter acesso a transporte e estar matriculado, o menino abriu mão da escola em 2013. "Eu não presto para aprender, não", diz, se esquivando de explicar o que o levou a abandonar os estudos. Aos poucos, explica que estava na 4ª série, já havia repetido o ano quatro vezes e ainda não sabia ler e escrever. "Às vezes, eu perdia o ônibus no dia da prova porque tinha certeza de que ia errar tudo", conta. Sem políticas consistentes de reforço escolar, João* logo fará parte das estatísticas nacionais segundo as quais 22,8% das pessoas no campo com 15 anos ou mais são analfabetas.
Os problemas de aprendizagem se agravam pela distância entre o que é ensinado e a realidade dos alunos. "A escola trata os quilombos, por exemplo, como se fossem coisa somente de um passado distante", lembra Rafael Sanzio dos Anjos, professor da UnB. A questão briga diretamente com a legislação vigente, que defende o direito de a população da zona rural ter uma Educação que contemple as especificidades de sua vida.
Essa falta de clareza gera também problemas de gestão. José Camilo Ramos de Souza, formador de professores na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), comenta que nas regiões ribeirinhas há pessoas vivendo nas áreas secas e nas que alagam. Quando a água sobe, esses alunos ficam ilhados ou precisam se mudar para a parte seca. Os calendários escolares, no entanto, são diferentes e não é possível trocar de instituição sem perder o ano. "Quem pensa a escola hoje são pessoas da cidade que somente transferem o seu olhar urbano a outro contexto", diz.
Resolver essas equações exige discussões estruturadas com representantes das diferentes realidades do campo. Alguns avanços têm sido vistos, como a aprovação, em março deste ano, da Lei nº 98/2013, que dificulta o fechamento de escolas rurais, exigindo uma justificativa da Secretaria de Educação, um diagnóstico do impacto da ação e a análise da opinião da comunidade escolar. É um passo importante no sentido de ouvir as necessidades locais, mas ainda há muito por fazer.
Exploração que afasta da escola
Toda criança deve, por lei, ingressar na pré-escola aos 4 anos para uma trajetória de Educação Básica que só termina aos 17, no fim do Ensino Médio. O direito, porém, não é realidade para milhares de meninos e meninas que estão fora da escola por diferentes tipos de exploração e violência. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2009, 40.470 crianças e adolescentes de 5 a 14 anos trabalham e não estudam. Para compor um retrato mais fiel do problema, a estatística oficial é insuficiente. Ela não inclui parte dos 611.961 indivíduos da mesma faixa etária que realizam atividade remunerada e, a rigor, estão matriculados na escola, mas têm desempenho ruim ou faltas constantes. Nem contabiliza os afazeres domésticos, as atividades informais e o enorme contingente de crianças e adolescentes explorados sexualmente. Por ser uma atividade ilícita, a exploração é órfã de informações precisas. Os registros mais utilizados vêm de ligações do Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Como a denúncia não ocorre sempre que o crime é cometido, muita gente fica de fora.
Antônio* é morador da periferia de Fortaleza e filho de pais usuários de drogas. Passava fome quando, aos 11 anos, largou a escola para vender doces no sinal. Foi abordado no local por uma mulher que passou a procurá-lo e a lhe dar presentes e dinheiro em troca de sexo. A partir daí, o menino ingressou na exploração sexual e não voltou aos estudos. José* nasceu em outra periferia, a de Belém. O garoto foi abusado na infância. Na adolescência, tinha conflitos com o pai, que não aceitava sua homossexualidade. Teve dificuldades para progredir na 5ª série e deixou a escola. Aos 11, já era explorado sexualmente. Quando os pais se separaram, a mãe o deixou em um abrigo. Atualmente tenta reconstruir a vida, namora e participa de um projeto para elevar sua escolaridade. "Hoje eu não faria sexo por dinheiro, a não ser que não tivesse outra opção", conta.
