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Jornalismo

Escrever de verdade

Para produzir textos de qualidade, seus alunos têm de saber o que querem dizer, para quem escrevem e qual é o gênero que melhor exprime suas ideias. A chave é ler muito e revisar continuamente

PorTadeu BredaThais Gurgel

01/01/2016

Narração, descrição e dissertação. Por muito tempo, esses três tipos de texto reinaram absolutos nas propostas de escrita. Consenso entre professores, essa maneira de ensinar a escrever foi uma das responsáveis pela falta de proficiência entre nossos estudantes. O trabalho baseado nas composições e redações escolares tem uma fragilidade: ele não garante o conhecimento necessário para produzir os textos que os alunos terão de escrever ao longo da vida. "Nessa antiga abordagem, ninguém aprendia a considerar quem seriam os leitores. Por isso, não havia a reflexão sobre a melhor estratégia para pôr as ideias no papel", diz Telma Ferraz Leal, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Para aproximar a produção escrita das necessidades enfrentadas no dia a dia, o caminho atual é enfocar o desenvolvimento dos comportamentos leitores e escritores. Ou seja: levar a criança a participar de forma eficiente de atividades da vida social que envolvam ler e escrever. Noticiar um fato num jornal, ensinar os passos para fazer uma sobremesa ou argumentar para conseguir que um problema seja resolvido por um órgão público: cada uma dessas ações envolve um tipo de texto com uma finalidade, um suporte e um meio de veiculação específicos. Conhecer esses aspectos é a condição mínima para decidir, enfim, o que escrever e de que forma fazer isso. Fica evidente que não são apenas as questões gramaticais ou notacionais (a ortografia, por exemplo) que ocupam o centro das atenções na construção da escrita, mas a maneira de elaborar o discurso.

Há outro ponto fundamental nessa transformação das atividades de produção de texto: quem vai ler. E, nesse caso, você não conta. "Entregar um texto para o professor é cumprir tarefa", diz Fernanda Liberali, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Para que o aluno fique estimulado com a proposta, é preciso que veja sentido nisso." O objetivo é fazer com que um leitor ausente no momento da produção compreenda o que se quis comunicar.

O primeiro passo é conhecer os diversos gêneros. Isso não significa que os recursos discursivos, textuais e linguísticos dos contos de fadas e da reportagem, por exemplo, sejam conteúdos a apresentar aos alunos sem que eles os tenham identificado pela leitura. Um risco é cair na tentação de transmitir verbalmente as diferentes estruturas textuais. Cabe ao professor permitir que as crianças adquiram os comportamentos do leitor e do escritor pela participação em situações práticas e não por meras verbalizações.

Ensinar a produzir textos nessa perspectiva prevê abordar três aspectos principais: a construção das condições didáticas, a revisão e a criação de um percurso de autoria, como explicado a seguir.

 

Os textos redigidos em classe precisam de um destinatário

"Escreva um texto sobre a primavera." Quem se depara com uma proposta como essa imediatamente deveria se fazer algumas perguntas. Para quê? Que tipo de escrita será essa? Quem vai lê-la? Certas informações precisam estar claras para que se saiba por onde começar um texto e se possa avaliar se ele condiz com o que foi pedido. Nas pesquisas didáticas de práticas de linguagem, essas delimitações se denominam condições didáticas de produção textual. No que se refere ao exemplo citado, fica difícil responder às perguntas, já que esse tipo de redação não existe fora da escola, ou seja, não faz parte de nenhum gênero.

De acordo com Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, o trabalho com um gênero em sala é o resultado de uma decisão didática que visa proporcionar ao aluno conhecê-lo melhor, apreciá-lo ou compreendê- lo para que ele se torne capaz de produzi-lo na escola ou fora dela. No artigo Os Gêneros Escolares - Das Práticas de Linguagem aos Objetos de Ensino, os pesquisadores suíços citam ainda como objetivo desse trabalho desenvolver capacidades transferíveis para outros gêneros.

