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Jornalismo

Um debate com os professores sobre a reprovação escolar no Brasil

Aprofundamos a discussão sobre esse tema a partir de comentários dos nossos leitores

PorNOVA ESCOLA

28/06/2017

Volta às aulas na Escola Estadual Tiradentes, em Curitiba. Paraná é o terceiro estado com menor proporção de alunos com atraso escolar (Pedro Ribas/ ANPr)

por Ernesto Martins Faria

Na semana passada, escrevi sobre os indicadores de rendimento e transição escolar, abordando o impacto da reprovação na evasão. No artigo, eu não tinha a pretensão de exaurir todos os aspectos sobre a reprovação, mas sinalizar o que os dados apontam, em linha com muitas evidências nacionais e internacionais já documentadas. O texto repercutiu bastante e recebeu vários comentários, que traziam diversas problematizações sobre o tema. Boa parte desses comentários ilustram a decisão complexa em torno da aprovação ou não de alunos com baixo desempenho. Por isso, já digo que, antes de tudo, sei que a questão não é simples e peço sinceras desculpas aos educadores se o texto gerou essa impressão.

LEIA MAIS: Reprovar é dizer ao aluno que ele não precisa concluir o Ensino Médio

Ainda assim, e apesar de sinceramente concordar com os desafios existentes em sala de aula e com a complexidade da questão, sigo acreditando que a reprovação massiva de alunos não é a melhor saída para esses desafios. Por isso, quero seguir esse debate em diálogo com os comentários com mais curtidas no Facebook de NOVA ESCOLA:

“Quando você vai procurar um emprego, corre o risco de não ser aceito. O mesmo acontece com a escola. Mas não podemos enfiar goela abaixo ou cérebro abaixo algo que o aluno não quer. Muitos alunos simplesmente não querem ou não gostam de estudar, assim como tem muita gente que não gosta de trabalhar. O professor não é o carrasco e nem o super-herói dessa história. Cabe primeiro à família dar a base de educação, depois vem o resto, e isso inclui a escola. O aluno é só um reflexo da família.”

Esse é um comentário que não diretamente faz uma crítica ao texto, mas que problematiza os desafios de ensinar. Mais de 80 pessoas no Facebook de NOVA ESCOLA reagiram positivamente a ele com “curti” ou “amei”. Garantir a aprendizagem se torna mais complexo no final do Ensino Fundamental e, especialmente, no Ensino Médio, já que é mais difícil desenvolver habilidades socioemocionais nos alunos quanto mais avançada a etapa em que estão. Ainda mais considerando que muitos chegam à escola sem a cultura de estudar e/ou sem terem desenvolvido habilidades como disciplina e foco.

A família, como colocado no comentário, tem grande importância no desenvolvimento das competências socioemocionais. No entanto, quero trazer aqui a importância de a escola buscar ser também protagonista neste processo, nutrindo altas expectativas pelos alunos, independentemente do contexto. Recomendo o estudo Expectations and Student Outcomes, de Kathleen Cotton, que fez uma grande revisão sobre o tema. Ele traz evidências de que as expectativas dos professores têm grande impacto no aprendizado dos alunos.

Outro aspecto importante de abordar é que a baixa escolaridade de muitos pais e/ou o pouco tempo que eles têm para acompanhar as atividades escolares de seus filhos devido às longas jornadas de trabalho, exigem que a escola busque ser protagonista no processo. E ser protagonista não indica tentar resolver sozinha a questão, mas propor ações para engajar os pais e a comunidade. Os estudos Excelência com Equidade, que coordenei na Fundação Lemann, ilustram bem o fato de que as escolas com bons resultados de aprendizagem no Brasil seguem esse caminho

"Que reprovação? Não se reprova mais alunos por causa da quantidade de trabalhos, segundas chances etc. O aluno só não passa se não quiser. Vocês estão fora da realidade."

Esse é um ponto interessante e mais de 60 pessoas curtiram esse comentário.

Se olhamos para o percentual de alunos de baixo desempenho no Brasil, percebemos que muitos dos que têm níveis de proficiência baixos não são reprovados em um ano. No entanto, se a gente olha para as taxas de reprovação no mundo ou no percentual de alunos que já tiveram uma reprovação em sua trajetória escolar, percebemos que os índices do Brasil ainda são muito altos.