Entre as possíveis causas da exploração sexual, a pobreza e a ausência de uma boa estrutura familiar se destacam. "Há casos em que a família procura o conselho tutelar para entregar a criança e dizer que não consegue educá-la", relata Monalisa Cardoso, coordenadora de projetos da ONG Amici di Bambini. "O conselho acaba vendo outros problemas reunidos, como alcoolismo e violência doméstica", explica ela.
O abuso sexual que surge em casa é entendido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como uma porta de entrada para a exploração.
Maria* foi abusada pelo pai na infância, deixou a escola na 3ª série do Ensino Fundamental e passou a morar na rua, onde foi prostituída. Viveu assim até os 13 anos, quando o Ministério Público (MP) tomou conhecimento do caso e a encaminhou para uma casa de acolhimento. Lá, ela encontrou dificuldades para se adaptar à rotina e teve crises de abstinência alcoólica. Com o tratamento químico, a melhora foi parcial. A garota, hoje com 17 anos, está casada e tem um filho, mas não conseguiu mais retomar os estudos.
O preconceito piora a questão ao considerar o envolvimento com a prostituição uma ação voluntária de quem é preguiçoso. Não raro, a violação de seus direitos não é compreendida pelas vítimas. "Algumas demoram para entender que eram exploradas, que o direito existe e um adulto, maior e responsável, agiu contra ela", conta Marisa Mohedano, assessora de projetos sociais do Vira Vida, do Serviço Social da Indústria (Sesi).
Outro tipo de violência que priva meninos e meninas da chance de estudar é o trabalho infantil, questão em que o papel da família também se destaca. Na zona rural, trabalhar desde cedo é cultural. É comum ajudar em casa, na lavoura ou no trato com os animais. Quem não faz nada é malvisto. Já nos centros urbanos, segundo Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da OIT, os pais apoiam porque é um jeito de os filhos se ocuparem e complementarem a renda. "As políticas públicas para o setor são voltadas a quem vive na extrema pobreza, o que nem sempre é a realidade das cidades maiores, em que o jovem trabalha até para consumo próprio", diz.
Feira de Santana, a 116 quilômetros de Salvador, é o segundo município baiano com maior incidência de trabalho infantil, atrás apenas da capital do estado, segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. No Centro de Abastecimento, um mercado público da cidade, e nos arredores dele, crianças são vistas empurrando carrinhos de mão e vendendo produtos. Algumas, vestidas com o uniforme escolar, fazem jornada dupla, que atrapalha a aprendizagem. Pedro* tem 10 anos e chegou à cidade com a mãe, vindo da Paraíba. Ela trabalha na feira e ele a ajuda, além de cuidar das motos estacionadas no local. O garoto quer estudar, mas não pode porque, quando chegou, não havia vaga para transferência.
A escola raramente se responsabiliza por trazer esses alunos de volta às salas de aula. O problema se agrava pela distância entre o ambiente escolar e a realidade deles. O conteúdo em classe tem uma abordagem que não condiz com a vida de quem já circula em ambientes mais adultos e é explorado sexualmente. Isso não significa que eles não queiram estudar, mas, como conta Monalisa, se sentem envergonhados pela distorção idade-série e não se identificam com os colegas.
Em relação ao trabalho infantil, há ainda a permissividade das famílias, que veem na atividade remunerada uma boa alternativa à criança ou ao adolescente, mesmo que apenas no curto prazo. Essa visão tem de ser desconstruída. "Se a escola é atrativa, tem qualidade e os pais percebem que manter os filhos no estudo permite um futuro melhor, a perspectiva muda", explica Maria Cláudia. Ela defende que o ideal seria nunca precisar trabalhar e poder ingressar em uma boa universidade, como fazem os jovens de classe média. Mas a lei prevê o trabalho a partir dos 14 anos na condição de aprendiz, com jornada reduzida, tempo para atividades escolares e fiscalização do Ministério do Trabalho (MT). O modelo é uma solução possível, mas se restringe aos centros urbanos, sem chegar à zona rural, onde o trabalho infantil é aceito pela família com naturalidade.
