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Jornalismo

Além da reescrita

A tarefa é mais que pôr no papel uma história conhecida. Modificar o narrador da trama encaminha a garotada para a autoria de verdade

PorRodrigo RatierTatiana Pinheiro

01/01/2016

No jargão da didática de leitura e escrita, reescrever um texto não é corrigi-lo ou revisá-lo, como faz supor o senso comum. É contar, com as próprias palavras, uma história, com a qual a turma já está familiarizada. É bem provável que você já saiba disso e utilize a estratégia com a garotada. Uma novidade, porém, é que a reescrita pode ir além de sua forma pura - ou seja, a versão pessoal de um texto-fonte. O que os estudiosos da área descobriram recentemente é que existe um tipo específico que leva os alunos a colocar em jogo uma enorme quantidade de conhecimentos e a avançar ainda mais.

São os relatos com a mudança de narrador (leia a sequência didática). Em histórias infantis, seria algo como a bruxa malvada de A Bela Adormecida, uma das irmãs de Cinderela ou um solitário anão de Branca de Neve contar tudo no lugar do narrador onisciente - aquela voz externa ao desenrolar dos fatos e que sabe o que se passa na cabeça dos personagens, com livre acesso a sentimentos e pensamentos. É o tipo mais comum nos contos clássicos, por exemplo.

Parece simples, mas, na verdade, a tarefa é bastante complexa. Por isso, é mais adequada para turmas a partir do 3º ano. As pesquisadoras argentinas Emilia Ferreiro e Ana Siro dedicaram um livro inteirinho a ela (Narrar por Escrito Desde un Personaje - Acercamiento de los Niños a lo Literario, lançado em 2008 e ainda inédito no Brasil). Logo na introdução, Emilia dimensiona o tamanho da saudável encrenca que a turma vai ter em mãos: como quem escreve em primeira pessoa resolve o problema de ser personagem e, ao mesmo tempo, narrador? "Contar baseado em um ?eu? protagonista supõe que o personagem e o narrador somente podem acessar sua própria interioridade e aquela que inferem dos demais personagens com base em seu comportamento ou suas exteriorizações", ela explica.

No vocabulário da disciplina, significa que o aluno-escritor precisa enfrentar dois desafios. O primeiro deles é a focalização - a perspectiva ou o ângulo de visão de quem conta a história. O Lobo Mau de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, não sabe de antemão o nome da menina e desconhece a presença do lenhador que vai salvá-la até que ele apareça, de fato, na casa da avó. Diante dessa restrição, é natural que muitas crianças, lá pelo meio do relato, acabem apelando para o narrador "sabe-tudo" em terceira pessoa para que a história mantenha a lógica (leia o exemplo das produções de um aluno abaixo). É uma mistura própria de quem está descobrindo novos caminhos para escrever mais e melhor. Mostrar o problema - chamado de deslizamento de ponto de vista - e discutir as possíveis soluções é o seu papel.

A reescrita na pele de um personagem

Proposta Reescrever o conto Chapeuzinho Vermelho do ponto de vista do Lobo Mau
Aluno Fernando, 9 anos

Fonte Narrar por Escrito desde un Personaje - Acercamiento de los Niños a lo Literario, de Emilia Ferreiro e Ana Siro. Os textos foram adaptados para o português

Aprender as palavras certas para definir a voz do narrador

O segundo desafio é o da modalização, a voz de quem conta a história. Diferentemente do narrador onisciente, que quase sempre é neutro, o narrador em primeira pessoa tem objetivos muito bem definidos (afinal de contas, ele participa do desenrolar dos fatos). No caso do Lobo, é interessante que a turma perceba e utilize no texto alguns dos artifícios a que o bicho recorre para enganar Chapeuzinho - fingir a voz doce da vovó, por exemplo. Trata-se, fundamentalmente, de mostrar que as palavras com que o personagem-narrador conta uma história buscam provocar determinados efeitos no leitor: convencê-lo de alguma coisa, buscar sua cumplicidade ou compaixão, despertar humor ou até mesmo causar repulsa.

Para trabalhar essa proposta mais complexa, a sequência de atividades é a mesma que para as outras modalidades de reescrita. De início, é necessário aumentar o repertório dos estudantes sobre o gênero que será abordado, lendo para (ou com) eles várias versões da narrativa. Depois de cada leitura, algumas características da estrutura do texto devem ser destacadas em uma roda de conversa: como o autor começou a história, que palavras interessantes ele usou para expressar sensações e emoções, como ele descreveu cada personagem, com que ritmo as ações se encadeiam, como a trama terminou etc. Esse tipo de reflexão sobre o uso da linguagem vai ajudar a garotada a reunir os principais elementos e expressões que serão usados depois, no momento de dar vida aos relatos.

Em seguida, é hora de deixar escrever. Não se esqueça de reservar espaço para a revisão. Como explicam Emilia Ferreiro e Ana Siro, o mais importante nessa atividade é ajudar a turma a evoluir em direção à autoria. "O trabalho de revisão faz justamente isso, permitindo às crianças superar obstáculos de modalização e focalização que nem sequer haviam sido percebidos na primeira versão."

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Fotos: Dercílio
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