Para que a criança possa encontrar soluções para sua produção, ela precisa ter um amplo repertório de leituras. Essa possibilidade foi dada à turma de 9º ano da professora Maria Teresa Tedesco, do Centro de Educação e Humanidades Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira - conhecido como Colégio de Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Procurando desenvolver a leitura crítica de textos jornalísticos e o conhecimento das estruturas argumentativas na produção textual, ela propôs uma atividade permanente: a cada semana, um grupo elegia uma notícia e expunha à turma a forma como ela tinha sido tratada nos jornais. Depois, seguia-se um debate sobre o tema ou a maneira como as reportagens tinham sido veiculadas. Paralelamente, os estudantes tiveram contato com textos de finalidades comunicativas diversas no jornal, como cartas de leitores, editoriais e artigos opinativos. "O objetivo era que eles analisassem os materiais, refletissem sobre os propósitos de cada um e adquirissem um repertório discursivo e linguístico", conta Maria Teresa, que lançou um desafio: produzir um jornal mural.

A proposta era trabalhar com textos opinativos, como os editoriais. Para que a escrita ganhasse sentido, ela avisou que o jornal seria afixado no corredor e que toda a comunidade escolar teria acesso a ele. Os assuntos escolhidos tratavam das principais notícias do momento, como o surto de dengue no Rio de Janeiro e a discussão sobre a maioridade penal. Com as características do gênero já discutidas e frescas na memória, todos passaram à produção individual (leia o texto de um dos alunos abaixo).

A primeira versão foi lida pela professora. "Sempre havia observações a fazer, mas eu deixava que os próprios meninos ajudassem a identificar as fragilidades", diz Maria Teresa. Divididos em pequenos grupos, os alunos revisaram a produção de um colega, escrevendo um bilhete para o autor com sugestões e avaliando se ela estava adequada para a publicação. Eram comuns comentários como "argumento fraco" e "falta conclusão".

"Envolver estudantes de 6º a 9º ano na produção textual é um grande desafio", ressalta Roxane Rojo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Muitas vezes, eles tiveram de produzir textos sem função comunicativa durante a escolaridade inicial e, por acreditarem que escrever é uma chatice, são mais resistentes." Atenta, Maria Teresa soube driblar o problema. Percebendo que a turma andava inquieta com a proibição por parte da direção do uso de short entre as meninas, ela fez disso o tema de um editorial do jornal mural.

"Para que alguém se coloque na posição de escritor, é preciso que sua produção tenha circulação garantida e leitores de verdade", diz Roxane. E todos saberiam a opinião do aluno sobre a questão, inclusive a diretoria. "Só assim ele assume responsabilidade pela comunicação de seu pensamento e se coloca na posição do leitor, antecipando como ele vai interpretá- lo." A argumentação da garotada foi tão bem estruturada que a diretoria resolveu voltar atrás e liberar mais uma vez o uso da roupa entre as garotas.

A criação de condições didáticas nas propostas para as turmas de 1º a 5º ano segue os mesmos preceitos utilizados pela professora Maria Teresa. "Em qualquer série, como na vida, produzir um texto é resolver um problema", ensina Telma Ferraz Leal. "Mas para isso é preciso compreender quais são os elementos principais desse problema."

Texto argumentativo

Marcado pela exposição de pontos de vista do autor, que precisam ser sustentados com exemplos

Análise geral
O texto respeita as marcas do gênero, mas é importante propor uma revisão para deixar os argumentos do autor mais claros e embasados.

A revisão vai além da ortografia e foca os propósitos do texto

Produzir textos é um processo que envolve diferentes etapas: planejar, escrever, revisar e reescrever. Esses comportamentos escritores são os conteúdos fundamentais da produção escrita. A revisão não consiste em corrigir apenas erros ortográficos e gramaticais, como se fazia antes, mas cuidar para que o texto cumpra sua finalidade comunicativa. "Deve-se olhar para a produção dos estudantes e identificar o que provoca o estranhamento no leitor dentro dos usos sociais que ela terá", explica Fernanda Liberali.

