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Jornalismo

Como os livros perpetuam os preconceitos

Reportagem publicada na edição 1, de março de 1986, indicada por Maria Luisa Eluf

PorNOVA ESCOLAMonise Cardoso

15/01/2016

"A Educação sexista da época em que eu estudava me incomodava. Indignava-me a professora, que trabalhava e conquistava seu dinheiro, reproduzir nas aulas a ideia de que a mulher nasceu para ser rainha do lar. Por isso, investiguei como esses e outros valores eram introduzidos nos ambientes de Educação Infantil. Hoje, 30 anos depois, ainda há preconceito, mas a situação é muito melhor graças à luta das mulheres para conquistar outros espaços."

Maria Luisa Eluf, professora da Escola de Sociologia e Política e fundadora do Semina Educativa e Indústria.

 

Preconceito contra a mulher

Cuidado! O livro que você adotou pode estar cheio de PRECONCEITOS CONTRA A MULHER

Reportagem de Oswaldo Coimbra

 

São historinhas quase sempre sobre o cotidiano de uma família. Falam do "trabalho do papai", das "tarefas da mamãe" e dos "divertimentos de que os meninos e as meninas mais gostam". Parecem inofensivas. No entanto, os especialistas em Educação estão cada vez mais preocupados com elas. Veja por quê. 

"Enquanto a mamãe fica em casa cuidando das atividades domésticas, papai sai de manhã para o trabalho e só volta à tarde. É com esse trabalho que ele nos garante casa para morar, alimentação sadia, vestuário e possibilidade de estudar." 

Este trecho de um texto de Moral e Cívica, O Dia de Papai, à primeira vista não se distingue de outros que habitualmente encontramos nos livros didáticos. No entanto, ele é tipico entre aqueles que colocam a mulher em situação desfavorável, segundo um trabalho editado pela Fundação para o Livro Escolar, de São Paulo. A autora deste trabalho (Livro Didático Eternizando Preconceitos), Maria Luísa Eluf, estudou 244 livros retirados da lista recomendada pela Comissão de Moral e Cívica, em 1979 e 1980. A pesquisa foi dividida em quatro segmentos e em todos Maria Luísa encontrou a figura da mulher numa posição diminuída. 

O estudo começa com os textos relacionados com a família e neles os personagens masculinos apresentam-se dotados de maior força física, mais lógica e razão. "O papel da esposa consiste em cuidar da casa e da educação dos filhos", constata a pesquisadora. Ela acrescenta: "O pai é chefe de família, geralmente é ele quem sustenta o lar e impõe respeito a seus filhos". 

 

Papai no trabalho, mamãe sempre em casa 

No segundo segmento de sua pesquisa (do qual retiramos o trecho do texto do início desta matéria), Maria Luísa analisou a forma como é mostrada nos livros didáticos a ação de cada membro dentro da família. Diz ela: "Em geral nos textos o pai é sempre o executivo, as casas são bonitas, com jardins, a mãe não trabalha fora e a relação familiar é excelente". A seguir, ela comenta: "Portanto, esses textos estão fora da realidade. O que ocorre no dia a dia é o inverso do que aparece nos textos de leitura". Para reforçar esta afirmação sobre o irrealismo destas descrições do cotidiano, um outro texto é exibido. Seu título: Como Eu Vejo a Minho Família. Diz o texto: "Eu e meus irmãos acordamos bem cedinho, tomamos café e papai vai trabalhar. Mamãe fica em casa, preparando nosso almoço. À tarde, fazemos nossas lições, ajudamos a mamãe e brincamos um pouquinho. Papai chega muito cansado e tem sempre uma novidade para comentar e um sorriso para tudo. À noite, enquanto papai lê jornal, ou conversa com mamãe, nós assistimos à televisão. Aos domingos papai nos leva à praia". 

 

Nos livros, quem dirige a escola é sempre um homem 

A distribuição das profissões pelos dois sexos é o tema do terceiro segmento da pesquisa. Nele, Maria Luísa assinala que as profissões, em geral, são designadas nos livros escolares por meio de palavras masculinas, como barbeiro, leiteiro, jornaleiro, com o que o trabalho da mulher deixa de ser mostrado. "Sempre o diretor da escola é homem e nunca mulher." Enquanto isso ocorre na escola, as mulheres, no papel de mãe, nunca trabalham fora do lar. Maria Luísa reserva o quarto e último segmento para observar como as crianças se relacionam entre si, nos livros. Os meninos brincam com bola, bicicleta e patins. Já as meninas dedicam-se às bonecas, regam os jardins e executam outras atividades domésticas. "Dificilmente aparecem o menino e a menina brincando juntos." 

