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Jornalismo

Assim a turma aprende mesmo

A tendência atual da disciplina é fazer com que o aluno observe, pesquise em diversas fontes, questione e registre para aprender

PorBeatriz Santomauro

16/10/2016

É cada vez maior o conhecimento sobre como as crianças aprendem conceitos matemáticos. Pesquisas sobre a didática da disciplina aos poucos chegam aos cursos de formação e começam a difundir uma nova maneira de ensinar. O que antes era considerado erro do aluno ou falta de conhecimento do conteúdo agora se revela como a expressão de diferentes formas de raciocinar sobre um problema, que devem ser compreendidas e levadas em consideração pelo professor no planejamento das intervenções, como se pode acompanhar nas fotos que ilustram esta reportagem.

No decorrer do século 20, as discussões se intensificaram, motivadas pelas descobertas da psicologia do desenvolvimento e da abordagem socioconstrutivista, feitas sobretudo por Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vygotsky (1896-1934). "No Brasil, foi nas décadas de 1950 e 60 que os educadores passaram a se preocupar com a baixa qualidade do desempenho dos estudantes. Em diversos países, propostas para enfrentar as dificuldades começaram a ser construídas e, da busca de soluções, surgiu um novo campo de conhecimento", explica Célia Maria Carolino Pires, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (saiba mais sobre a evolução do ensino da disciplina no quadro abaixo). Na França, essa área do saber é chamada de Didática da Matemática e os principais pesquisadores são Guy Brousseau, Gérard Vergnaud, Régine Douady e Nicolas Balacheff. No Brasil, ela também é conhecida como Educação Matemática.

"As pesquisas francesas deram aporte a investigações que concebem o aluno como sujeito ativo na produção do conhecimento e considera as formas particulares de aprender e pensar", resume Cristiano Alberto Muniz, coordenador adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB). Essa abordagem tem implicações didáticas, pois coloca o professor como conhecedor do processo de aprendizagem, da natureza dos conteúdos e das intervenções mais adequadas para ensinar. Aulas em que se expõem conceitos, fórmulas e regras e depois é exigida a repetição de exercícios, tão usadas até hoje, têm origem no começo do século 20. Porém sabe-se que elas não são a melhor opção (confira os métodos mais usados no quadro abaixo). "Procedimentos clássicos podem ser utilizados desde que tenham coerência com os objetivos do planejamento e estejam acompanhados de tempo para a reflexão e a discussão em grupo", observa Muniz.

Os conhecimentos sobre como as crianças aprendem Matemática têm mais de 30 anos, mas ainda não constam dos currículos dos cursos de licenciatura. Aos poucos, aparecem em programas de formação continuada, mostrando maneiras eficientes de ensino da disciplina (leia entrevista com professora no quadro abaixo).

O foco dessa tendência que coloca o aluno no centro do processo de aprendizagem é apresentar a ele situações-problema para resolver. "O docente tem o papel de mediador, ajudando a construir os conceitos e fazendo com que o estudante tenha consciência do que faz na hora de responder as questões", afirma Sandra Baccarin, do Compasso, grupo de pesquisa em Educação Matemática da UnB. No livro Didática da Matemática, Roland Charnay afirma: "O aluno deve ser capaz não só de repetir ou refazer mas também de ressignificar diante de novas situações, adaptando e transferindo seus conhecimentos para resolver desafios". Guy Brousseau, ao construir a teoria sobre o contrato didático, descreveu as relações entre o professor, o saber e o aluno. O docente tem a função de criar situações didáticas em que nem tudo fica explícito (são os obstáculos). À criança cabe pensar em possíveis caminhos para resolvê-las, formulando variadas hipóteses sem ter a necessidade de dar nenhuma resposta imediata. Esse segundo momento é chamado de adidático. É aí que o aluno usa a própria lógica para produzir. "Assim, começamos a preparar os jovens para pensar de forma autônoma", destaca Cristiano Muniz. Depois disso, é tarefa do professor retomar o planejado, para analisar as hipóteses da turma e sistematizar o aprendizado.