Com a ajuda do professor, as turmas aprendem a analisar se ideias e recursos utilizados foram eficazes e de que forma o material pode ser melhorado. A sala de 3º ano de Ana Clara Bin, na Escola da Vila, em São Paulo, avançou muito com um trabalho sistemático de revisão. Por um semestre, todos se dedicaram a um projeto sobre a história das famílias, que culminou na publicação de um livro, distribuído também para os pais. Dentro desse contexto, ela propôs a leitura de contos em que escritores narram histórias da própria infância. Os estudantes se envolveram na reescrita de um dos contos, narrado em primeira pessoa. Eles tiveram de reescrevê-lo na perspectiva de um observador - ou seja, em terceira pessoa. A segunda missão foi ainda mais desafiadora: contar uma história da infância dos pais. Para isso, cada um entrevistou familiares, anotou as informações em forma de tópicos e colocou tudo no papel (leia o texto de um dos alunos abaixo).

Ana Clara leu os trabalhos e elegeu alguns pontos para discutir. "O mais comum era encontrar só o relato de um fato", diz. "Recorremos, então, aos contos lidos para saber que informações e detalhes tornavam a história interessante e como organizá-los para dar emoção." Cada um releu seu conto, realizou outra entrevista com o parente-personagem e produziu uma segunda versão.

Tiveram início aí diferentes formas de revisão - análise coletiva de uma produção no quadro, revisão individual com base em discussões com o grupo e revisões em duplas -, realizadas vários dias depois para que houvesse o distanciamento em relação ao trabalho. A primeira proposta foi a "revisão de ouvido". Para realizá-la, Ana Clara leu em voz alta um dos contos para a turma, que identificou a omissão de palavras e informações. Ela selecionou alguns aspectos a enfocar na revisão: ortografia, gramática e pontuação.

Quando a classe foi dividida em duplas, um dos propósitos da professora era que uns dessem sugestões aos outros. A pesquisadora argentina em didática Mirta Castedo é defensora desse tipo de proposta. Para ela, as situações de revisão em grupo desenvolvem a reflexão sobre o que foi produzido por meio justamente da troca de opiniões e críticas. "Revisar o que os colegas fazem é interessante, pois o aluno se coloca no lugar de leitor", emenda Telma. "Quando volta para a própria produção e revisa, a criança tem mais condições de criar o distanciamento dela e enxergar as fragilidades."

Um escritor proficiente, no entanto, não faz a revisão só no fim do trabalho. Durante a escrita, é comum reler o trecho já produzido e verificar se ele está adequado aos objetivos e às ideias que tinha a intenção de comunicar - só então planeja- se a continuação. E isso é feito por todo escritor profissional.

A revisão em processo e a final são passos fundamentais para conseguir de fato uma boa escrita. Nesse sentido, a maneira como você escreve e revisa no quadro, por exemplo, pode colaborar para que a criança o tome como um modelo e se familiarize com o procedimento. Sobre o assunto, Mirta Castedo escreve em sua tese de doutorado: "Os bons escritores adultos (...) são pessoas que pensam sobre o que vão escrever, colocam em palavras e voltam sobre o já produzido para julgar sua adequação. Mas não realizam as três ações (planejar, escrever e revisar) sucessivamente: vão e voltam de umas às outras, desenvolvendo um complexo processo de transformação de seus conhecimentos em um texto".

Biografia

Dados ordenados cronologicamente e recursos linguísticos que asseguram a conectividade temporal (como os advérbios) são algumas das características do gênero

Análise geral
É importante propor a revisão com a retomada de modelos, para que o autor organize as informações em frases e com verbos conjugados no tempo apropriado, para marcar os acontecimentos.

