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Jornalismo

É preciso estabelecer um diálogo com os jovens

PorIvan Paganotti

15/09/2016

Celso Ferretti,

Celso Ferretti,
pesquisador do Centro de Estudos em Educação e Sociedade (Cedes), de Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo.

O Ensino Médio sofre com uma espécie de maldição que está no próprio nome, ao ser visto apenas como um meio: reduz-se à preparação para a vida profissional, no caso do ensino técnico, ou ao condicionamento para o vestibular. "Essa distorção o torna instrumental, seja para entrar na universidade, seja para buscar uma posição no mercado de trabalho", avalia o professor Celso Ferretti, pesquisador do Centro de Estudos em Educação e Sociedade (Cedes), de Campinas, a 100 quilômetros de São Paulo.

"Ainda que seja bem feita", a formação dos alunos de olho nas demandas do mercado ou nas expectativas das universidades "é sempre precária", segundo ele. O caminho apontado pelo pesquisador (que tem 30 anos de experiência como professor e formador de educadores) para evitar essa cilada envolve um ensino integrado, que faça a articulação entre os fundamentos dos diversos saberes de forma a ampliar os horizontes culturais dos alunos. E, para isso, é preciso deixar para trás o "enciclopedismo", que leva à construção do conhecimento pelo simples acúmulo de fatos.

Como deveria ser a formação de um aluno do Ensino Médio nos dias de hoje?
CELSO FERRETTI
Acredito na necessidade de ir além do modelo em vigor atualmente. Não dá para enxergar o Ensino Médio apenas como um instrumento, seja para preparar para a universidade, seja para formar para o mercado de trabalho. No sentido da formação plena de um sujeito, essa visão instrumental é precária - ainda que seja bem feita. A meu ver, precisamos ir além dessa perspectiva instrumental, que se preocupa apenas em formar um sujeito mais eficiente em seu trabalho e encaminhá-lo para uma atividade profissional que desempenhe bem. Mas vejo o Ensino Médio um pouco refém dessas demandas da sociedade.

Por que os indicadores de qualidade do Ensino Médio são os piores da Educação Básica? E por que é tão difícil melhorar esse cenário?
FERRETTI
Não é novidade para ninguém que a qualidade do ensino público brasileiro é baixa. No Ensino Médio, o que se vê é uma confluência de problemas. Desde os anos 1990, um parâmetro usado para avaliar a qualidade da Educação é a taxa de aprovação. Isso afeta todas as escolas, mas mais fortemente o Ensino Médio porque ele é o repositório dos alunos que passaram pelo Fundamental e foram de alguma forma aprovados para evitar a repetência. Os estudantes concluem o Fundamental e, ao chegar ao Ensino Médio, fica explícito que a qualidade da escolaridade que receberam é precária.

Mas a qualidade do Ensino Fundamental também costuma ser muito criticada.
FERRETTI
De fato. Ao longo do percurso, pais e professores reclamam de alunos que chegam à 4ª série com domínio muito precário de leitura, escrita e dos conhecimentos matemáticos. É claro que é importante evitar a repetência e cuidar da relação entre idade e série, mas isso não pode ser feito à custa da flexibilização do processo de aprovação, sem que os alunos dominem os conteúdos. Outro problema é que os adolescentes e jovens de baixa renda precisam contribuir financeiramente em casa: nessa idade, essa é uma exigência muito forte tanto por parte da família quanto por parte do próprio jovem, que quer ter independência e dinheiro. Além disso, uma parte dos alunos estuda à noite: são pessoas que trabalham, chegam às aulas cansadas e, com isso, o rendimento fica bastante prejudicado.

O que é preciso fazer para melhorar o Ensino Médio brasileiro?
FERRETTI
Do ponto de vista das políticas públicas, um dos problemas é o número de alunos por sala de aula. Eu trabalhei em escola pública por 30 anos e no Ensino Médio por boa parte desse tempo: você começa o ano com 45 alunos, mas termina com 15. O razoável é ter entre 20 e 30 alunos, o que permite introduzir metodologias de ensino e avaliação para tornar mais eficiente o trabalho docente. Um segundo problema se origina no salário dos professores: para viver dignamente, eles precisam trabalhar em mais de uma escola. Não é preciso ter 300 alunos, de diferentes escolas, para saber que é muito difícil acompanhar todos. O ideal seria o professor poder se dedicar a apenas uma escola. Está provado que isso tem um peso muito grande na constituição de um grupo de trabalho articulado e coeso, capaz de preparar e discutir um bom projeto político-pedagógico para a escola.

