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Jornalismo

Ani Siro fala sobre reescrita de textos literários

Especialista argentina explica como e por que reescrever textos é uma valiosa ferramenta para desenvolver o processo autoral dos alunos

PorElisângela Fernandes

01/03/2011

Foto: Marina Piedade
Ani Siro

Em 2001, alunos da periferia de Buenos Aires foram desafiados a reescrever famosos contos infantis da perspectiva de um de seus personagens. Durante oito meses, eles elaboraram os textos, revisaram o material coletivamente e fizeram novas versões. A intenção era produzir uma antologia de relatos e socializá-la com a comunidade escolar. Ao trabalhar aspectos como a focalização (o ponto de vista do narrador) e a modalização (a voz narrativa), os professores foram surpreendidos com produções que traziam requintes de humor e outras características que deixaram claro como propostas como essa podem ser enriquecedoras. Cristian, 11 anos, por exemplo, deu início ao texto baseado em Chapeuzinho Vermelho da seguinte forma: "Desde aqui, no mais profundo do inferno, lhes fala o lobo". Guardadas as devidas proporções, o recurso engenhosamente utilizado por ele lembra a abertura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839- 1908): "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".

A análise dessa experiência, apresentada no livro Narrar por Escrito do Ponto de Vista de um Personagem, é resultado do trabalho de mestrado de Ani Siro, psicopedagoga e mestre em Ciências com especialização em investigação educativa pelo Centro de Investigações e Estudos Avançados, no México.

Em visita ao Brasil, durante a Semana da Educação de 2010, organizada pela Fundação Victor Civita (FVC), ela ministrou uma palestra sobre a pesquisa e, em entrevista à Nova Escola, conta como surgiu a ideia, as dificuldades e os resultados que mais a surpreenderam.

Por que muitos estudantes não gostam de produzir textos?
ANI SIRO
Não acredito que eles simplesmente não apreciem a tarefa. Na minha opinião, propostas ruins geram o desinteresse pela escrita. Muitas vezes, as crianças não se sentem motivadas devido à solicitação que recebem dos professores. Se há um bom convite, a tarefa tende a se tornar prazerosa e, quando alguém sente que algo representa um desafio, muito provavelmente toma aquilo como um compromisso pessoal. Sei que às vezes temos dificuldades em propor situações e temas suficientemente atraentes e de garantir que todos do grupo sejam mobilizados. Mas temos de seguir afinando a maneira de conceber esse compromisso. Estamos mais concentrados no que queremos ensinar do que em como incitar a moçada a se comprometer no processo.

Qual foi seu foco ao estudar meios para ajudar os alunos a superar as dificuldades de produção de texto?
ANI
A importância de levar o leitor em consideração, valorizando alguns aspectos do discurso que são centrais, como reconhecer o ponto de vista do autor, as vozes presentes no texto e a temporalidade. Além desses, também são fundamentais efeitos textuais de humor e ironia (eles, às vezes, definem se um leitor vai abandonar um livro ou não). Também elegi como válido o fato de a garotada perceber que nem todos os aspectos e as construções literárias são fortes para determinar que uma pessoa se mantenha firme na leitura.

Como surgiu a ideia de propor a reescrita de histórias infantis em primeira pessoa, sob a perspectiva de um dos personagens?
ANI
A grande inspiração foi o livro Que História É Essa?, que conheci no Brasil. A obra traz contos tradicionais contados com base no ponto de vista de um dos personagens. Achei criativa, desafiante, além de alinhada com a minha proposta de concentrar toda a energia conceitual na transformação do ponto de vista e na mudança da voz narrativa. Então, eu e Emilia Ferreiro (psicolinguista argentina reconhecida por suas pesquisas sobre o processo de alfabetização, orientadora do trabalho de Ani e também autora do livro) começamos a conversar com os professores para dar forma ao trabalho e formular as etapas necessárias para colocá-lo em prática.