Para compreender melhor as condições de ensino, Gérard Vergnaud elaborou a teoria dos campos conceituais. Ao estudar como as crianças resolvem problemas de soma e subtração, o francês percebeu que elas procuram a resposta usando procedimentos diversos do tradicional, com base em vivências e aprendizados anteriores. Foi assim que ele classificou os problemas do campo aditivo em seis tipos: dois de transformação (mudança do estado inicial por meio de uma situação inicial, positiva ou negativa), combinação de medidas (junção de conjuntos de quantidades preestabelecidas), comparação (confronto de duas quantidades para achar a diferença), composição de transformações (alterações sucessivas do estado inicial) e estados relativos (troca de um estado relativo para outro estado relativo). Da mesma forma, ele classificou as questões relativas ao campo multiplicativo em três: proporcionalidade, organização retangular e combinatória.

 

Descobrir estratégias e socializá-las com os colegas

Ciente da capacidade dos pequenos de criar hipóteses, é possível elaborar problemas com diferentes enunciados, variando o lugar da incógnita, e propor discussões em grupo e momentos nos quais os estudantes justifiquem a escolha. "Ao refletir sobre como pensou para chegar à resposta e comunicar isso aos colegas, o aluno organiza o próprio pensamento e compartilha a estratégia, permitindo que ela seja socializada", afirma Daniela Padovan, selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10. A justificativa pode ser feita oralmente ou por escrito. Nesse caso, é possível que ele inicie com representações pessoais - como riscos e desenhos - antes de chegar ao registro formal da linguagem matemática. É esse processo que leva à aprendizagem efetiva (confira as expectativas de aprendizagem para o 5º e o 9º ano no quadro abaixo).

Um aspecto muito disseminado da abordagem socioconstrutivista - base da didática da Matemática da escola francesa - é a visão da aprendizagem como um processo social. Isso significa considerar a articulação dos saberes escolares com a realidade das crianças. A ideia, porém, costuma gerar vários equívocos. Um deles se dá quando o professor privilegia a vivência de situações do dia-a-dia para introduzir um conteúdo, esquecendo-se, posteriormente, de sistematizar o aprendizado. Outro engano é acreditar que contextualizar é ensinar apenas a Matemática usada no cotidiano, como a aritmética de uma compra no mercado. Contudo, só em momentos de descontextualização é possível construir conhecimentos úteis em outras circunstâncias. Questões internas da disciplina, como a propriedade distributiva da multiplicação, não estão explícitas no que se faz diariamente, mas devem ser objeto de discussão da turma. "A contextualização é importante, mas não pode ser usada o tempo todo", diz Daniela Padovan.

Mitos pedagógicos

  • É preciso ser inteligente Qualquer aluno pode se engajar no processo de produção de conhecimentos matemáticos usando a própria lógica.
  • Menino tem mais facilidade Não existe comprovação científica de que garotos são melhores (ou piores) do que as meninas em disciplinas que exigem o raciocínio lógico.
  • É preciso dar um modelo A ideia de que os alunos só conseguem resolver problemas usando modelos ou seguindo instruções não é correta. Para avançar, é preciso que os jovens criem e experimentem estratégias diversas.
  • Só com jogos e softwares Há muitas idealizações de que materiais como jogos e softwares resolvam os problemas de aprendizagem. Eles podem ser ferramentas importantes, mas dependem do uso planejado pelo professor para dar resultados efetivos.
  • Aprender sem perceber Interpretações equivocadas sobre a contextualização do ensino da Matemática levaram alguns autores de livros didáticos e professores a acreditar que seria possível aprender a disciplina sem perceber, apenas brincando e se divertindo. Se o estudante não sabe o que está fazendo, não há aprendizagem.

