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Jornalismo

Ler para escrever

Bons leitores são bons escritores? Nem sempre. Para enfrentar o desafio da escrita, é preciso investigar as soluções de autores reconhecidos

PorRodrigo Ratier

01/01/2016

Todo mundo já ouviu (e provavelmente também já repetiu) a ideia de que, para escrever bem, é preciso ler bem. À primeira vista, parece um princípio básico e indiscutível do ensino da Língua Portuguesa. Tanto que a opção de nove entre dez professores tem sido propor aos alunos a tarefa. Ler muito, ler de tudo, na esperança de que os textos automaticamente melhorem de qualidade. E, muitas vezes, a garotada de fato devora página atrás de página, mas - pense um pouco no exemplo de sua classe - a tal evolução simplesmente não aparece. Por que será?

Antes de mais nada, ninguém aqui vai defender que não se deva dar livros às crianças. A leitura diária é, sim, uma necessidade para o letramento. Mas ler para escrever bem exige outra pergunta: de qual leitura estamos falando? Para fazer avançar a escrita, a prática tem de ser um ato de compromisso e com foco (as ilustrações abaixo mostram alguns exemplos). Pelo contrário: exige intenção e um encadeamento definido de atividades, que tenham como objetivo mostrar como redigir textos específicos (leia a sequência didática).

"A leitura para escrever é um momento que coloca os estudantes numa posição de leitor diferente. A tarefa deles será encontrar aspectos do texto que auxiliem a resolver seus próprios problemas de escrita", afirma Débora Rana, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, em São Paulo, e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10.

É um trabalho que destaca a forma (estamos falando de intenção comunicativa e estilo, portanto), um tema relacionado a inquietações que tiram o sono de muitos docentes: por que as composições dos alunos têm tão poucas linhas? Por que eles não conseguem transmitir emoção ou humor? Por que as descrições de lugares e personagens não são detalhadas?

Fonte de inspiração

Confira como usar a leitura a serviço da produção de texto

A leitura ajuda a criar histórias com ritmo...

...caracterização dos personagens...

...e descrições psicológicas.

Fonte Adaptação da Atividade Primeira Reescrita de Conto Ditado à Professora, realizada por Alejandra Paione, Agustina Peláez e Mirta Castedo.

Trechos de contos trazem ótimas sugestões para os textos

A ideia do trabalho é analisar os efeitos e o impacto que cada obra causa em quem a lê. Sensações, claro, são subjetivas, variando de pessoa para pessoa. Mas, quando lê diversos textos bons, com expressões e características recorrentes, a turma consegue, aos poucos, entender que é a linguagem que gera os tais efeitos que nos comovem ou divertem. Nesse sentido, o conto, um dos tipos de texto mais usuais nas classes de 3º a 5º ano, oferece excelentes recursos para enriquecer produções de gêneros literários.

Cabe ao professor, no papel de leitor mais experiente, compartilhar com a turma as principais preciosidades, iluminando onde está o "ouro" de cada obra. Abaixo, listamos alguns dos principais pontos a ser observados e trabalhados nos textos da garotada. Também elencamos exemplos de como os contos podem ajudar a melhorá-los.

  • Linguagem e expressões características de cada gênero. Cada tipo de texto tem uma forma específica de dizer determinadas coisas. "Era uma vez", por exemplo, é certamente a forma mais tradicional de dar início a um conto de fadas (note que ela não seria adequada para uma composição informativa ou instrucional). Além de colaborar para que a turma identifique essas construções, a leitura de contos clássicos pode municiá-la de alternativas para fugir do lugar-comum. O Príncipe-Rã ou Henrique de Ferro, na versão dos Irmãos Grimm, começa assim: "Num tempo que já se foi, quando ainda aconteciam encantamentos, viveu um rei que tinha uma porção de filhas, todas lindas".
  • Descrição psicológica. Trazendo elementos importantes para a compreensão da trama, a explicitação de intenções e estados mentais ajuda a construir as imagens de cada um dos personagens, aproximando ou afastando-os do leitor. Em O Soldadinho de Chumbo, Hans Christian Andersen (1805-1875) desvela em poucas linhas os traços da personalidade tímida, amorosa e respeitosa do protagonista: "O soldadinho olhou para a bailarina, ainda mais apaixonado: ela olhou para ele, mas não trocaram palavra alguma. Ele desejava conversar, mas não ousava. Sentia-se feliz apenas por estar novamente perto dela e poder contemplá-la".
  • Descrição de cenários. O detalhamento do ambiente em que se passa a ação é importante não apenas para trazer o leitor "para dentro" do texto mas também para, dependendo da intenção do autor, transmitir uma atmosfera de mistério, medo, alegria, encantamento etc. Em O Patinho Feio, Andersen retrata a tranquilidade do ninho das aves: "Um cantinho bem protegido no meio da folhagem, perto do rio que contornava o velho castelo. Mais adiante estendiam-se o bosque e um lindo jardim florido. Naquele lugar sossegado, a pata agora aquecia pacientemente seus ovos".
  • Ritmo. É possível controlar a velocidade da história usando expressões que indiquem a intensidade da passagem do tempo ("vagarosamente", "após longa espera", "de repente", "num estalo" etc.). Outros recursos mais sofisticados são recorrer a flashbacks ou divagações dos personagens (para retardar a história) ou enfileirar uma ação atrás da outra (para acelerar). Charles Perrault (1628-1703) combina construções temporais e encadeamento de fatos para gerar um clima agitado e tenso neste trecho de Chapeuzinho Vermelho: "O lobo lançou-se sobre a boa mulher e a devorou num segundo, pois fazia mais de três dias que não comia. Em seguida, fechou a porta e se deitou na cama".
  • Caracterização dos personagens. Mais do que apelar para a descrição do tipo lista ("era feio e medroso"), feita geralmente por um narrador que não participa da ação, que tal incentivar a garotada a explorar diálogos para mostrar os principais traços dos personagens? Nesse aspecto, a pontuação e o uso preciso de verbos declarativos e de marcas da oralidade exercem papel fundamental. Neste trecho de Rumpelstichen, os Irmãos Grimm dão voz à protagonista para que ela se lamente:

"- Ah! - disse a moça, soluçando. - O rei me mandou fiar toda esta palha de ouro. Não sei como fazer isso!"

Por fim, um lembrete: você pode ter colocado os estudantes para ler e ter direcionado a atividade para melhorar os textos, mas o trabalho não para por aí. Eles precisam ter a oportunidade de pôr o conhecimento em prática. Ainda que a leitura seja essencial para impulsionar a escrita, não se desenvolve o comportamento de escritor sem enfrentar os desafios do escrever.

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Contato

  • Débora Rana, deborarana@ajato.com.br

Internet

Ilustrações de Adriana Alves sobre foto de Dercílio
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