Como iniciar a atividade com a mudança de foco narrativo?
ANI
Não há instruções fixas porque primeiramente é preciso refletir sobre os objetivos a alcançar e as condições necessárias para chegar ao ponto esperado. Só então é possível iniciar o trabalho de fato, definindo o que deve ser produ-zido. Depois, é ainda necessário pensar nos processos sociais de produção do gênero escolhido, como os profissio-nais fazem para escrevê-lo. E, por fim, com base nisso, analisar quais situações didáticas são necessárias colocar em cena, levando em conta, é claro, que as produções feitas em um contexto escolar não têm as mesmas condições daquelas que circulam na sociedade.

Como a atividade trabalha a questão da voz narrativa?
ANI
Todos os fenômenos da voz e da forma como se apresentam os personagens são questões vinculadas à modalização que os alunos têm de trabalhar. Durante o processo de produção e revisão, eles passaram a reconhecer as características do discurso direto e indireto. No direto, os acontecimentos ocorrem de maneira mais vívida. Já o indireto é marcado por uma distância entre quem conta e aquilo que é contado. Além do mais, no processo de reescrita, é preciso deixar claras a astúcia do Lobo e a ingenuidade de Chapeuzinho, por exemplo. Alguns alunos nos surpreenderam ao utilizar recursos de humor e ironia para descrever os personagens. Em um dos textos, um estudante sugere que Cinderela acreditava que as irmãs não estavam de acordo com as expectativas do príncipe. Mas, em vez de falar isso de modo explícito, comenta que elas fizeram regime e mesmo assim precisaram "romper 12 botões" para entrar no vestido.

Como encaminhar o processo de revisão e de leitura coletiva?
ANI
É possível pedir que cada um revise o próprio texto ou analise a produção do colega. A tarefa também pode ser feita em grupo e optamos por isso. O objetivo era que os alunos fizessem uma reflexão sobre o conteúdo literário, nesse caso a mudança do ponto de vista e da voz narrativa. Além disso, esperávamos que eles formulassem perguntas e sistematizassem o que são capazes de fazer. Mas é preciso ressaltar que foi uma iniciação à revisão. Não se aprende a revisar de um dia para o outro, muito menos com uma atividade apenas. Faz parte de um processo de aproximação entre o que se quer dizer e o que os outros entendem. É necessária muita prática reflexiva para dominar a revisão.

Quais as dificuldades encontradas pela criançada?
ANI
O desafio dos estudantes era encontrar caminhos que assegurassem fidelidade aos principais fatos da história tradicional e ao mesmo tempo construir um enredo que trouxesse as informações de forma coerente com o ponto de vista do personagem escolhido. Uma situação difícil de contornar é não poder antecipar determinados fatos do relato e manter um discurso coerente. Em um primeiro momento, é normal que não exista a preocupação em decidir quais serão os episódios contados do ponto de vista do personagem escolhido. Em geral, essa necessidade aparece após a revisão. Como a história é narrada por diferentes personagens, muitos fatos precisaram ser encadeados em momentos diferentes do enredo original.

É possível propor a reescrita com outros gêneros literários?
ANI
O ideal é que esse tipo de projeto ocorra com outras variantes, construindo a cultura de conceber a produção de relatos e de revisá-los. São necessários múltiplos projetos. Não só os ligados à literatura, mas também a outros tipos de discursos sociais, que se desenvolvam tomando distintos pontos de vista para garantir que haja múltiplas condições de reflexão, produção e revisão. Por exemplo, textos jornalísticos e cartas.

O que mais a surpreendeu ao analisar os textos das crianças?
ANI
A capacidade de elaboração ficcional. Um aluno, que reescreveu o conto João e Maria, exprime o quanto foi difícil para o pai aceitar as pressões da nova esposa, a madrasta, e se desfazer dos filhos. Alguém de 9 anos tratar de sentimentos como esse é surpreendente!

Quer saber mais?

BIBLIOGRAFIA
Narrar por Escrito do Ponto de Vista de um Personagem
, Emilia Ferreiro e Ani Siro, 168 págs., Ed. Ática, tel. 0800-115-152, 34,90 reais
Que História É Essa?, Flávio Souza, 56 págs., Ed. Companhia das Letras, tel. (11) 3707-3500, 34 reais

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