Brincadeiras não têm sexo
Reportagem da edição 203, de junho/julho de 2007, indicada por Jacqueline Cristina Jesus Martins
15/01/2016
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Jornalismo
15/01/2016
"As questões tratadas aqui despertaram meu interesse e contribuíram com um projeto que fiz com o 1º ano do Ensino Fundamental, em que tematizei a possibilidade de meninas e meninos brincarem juntos. Apareceram na escola os mesmos preconceitos tratados no texto e que marcam os papéis sociais de gênero. Fico pensando em como agora estamos retrocedendo em alguns desses pontos, já que não há garantia de espaço para essas discussões nas instituições de ensino."
Jacqueline Cristina Jesus Martins, professora de Educação Física no CIEJA Aluna Jéssica Nunes Herculano, em São Paulo, e leitora de NOVA ESCOLA.
Brincadeiras não têm sexo
Que professor de Educação Infantil nunca deparou com meninas que gostam de jogar futebol e meninos que preferem uma boneca a um carrinho? A situação pode ser comum, mas a atitude tomada pelos educadores diante dela varia bastante. Para muita gente, as crianças que aparecem nas fotos à direita não estão cumprindo bem o papel definido pela sociedade para o sexo feminino e o masculino. Helena Gasnoch, 4 anos, a graciosa bailarina, não foi repreendida pelos professores com frases do tipo "mais modos, menina!" e "princezinhas não jogam bola". Nem o Super-Homem Lucas Abrão Martins, também de 4 anos, ouviu que "casinha é coisa de menina". Na Escola Trilhas, em Curitiba, onde estudam, os brinquedos, os cantinhos e as atividades não são classificados por sexo e representar livremente a realidade é um direito.
São os adultos que esperam de meninos e meninas comportamentos específicos.Os pequenos não estão nem um pouco preocupados com as regras que definem papéis diferentes para eles ou elas. O que querem é se divertir! Por sinal, até os 3 anos, em média, as crianças não encaram as características biológicas como diferenças. Mas, se repreendidas ou ridicularizadas quando não fazem as escolhas consideradas corretas, aprendem, além de homens e mulheres não serem iguais, que existe um modelo de masculinidade e feminilidade e uma relação de poder entre eles. E ai de quem ousar romper com valores construídos há séculos!
Trabalhar esses padrões e expectativas é função do professor porque disso depende também a construção da identidade dos pequenos. Essa tarefa se cumpre nas relações do dia a dia e não por meio de um projeto esporádico ou de uma sequência didática. "A formação da identidade passa pela descoberta do próprio corpo, de sua importancia no mundo e da individualidade, mas também pela observação de atitudes, costumes, referências e exigências em casa e na escola", diz a coordenadora pedagógica Silvana Augusto, de São Paulo.
O maior medo dos pais que vêem seus garotos brincando de casinha é de que eles se tornem homossexuais. Esse é o principal argumento dos que se indignam e defendem a intervenção, rápida e firme, da escola nessa situação. "Há professores que não questionam os modelos sociais e acabam interferindo nas atividades consideradas inadequadas para atender às famílias. Esse comportamento é resultado de sua própria vivência em casa", explica Ana Maria Niemeyer, da Universidade de Campinas (Unicamp). É realmente difícil romper com padrões tão enraizados, mas essa postura é ultrapassada. Pessoas que estudam, leem e se atualizam sabem que a sociedade está mudando, assim como os papéis do homem e da mulher. "Discutir as relações de gênero é, antes de tudo, atribuir novos significados à nossa própria história e cultura", explica Daniela Finco, pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação Infantil da Unicamp.
A brincadeira é uma representação da vida. Por meio dela, as crianças dão sentido às experiências porque passam e reproduzem sua relação com as pessoas ao redor. Impedir que meninos ninem uma boneca, por exemplo, é uma das piores formas de censura. Os garotos têm visto pais, tios e amigos de família dividindo os cuidados dos filhos com as mulheres. Ao reproduzirem esse novo modelo de masculinidade, no entanto, são rotulados de anormais.
"Há muitos estudos sobre a discriminação contra a mulher, mas só recentemente começamos a discutir o preconceito contra os homens", afirma a socióloga Rosemeire dos Santos Brito, de São Paulo. Ela estudou por que os meninos são as principais vítimas do fracasso escolar no Ensino Fundamental. Um dos motivos, de acordo com a pesquisa, seria o preconceito dos professores, que acreditam em um único modelo masculino nas classes sociais populares: o do machão, que não valoriza os estudos, atormenta as meninas e vive competindo e lutando com outros garotos. "Apesar de condenar esse comportamento, a escola ajuda a construí-lo quando reafirma a divisão entre os sexos e encara isso como natural ou sem solução", diz Rosemeire. O exemplo mostra preconceito sexual e social. Segundo a pesquisadora, em escolas onde estudam os filhos das classes privilegiadas, os meninos que gostam de ler, estudar e cuidar com zelo dos cadernos são valorizados, diferentemente do que acontece na periferia. O professor recrimina o modelo de machão, que não gosta da escola e das meninas, mas é o primeiro a questionar a sexualidade do aluno quando ele se mostra diferente desse padrão.
As meninas também se transformam em vítimas quando são tratadas como inferiores aos meninos e, pior, quando são convencidas de que isso é verdade por questões biológicas. Elas não podem falar alto, são estimuladas a serem educadas, meigas e emocionais. Além disso, aprendem que as tarefas domésticas serão suas incumbências no futuro. É como se não houvesse outra possibilidade de vida além de ser mãe e esposa.