Ser autor exige pensar no enredo e na estrutura

O terceiro aspecto fundamental no trabalho de produção textual é garantir que a criança ganhe condições de pensar no todo. Do enredo à forma de estruturar os elementos no papel: é preciso aprender a dar conta de tudo para atingir o leitor. Esse processo denomina-se construção de um percurso de autoria e se adquire com tempo, prática e reflexão.

Os estudos em didática das práticas de linguagem fizeram cair por terra o pensamento de que a redação com tema livre estimula a criatividade. Hoje sabe-se que depois da alfabetização há ainda uma longa lista de aprendizagens. Foi considerando a complexidade desse processo que Edileuza dos Santos, professora da EM de Santo Amaro, no Recife, desenvolveu um projeto de fábulas com a 3ª série (leia o texto de um dos alunos abaixo).

Ela deu início ao trabalho investindo na ampliação do repertório dentro desse gênero literário. Assim foi possível observar regularidades na estrutura discursiva e linguística, como o fato de que os animais são os protagonistas. "Escolhi esse gênero porque ele tem começo, meio e fim bem marcados, algo que eu queria trabalhar com a garotada."

A primeira proposta foi o reconto oral de uma fábula conhecida. "Isso envolve organizar ideias e pode ser uma forma de planejar a escrita", endossa Patrícia Corsino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Quando já dominamos todas as informações de uma narrativa, podemos nos focar apenas na forma de expor os elementos - mas esse é um grande desafio no início da escolaridade.

Na turma de Edileuza, as propostas seguintes foram a reescrita individual e a produção de versões de fábulas conhecidas com modificações dos personagens ou do cenário. Aos poucos, todos ganharam condições de inventar situações. A professora percebeu que os estudantes não entendiam bem o sentido da moral da história. Pediu, então, uma pesquisa sobre provérbios e seu uso cotidiano. Com essa compreensão e um repertório de ditados populares, Edileuza sugeriu a criação de uma fábula individual. Ela discutiu com o grupo que esse gênero geralmente tem como protagonistas inimigos tradicionais (cão e gato, por exemplo). Estava colocada uma restrição. Em seguida, relembrou provérbios que poderiam ser a moral das histórias criadas.

Desde o início, todos sabiam que as produções seriam lidas por outros alunos, o que serviu de estímulo para bolar tramas envolventes. "Há uma diferença entre escrever textos com autonomia - obedecendo à estrutura do gênero, sem problemas ortográficos e de coerência - e se tornar autor", explica Patrícia. "No primeiro caso, basta aprender as características do gênero e conhecer o enredo, por exemplo. No segundo, é preciso desenvolver ideias." Para chegar lá, a interação com professores e colegas e o acesso a um repertório literário são importantes.

Do 6º ao 9º ano, o processo de construção da autoria pode exigir desafios que sejam cada vez mais complexos: a elaboração de tensões na narrativa ou a participação em debates para desenvolver a argumentação, como fez Maria Teresa. "A reescrita pode vir com propostas de produção de paródias, no caso dos maiores, que exigem mais elaboração", diz Roxane. Uma boa forma de fazer circular textos nessa fase são os meios digitais, como blogs e o site da própria escola. Os jovens podem se responsabilizar por toda a produção. Levar os estudantes a se expressar cada vez melhor, afinal, deve ser o objetivo de todo professor.

Fábula

Começo, meio e fim bem marcados, temporalidade imprecisa e uma moral que encerra o texto definem esse gênero

Análise geral
É apropriado retomar as marcas do gênero fábula e o significado de provérbios e ditos populares. A leitura dos colegas pode ajudar o autor a perceber que apresentar os personagens é fundamental.

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Contatos

  • Centro de Educação e Humanidades Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, tel. (21) 2333-7873, cap_uerj@hotmail.com
  • EM de Santo Amaro, tel. (81) 3232-5919
  • Escola da Vila, tel. (11) 3726-3578, vila@vila.com.br
  • Fernanda Liberali, liberali@uol.com.br
  • Roxane Rojo, rrojo@iel.unicamp.br
  • Telma Ferraz Leal, tfleal@terra.com.br
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