Embora a pesquisa tenha sido limitada aos livros de Moral e Cívica, Maria Luísa assegura que há livros de Matemática e Português também contagiados por elementos que revelam uma visão preconceituosa da mulher. Por fim, ela adverte sobre o perigo que isto representa, já que o livro didático é um material utilizado por alguém - o professor - que tem o respeito das famílias e o crédito das crianças. 

Outra pesquisadora neste campo é Sílvia Cintra Franco, que durante sete anos trabalhou como especialista em Medidas Educacionais da Fundação Carlos Chagas e atualmente está no Conselho da Condição Feminina, de São Paulo. Para ela, são duas as consequências da veiculação desse tipo de imagem da mulher pelos livros didáticos. Primeiro, as meninas são levadas a enxergarem o seu futuro dentro de um horizonte empobrecido. Segundo, a autoestima que cultivam fica abalada. Esclarece Sílvia: "A raiz dessas pesquisas é a imagem não prestigiosa que os livros oferecem da mulher. Os livros deveriam fornecer um modelo de mulher mais vigorosa sem, no entanto, tirar-lhe a delicadeza, pois feminilidade não significa falta de energia". 

 

Os meninos vão para a marcenaria, as meninas, para o tricô 

Sílvia chama a atenção para o dia a dia das escolas, onde, segundo ela, os preconceitos contra a mulher são reforçados. "Quando se divide uma turma para a execução de trabalhos manuais, geralmente os meninos vão, por exemplo, para a marcenaria, e as meninas, para o tricô." Sílvia conta que ela própria, quando era criança, ficou para exames de 2ª época porque, em vez do tricô, preferia a marcenaria. As professoras, diz ela, estão intensificando a rivalidade entre os sexos quando distribuem os alunos em turmas de meninos e meninas para responderem à tabuada. Essa rivalidade pode chegar a um ponto tal que, como ela mesma viu numa escola, a professora não pode fazer perguntas a três alunas, em seguida, sem que os meninos reclamem por não estarem sendo chamados. Acrescenta Sílvia: "O menino sabe que vai crescer e que seu valor está nele. A menina sabe que seu valor não está nela. Por isto, tem a tendência a ser boazinha, quietinha, a querer agradar. O menino é educado para a vida. A menina, para o lar. Ela é a Carolina, na janela, vendo o mundo passar". 

Num de seus artigos, Sílvia resume essas diferenças de comportamento. Ela assinala que os meninos, nos textos dos livros didáticos, são hábeis, empreendedores, controlados, firmes e confiantes. As meninas são passivas, sem iniciativa, descontroladas emocionalmente, inseguras e indecisas. 

 

Livro didático, uma camisa de força para a mulher 

Em outro artigo, intitulado A Mulher e o Livro Didático, Sílvia indaga: "Pode-se em sã consciência estreitar a visão de mundo de uma jovem? Fazê-la crer que, para ela, as opções de vida são limitadas e limitantes?" E ela mesma responde: "A questão do livro didático para a mulher é a questão da camisa de força. Para a menina, assimilar a visão de mundo que eles propõem é quase como justapor uma camisa de força aos seus anseios e aspirações. Camisa de força que dificulta uma visão ampla e objetiva de seu futuro e, consequentemente, a impede de se preparar adequadamente para a vida". No final desse artigo, a pesquisadora sugere a pais e professores que, enquanto as editoras e os autores não se convencerem a mudar essa imagem da mulher, eles devem alertar seus filhos e alunos para o que existe de ultrapassado nessa imagem. 

Para reagir contra essa situação, Sílvia escreveu dois livros infantojuvenis (O Abre Alas e Resgate no Tempo) em que as histórias são centradas em meninas completamente diferentes das dos livros didáticos. 

 

Finalmente, meninas que são curiosas e decididas 

Ágeis, curiosas, decididas, as heroínas vivem com intensidade a infância sem retraimentos inúteis. Na apresentação às leitoras do Resgate no Tempo, diz a autora: "Ah! E tenho uma birra enorme desses livros de escola que mostram os meninos fazendo de tudo, desde médicos até astronautas, e as meninas como se fossem palermas idiotas que só sabem se pentear e brincar de bonecas. E olhar os meninos se divertirem a valer. Na verdade, eu não conheço nenhuma menina pateta como aqueles livros gostam de mostrar".


Foto entrevistada: Arquivo pessoal/Maria Luisa Eluf

Ilustração: Retirada de livro recomendado pela Comissão de Moral e Cívica de São Paulo, em 1979 e 1980 estudados pela pesquisadora Maria Luisa Eluf

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