Os livros escolhidos para ser trabalhados em classe, assim como os tipos de brinquedo e a forma como são oferecidos, podem ter grande influência na formação da identidade de meninos e meninas. A maioria dos livros didáticos hoje é mais criteriosa em relação aos gêneros. As meninas já se vêem esportistas, engenheiras, médicas e empresárias. Além disso, muitas histórias infantis já fogem dos estereótipos presentes nos contos de fada (confira alguns exemplos abaixo). Nem sempre foi assim. Em edições antigas de livros didáticos e de literatura, é possível ver ilustrações mostrando mulheres cuidando dos filhos e ocupadas com os afazeres domésticos. Aos homens eram reservados os espaços públicos. Os meninos sempre foram apresentados em movimento, ativos, praticando esportes ou fazendo experimentos científicos e contas matemáticas. "A mensagem subliminar dessas imagens é que os homens são inteligentes e as mulheres, no máximo, esforçadas", explica Ana Maria Niemeyer. No que se refere aos brinquedos, cabe à escola jamais separar os cantinhos por sexo. Carrinhos, caminhões, espadas, aviões, barcos, panelas, fantasias, pratos, copos e eletrodomésticos devem estar juntos e à disposição de todos, assim como as bonecas - que também são coisas de menino! Elas, porém, são um caso à parte. Além de remeterem ao conceito de maternidade, há as que reproduzem o de beleza-padrão, como a Barbie - que não se encaixa no modelo de boneca-bebê, mas continua limitando e condicionando a identidade feminina.
É preciso ser bela (leia-se alta e magra) para ser aceita e desejada pelo sexo oposto. Pesquisadores americanos estudaram como as garotas gostariam que fossem seu corpo. As descrições eram quase as mesmas: 1,80 metro, cerca de 45 quilos e cabelos longos, lisos e loiros. Pesquisadores chamaram essa descrição de "uma manifestação viva de uma boneca Barbie". Por isso, o ideal é oferecer à turma diferentes modelos de bonecas, que contemplem diferentes características físicas e étnicas e papéis sociais.
"O respeito entre as crianças está presente na liberdade e autonomia para escolher brinquedos e brincadeiras sem cobranças quanto a um papel sexual predeterminado", afirma Silvia Prandini, coordenadora pedagógica da Escola Trilhas.
A Fada Que Tinha Ideias, Fernanda Lopes de Almeida, 64 págs., Ed. Ática, tel. (11) 3990-1634
Menino Brinca de Boneca?, Marcos Ribeiro, 60 págs., Ed. Salamandra, tel. (11) 6090-1479, 27
Faca Sem Ponta, Galinha Sem Pé, Ruth Rocha, 32 págs., Ed. Ática
Mamãe Nunca Me Contou, Babette Cole, Ed. Ática
CONSULTORIA: Daniela Finco, pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação Infantil da Unicamp.
Para criar um clima de cooperação entre meninos e meninas, e não repetir estereótipos, fique atento a estas orientações.
Mesmo que seja difícil romper com uma história secular de Educação sexista, os pequenos sempre darão um jeito de subverter a ordem das coisas. "Eles só querem um bom companheiro ou companheira para brincar", conclui Daniela Finco.
André Luis, no berçário: referência para os garotos, que brincam de boneca
No CEI Rodolfo Pirani, em São Paulo, isso é regra. Os valores de igualdade entre os sexos são tão fortes e há tanto tempo lá trabalhados que ter um professor no berçário é encarado hoje com naturalidade - uma exceção nas escolas de Educação Infantil, dominadas pelas mulheres.
Em 2004, quando chegou à escola, André Luis da Silva, 36 anos, causou estranhamento. Como um homem poderia cuidar de tantas crianças, dar banho e mamadeira e ainda ninar? "Com profissionalismo, mostrei para pais e professoras que sou capaz de cuidar de um bebê com o mesmo zelo e atenção que uma mulher." Para ele, a função não era novidade. Já estava acostumado às tarefas por causa dos filhos - como muitas professoras - e tinha aprendido como exercer a função na faculdade.
A escola ganhou um professor comprometido e as crianças um novo modelo masculino - o que algumas não tinham em casa. Até então, os homens estavam presentes no espaço pedagógico cumprindo papéis esperados para seu sexo: pedreiros e vigias. Hoje os garotos do Rodolfo Pirani podem brincar com boneca sossegados. Ninguém mais duvida de que eles possam ninar bebês e que sejam capazes disso, como o educador André Luis.
Contatos
CEI Rodolfo Pirani, R. Cinira Polônio, 20, 08395-320, São Paulo, SP, tel. (11) 6753-5309
Escola Trilhas, R. Conselheiro Carrão, 765, 80040-130, Curitiba, PR, tel. (41) 3362-1763
Bibliografia
Brincadeira de Papéis Sociais na Educação Infantil, Alessandra Arce e Newton Duarte (org.), 118 págs., Ed. Xamã, tel. (11) 5072-4872
Brinquedo e Cultura, Giles Brougére, 110 págs., Ed. Cortez, tel. (11) 3611-9616
Foto entrevistada: Raoni Maddalena. Ilustração Mãos de Ariadne
Fotos matéria: Marcelo Almeida. Ilustrações: Nina Moraes
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