O ensino de Matemática no Brasil

  • 1600 No início da colonização, os conteúdos de Matemática ministrados nos colégios jesuítas estavam atrelados aos de Física, seguindo uma tradição europeia de ensino que tinha como base as humanidades clássico-literárias.
  • 1824 Com a estruturação das primeiras escolas primárias, a elaboração do currículo da disciplina dá ênfase a conteúdos matemáticos relacionados, principalmente, ao sistema de numeração e à aritmética.
  • 1837 Geometria, álgebra, trigonometria e mecânica começam a ser ensinadas no recém-criado ensino secundário do Colégio Pedro II. A Matemática deixa de ser técnica e adquire um caráter preparatório para o Ensino Superior.
  • 1856 Os primeiros livros didáticos de Matemática feitos no país e adotados pelas escolas de Educação Básica são os elaborados pelo militar, engenheiro e professor de Matemática mineiro Cristiano Benedito Ottoni.
  • 1920 O Movimento da Escola Nova surge forte em outras áreas e começa a influenciar o ensino de Matemática, incentivando trabalhos em grupo e colocando a criança no centro do processo educativo.
  • 1929 Com base nas ideias do alemão Felix Klein, Euclides Roxo, diretor do Colégio Pedro II, propõe a criação da disciplina de Matemática (até então, aritmética, álgebra e geometria eram ministradas separadamente).
  • 1942 Gustavo Capanema promulga a Lei Orgânica do Ensino Secundário, em que o ensino da disciplina segue, em parte, as ideias propostas por Euclides Roxo no livro A Matemática na Escola Secundária.
  • 1955 É organizado o primeiro Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática. O evento, realizado na Bahia pela professora Martha de Souza Dantas, tem o mérito de dar impulso às reflexões sobre essa área.
  • 1960 O professor Oswaldo Sangiorgi lidera o Movimento da Matemática Moderna, que defende a disciplina como a principal via para os alunos acessarem o pensamento científico e tecnológico.
  • 1970 A Etnomatemática, criada por Ubiratan D'Ambrosio, aparece como um movimento acadêmico e começa a ser usada em sala de aula. A ideia é analisar as práticas matemáticas em diferentes contextos sociais e culturais.
  • 1988 A criação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (Sbem) propicia o contato mais próximo com pesquisas internacionais por meio de participação em seminários e congressos.

Fontes Wagner Rodrigues Valente, coordenador do Grupo de Pesquisa de História da Matemática, da Universidade Bandeirante de São Paulo, e Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática

Metodologias mais comuns

O ensino tradicional dominou a sala de aula durante séculos, até o surgimento de novas maneiras de ensinar.

  • Tradicional Formada no início do século 20 com métodos clássicos que envolvem a repetição de algoritmos.

Foco Dominar regras da aritmética, da álgebra e da geometria.
Estratégia de ensino Aulas expositivas sobre conceitos e fórmulas, com os estudantes copiando e fazendo exercícios para a fixação.

  • Escola Nova A partir dos anos 1920, atingiu sobretudo as séries iniciais. Foi colocada em prática principalmente em escolas particulares, com o aluno no centro do processo de aprendizagem.

Foco Trabalhar o conteúdo com base na iniciativa dos estudantes em resolver problemas que surgem em um rico ambiente escolar.
Estratégia de ensino Jogos e modelos para aplicar em situações cotidianas.

  • Matemática Moderna Surgiu como um movimento internacional na década de 1960.

Foco Conhecer a linguagem formal e ter rigor na resolução de problemas.
Estratégia de ensino Séries de questões para usar os fundamentos da teoria dos conjuntos e da álgebra.

  • Didática da Matemática Começou nas décadas de 1970 e 80, com autores como Guy Brousseau e Gérard Vergnaud.

Foco Construir conceitos e estratégias para resolver problemas.
Estratégia de ensino Alunos devem discutir em grupo, justificar escolhas e registrar as hipóteses.

  • Etnomatemática Surgiu no Brasil em 1975 com os trabalhos de Ubiratan D'Ambrosio.

Foco Aprender usando questões dos contextos sociais e culturais.
Estratégia de ensino Mudam conforme o contexto e a realidade em que a disciplina é ensinada.

5 perguntas | Erondina Barbosa da Silva

Professora de Matemática de 7ª série do CE 3 do Guará, em Brasília, 19 anos de profissão, nunca parou de aperfeiçoar a forma de ensinar.