E o que o professor pode fazer para mudar esse cenário?
FERRETTI
Ele pode evitar o "eu falo, você escuta" e envolver seus alunos em trabalhos de grupo e em discussões em sala baseadas em leituras. Ao estabelecer um diálogo com os estudantes, em vez de só expor os conteúdos, o educador pode contextualizar o conhecimento, estabelecendo diversas relações com a vida dos adolescentes.

As novas diretrizes curriculares propostas pelo Conselho Nacional de Educação preveem a divisão dos conteúdos do Ensino Médio em quatro eixos: trabalho, cultura, ciência e tecnologia. Como o senhor avalia essa proposta?
FERRETTI
É uma mudança bastante profunda, que pretende fazer o caminho contrário ao estabelecido pelo Decreto 2.208, de 1997, que separou o Ensino Médio do Ensino Técnico. A proposta agora é fazer um Ensino Médio integrado à Educação profissional, centrado na interdisciplinaridade, e não só no desenvolvimento de competências específicas. Os alunos precisam desenvolver a consciência de que a construção do conhecimento é histórica, assim como a tecnologia, a técnica e a cultura. As sociedades humanas são construções: no passado, elas não foram desse jeito e, no futuro, não serão necessariamente como hoje. Isso depende da ação humana, que promove as mudanças. A ideia, que me agrada bastante, é não fazer uma simples justaposição de disciplinas, mas borrar esses limites disciplinares.

Para evitar que essa mudança fique no papel, como a escola precisa atuar?
FERRETTI
É preciso lembrar que essas novas propostas ainda nem foram homologadas pelo Ministério da Educação (MEC). Para passar dos princípios para as diretrizes e delas para a prática, vai um tempo relativamente largo. A ideia é muito boa e desafiadora, mas sua concretização implica mudanças de condições de trabalho, de cultura institucional e escolar... E isso não se faz da noite para o dia. Mas, se cada área de conhecimento trabalhar sobre seus princípios e conceitos fundamentais, isso facilita a articulação porque alguns são bastante próximos. Além de romper com a segmentação, é preciso romper com o enciclopedismo: a ideia de que dominar conhecimento significa travar contato com o maior número de fatos possível, ou seja, de que o saber é sinônimo de amealhar uma enorme quantidade de dados e saber citá-los. E, na verdade, isso não é o fundamental: é preciso dominar os princípios básicos de cada campo. Para isso, os professores precisam ter uma formação melhor nesse sentido, o coordenador pedagógico precisa alinhavar esse trabalho e o gestor precisa criar as condições para que tudo isso aconteça de forma positiva dentro da escola.

Os princípios das áreas de conhecimento podem ajudar a amarrar as disciplinas, mas como trabalhar isso sem abandonar os conteúdos clássicos de Matemática e Português, por exemplo?
FERRETTI
Nesse novo modelo, o conteúdo também muda. Ao se centrar nos princípios fundamentais, há uma economia muito grande. Se você pega os princípios fundamentais da Física, da Biologia, da Matemática, você reduz os conteúdos ao essencial, o que exige menos o cumprimento de um programa extenso. Você pode cumprir o programa, mas é outro programa - muito menos enciclopédico. Isso significa desenvolver nos alunos as relações entre os fatos e os campos científicos, que é o que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) cobra. E isso só se faz com princípios e conceitos, e não com um monte de fatos. Essa mudança implica toda uma revisão da construção do currículo, entendido não como uma grade de disciplinas e conteúdos específicos.

Então estamos nos distanciando de um currículo nacional padronizado para o Ensino Médio?
FERRETTI
O "nacional" seria o conjunto de princípios das diferentes áreas, com facilidades para articulações. O chamado conjunto de conteúdos disciplinares do currículo nacional poderia ser outra coisa. O importante é entender os fenômenos como multideterminados.

Ao recomendar que as escolas sejam mais livres para adotar uma linha dentro desses eixos, o Conselho Nacional aumenta a responsabilidade dos professores e gestores, certo?
FERRETTI
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que é de 1986, e as diretrizes curriculares definidas anteriormente para o Ensino Médio já estabelecem que os professores devem ter autonomia para formular seu projeto de escola. Infelizmente, o que se vê é que muitos abrem mão disso para seguir uma programação prévia. Há um conjunto de elementos que dificultam a montagem, de fato, de projetos político-pedagógicos alinhados com a realidade e com as necessidades de cada escola.

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