A importância da escola na solução da questão é inegável. Muitos professores e gestores, no entanto, não sabem como lidar com trajetórias problemáticas. Há vontade de ajudar, mas falta preparo para saber como e políticas concretas voltadas ao problema. "A universalização da Educação de qualidade terá de tratar de forma particular os grupos excluídos, desenhando políticas específicas. Assegurar o direito de aprender é melhorar as condições de ensino, acompanhar cada um e combater os problemas que colocam em risco a permanência na escola. As crianças sob risco de violência e exploração precisam de atenção redobrada", destaca Silvio Kaloustian, coordenador do escritório de São Paulo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Uma inclusão só no papel
"Desculpe, mas a escola tem muitas escadas e não comporta uma cadeirante como a Soraia*." "Só temos uma auxiliar e não há profissionais para atender a Maíra*". "O Dênis* tem apenas 5 anos, eu sei, mas, antes de matriculá-lo, acho melhor fazer um teste, ver se ele consegue acompanhar a classe." "Não sabia que a Luana* tinha síndrome de Down. Prefiro que ela saia da escola, não queremos ela aqui." "Recebemos a inscrição da Roberta*, mas não há vagas na EMEF perto da casa de vocês, ela precisa esperar." Essas foram algumas das respostas ouvidas por mães de crianças com deficiência ao tentar garantir o direito de seus filhos de estudar.
"Desde 1989, negar o acesso escolar a essas crianças é proibido", explica Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, coordenadora do Grupo de Trabalho de Inclusão de Pessoas com Deficiência do Ministério Público Federal (MPF). Como aparece no artigo 8º da Lei nº 7.853, "constitui crime punível com reclusão de um a quatro anos e multa (...) recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado por motivos derivados de deficiência".
Os problemas, no entanto, nem sempre chegam ao conhecimento do Poder Público e, quando chegam, não são tratados com a devida atenção. "Se a família está em busca de escola e recebe uma resposta negativa, continua procurando opções. Denunciar não é prioridade naquele momento", conta a deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), que acompanha o tema de perto.
Como as negativas não são dadas por escrito, fica difícil provar. A mãe de Dênis* , por exemplo, conta que procurou uma escola particular em Santo André, região metropolitana de São Paulo. Quando a diretora viu o filho, que tem uma paralisia cerebral leve, exigiu um teste escrito e depois recusou a matrícula. "Não havia testemunhas e não tenho provas, fica a minha palavra contra a da instituição de ensino", conta. O mesmo ocorreu com Luana*, de Salvador, que tem síndrome de Down e estudou por apenas três meses. A mãe se desentendia com a escola por achar que a menina era tratada de forma negligente e não aprendia. Um dia, ela ficou presa em uma sala e precisaram arrombar a porta. O episódio gerou mais brigas. "A diretora chegou a dizer que não sabia que minha filha tinha síndrome de Down. Depois a convidou a se retirar da escola", diz a mãe. Não foi feita uma denúncia e a garota está sem estudar.
Recusas e cancelamentos de matrícula, embora também aconteçam na rede pública, são mais frequentes na particular. "Como o processo de inclusão vem ocorrendo com mais intensidade nas públicas e existe um maior controle por parte do governo, elas tiveram de se abrir a esse aluno e hoje têm uma expertise maior no assunto", acredita Maria Eugênia Pesaro, psicóloga do Lugar de Vida - Centro de Educação Terapêutica, e doutora em Psicologia Escolar do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). É uma vantagem importante, mas não significa que os problemas estão sanados.
As leis de inclusão e obrigatoriedade da matrícula não vieram acompanhadas de formação adequada aos educadores nem de condições de trabalho. "Ninguém se adapta da noite para o dia. As escolas buscam alternativas, mas dá para entender a angústia de lidar com o desconhecido", diz Sulamita Meninel, mãe de um jovem com paralisia cerebral e formadora da Secretaria Municipal de Santos, a 77 quilômetros de São Paulo.
A preocupação de muitos docentes é como organizar a prática de modo a incluir o aluno com deficiência e dar a ele condições de aprender. Não basta apenas colocá-lo na classe, tem de haver uma rede de apoio ao professor - composta de coordenação pedagógica e profissional de atendimento educacional especializado (AEE) - capaz de orientá-lo sobre as especificidades de cada estudante e sobre como incluí-lo.