Como eram suas aulas?
Eu me formei com base na Matemática Moderna, que é voltada para a formalização de conceitos. Minhas aulas eram expositivas e os alunos faziam exercícios.

Por que decidiu mudar?
Como não me sentia preparada para ensinar, decidi fazer outros cursos, inclusive mestrado, nos quais conheci novos métodos.

Que modificações foram adotadas na estratégia de ensino?
Agora uso a proposição de problemas, oferecendo questões que fazem sentido para os estudantes.

Como é feita a avaliação?
Minhas provas são momentos nos quais as crianças refletem sobre o que aprenderam e percebem em que ponto precisam avançar.

Os alunos gostam de suas aulas?
Sim. O pavor da Matemática só aparece quando o aluno não se sente ativo na aprendizagem.

Expectativas de aprendizagem

As orientações curriculares de Matemática da prefeitura de São Paulo preveem que, no fim do 5º ano, os alunos saibam:

  • Compreender e usar as regras do sistema de numeração decimal para leitura, escrita, comparação e ordenação de números naturais.
  • Utilizar estratégias pessoais para resolver problemas.
  • Ler mapas e plantas baixas simples e localizar-se nos espaços.
  • Identificar e representar semelhanças e diferenças entre formas geométricas.
  • Comparar, identificar e estimar grandezas (comprimento, massa, temperatura e capacidade) e iniciar o uso de instrumentos de medidas. 
  • Saber ver as horas.
  • Utilizar o sistema métrico (convencional ou não) com precisão.
  • Realizar cálculos aproximados.
  • Reconhecer, usar, comparar e ordenar números racionais.
  • Utilizar o sistema monetário brasileiro.
  • Resolver problemas nas quatro operações usando estratégias pessoais, convencionais e cálculo mental.
  • Usar porcentagens.
  • Explorar a ideia de probabilidade.
  • Reconhecer semelhanças e diferenças entre poliedros e identificar relações entre faces, vértices e arestas.
  • Utilizar unidades comuns de medida em situações-problema.
  • Usar unidades de medidas de área.
  • Interpretar e construir tabelas simples, de dupla entrada, gráficos de colunas, barras, linhas e de setor.


O mesmo documento prevê que, no fim do 9º ano, os estudantes saibam:

  • Analisar, interpretar, formular e resolver situações-problema, compreendendo diferentes significados das operações com números reais.
  • Identificar e resolver problemas com grandezas diretas ou indiretamente proporcionais.
  • Calcular juros simples e utilizar porcentagem para acréscimos e descontos.
  • Reconhecer números irracionais e construir procedimentos de cálculo com eles.
  • Identificar usos para as letras em situações que envolvem generalização de propriedades, incógnitas, fórmulas e relações numéricas e padrões.
  • Construir procedimentos de cálculo para operar com frações algébricas.
  • Usar os sistemas de equações.
  • Representar a variação de duas grandezas em um sistema de eixos cartesianos.
  • Fazer verificações experimentais e utilizar os teoremas de Pitágoras e Tales.
  • Construir procedimentos de cálculo de área e perímetro de superfícies planas, área total de cubos, paralelepípedos e pirâmides, volume de cubos e paralelepípedos.
  • Usar noções de cálculo de média aritmética e moda.
  • Usar noções de espaço amostral e de probabilidade de um evento.
  • Produzir textos escritos com base na interpretação de dados estatísticos.

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Bibliografia

  • A Matemática na Escola: Aqui e Agora, Delia Lerner de Zunino, 191 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 46 reais
  • Didática da Matemática - Reflexões Psicopedagógicas, Cecilia Parra e Irma Saiz (orgs.), 258 págs., Ed. Artmed, 42 reais
  • O Ensino de Matemática Hoje, Patrícia Sadovsky, 112 págs., Ed. Ática, tel. 0800-115-152, 24,90
  • Um História da Matemática Escolar no Brasil (1730-1930), Wagner Rodrigues Valente, 214 págs., Ed. Annablume, tel. (11) 3031-1754, 30 reais
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