Do lado das famílias, há ainda um receio sobre como o filho será tratado. "Quando a criança vai ingressar na escola regular, existe uma preocupação dos pais com o espaço arquitetônico, se há banheiro no andar em que ela estará, se há escada. Eles querem professores preparados e se preocupam que haja cuidadores responsáveis pela alimentação e pela higienização do aluno", comenta Elaine Dal'bo Lemos, diretora do setor escolar da Escola de Educação Especial AACD Lar Escola.
O problema é que esses recursos ainda estão em construção no país. Segundo o Censo Escolar 2011, apenas 10% das escolas de Ensino Fundamental têm sala de AEE, sendo que só em 9% há profissionais alocados para esses espaços. Falta também infraestrutura mínima. Apenas 19% têm sanitários adequados e 17% contam com dependências e vias adaptadas. A família de Soraia* foi a 16 escolas de Osasco, região metropolitana de São Paulo, e todas alegaram problemas arquitetônicos. Para os pais de Maíra*, de São Paulo, a resposta foi que poderiam colocar a turma dela no térreo, mas não havia profissionais para acompanhá-la. Os pais se dispuseram a encontrar uma pessoa por conta própria, mas a escola não aceitou. No caso de Roberta*, o problema foi falta de vagas. A escola em que a menina estudava parou de atender crianças com deficiência em 2011 e, desde então, ela aguarda na fila para se matricular em uma EMEF próxima de sua casa.
Segundo Marcia Rabelo, promotora da Infância de Salvador, todas as denúncias que chegam a ela sobre evasão são relacionadas a problemas no processo de inclusão. "As escolas recebem recursos para oferecer AEE, mas alegam falta de condições para atender os estudantes. Se uma unidade não tem esses recursos, temos de investigar se há crime de improbidade e responsabilizar os culpados por mau uso do dinheiro público", diz ela.
Às dificuldades da Educação, somam-se entraves relativos a outras áreas. Em muitos locais, falta transporte adequado e os alunos são levados em ônibus comuns. "Muitos não conseguem subir no transporte e há quem nem chegue ao ponto porque as calçadas não ajudam", comenta Eugênia Gonzaga. A dificuldade aumenta conforme a criança cresce. "Enquanto a mãe consegue carregar, ela vai. Depois, não dá mais." Questões específicas da área de Saúde também exigem atenção. "A falta de próteses e de um acompanhamento clínico, por exemplo, dificulta a frequência à escola", explica Martinha Clarete Dutra dos Santos, diretora de Políticas de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC).
Para articular Educação, Saúde e Assistência Social, foi criado um programa que cruza dados do Censo Escolar com o cadastro de pessoas de até 18 anos que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC) - concedido a quem tem alguma deficiência e é de famílias de baixa renda. A iniciativa, chamada de BPC Escola, visa identificar quem não estuda e resolver o problema. "No começo do programa, em 2008, 70% estavam fora. Hoje, são 30% (140.274)", conta Martinha.
É fundamental, portanto, entender a complexidade do tema e ter um olhar atento a ele. "Precisamos nos conscientizar dos benefícios amplos da Educação inclusiva, tendo em vista que o ambiente humano heterogêneo é mais interessante e mais rico para o processo de aprendizagem de todos os estudantes", defende Rodrigo Mendes, presidente do Instituto Rodrigo Mendes.
Garantir o direito de toda criança e adolescente à Educação vai além da ideia de formar gente capacitada para o mercado de trabalho ou para o desenvolvimento do país. "A escola é muito mais do que o campo do conhecimento e da aprendizagem, é um lugar de reconhecimento e de pertencimento da infância. Mesmo uma criança com deficiência severa, em que não se vê resposta, tem o direito a esse espaço de ser criança", explica Maria Eugênia. Promover a inclusão é formar uma geração de cidadãos capazes de olhar a pessoa com deficiência de outra maneira, sem medo do dito "diferente". Essa mudança é fundamental.
* Para preservar a identidade dos entrevistados, os nomes são fictícios.
Foto entrevistada: Arquivo pessoal/Maria de Salete
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