Costumo ilustrar em palestras que percentuais em torno de 10% a 12% de reprovação ao ano, o que ocorre nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, são taxas que geram uma grande distorção idade-série. Imaginemos que há 100 alunos no 6º ano. Se, entre eles, 10% forem reprovados, teremos 90 alunos promovidos para o 7º ano. Se, desses 90 alunos, outros 10% são reprovados, teremos 81 alunos indo para o 8º ano. E por aí vai. O efeito é cumulativo ano após ano, o que faz com que o número de alunos brasileiros que chegam ao Ensino Médio na idade adequada seja muito baixo, como é ilustrado nesses gráficos no QEdu (veja aqui com mais detalhes).

Mapa do atraso escolar do Brasil em 2015 (Crédito: QEdu)

Um estudo da União Europeia de 2011 mostrou que, em média, 16% dos estudantes entre 15 e 16 anos havia repetido alguma série no Ensino Fundamental. Mostrou também que, em 19 de 33 países, menos de 6% dos alunos entre 15 e 16 anos havia repetido uma série no Fundamental. Isto é, durante nove anos, no máximo um em cada 17 alunos enfrentou essa situação. Para se ter um comparativo, no Brasil, somente no 6º ano do Fundamental, 13,8% dos alunos foram reprovados em 2015. Então, ao passo em que concordo que há muitos estudantes de baixo desempenho que são aprovados, há ainda muitos que são reprovados no país, fato que fica ainda mais evidente em perspectiva com índices internacionais.

"No Ensino Fundamental, os pais insistem que a criança continue os estudos. No Médio, como o próprio artigo diz, muitos alunos têm mais de 18 anos, portanto não são mais obrigados a continuar. Como os alunos já podem trabalhar a partir dos 16 anos, muitos preferem não estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Culpar a reprovação pela evasão escolar é ignorar diversos outros fatores."

Essa é uma questão interessante, até por que o texto que propus anteriormente não se aprofundou no tema. E mais de 100 pessoas gostaram desse comentário. Um ponto interessante que o comentário traz é que há vários fatores que contribuem para a evasão, o que é uma verdade. A baixa qualidade do ensino, o mercado de trabalho e mesmo a gravidez na adolescência são alguns exemplos. Mas há muitos estudos que comprovam o impacto da reprovação no abandono e na evasão escolar. Compartilho aqui alguns: Why Students Drop Out of School: A Review of 25 Years of Research e Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Ressalto que, se diminuída a reprovação e as saídas e retornos durante a trajetória escolar, seria raro encontrar estudantes acima de 17 anos antes do 3º ano do Ensino Médio.

"Não concordo. Em primeiro lugar, o Brasil é campeão em analfabetos funcionais. A pessoa tem o certificado de Ensino Médio concluído, mas não ler, interpretar, resolver continhas básicas, escrever. É isso que acontece. Não é o caso de dizer que ele não precisa terminar, é que boa parte não faz questão. E o nosso sistema de Educação falido de valores obriga escolas e professores a aprová los."

"Aprovar quem não aprendeu é dizer que o sujeito não precisa estudar. Talvez criar um sistema no qual o aluno só repete a matéria em que ele não foi aprovado, desestimule menos. Passar a mão na cabeça não vai resolver o problema."

Estes comentários não estiveram dentre os mais curtidos na página, mas apresentam pontos importantes e são corroborados por vários outros comentários feitos em relação ao texto.

O primeiro comentário fala que nosso sistema obriga as escolas e professores a aprovar os alunos. Realmente, isso acontece em muitos casos e traz implicações. As políticas de progressão continuada, embora conceitualmente interessantes por propor um acompanhamento da aprendizagem e a retenção apenas nos finais de ciclo, não foram, em várias redes, construídas em diálogo com os professores e, por vezes, foram mal implementadas nas escolas. Faltam no Brasil mecanismos de acompanhamento e suporte aos educadores na luta contra as defasagens de aprendizado, o que fez a “progressão continuada” passar a ser chamada em muitos lugares de “aprovação automática”.

Sob o meu ponto de vista, em um sistema educacional maduro, a escola não deveria ser obrigada a aprovar seus alunos. Se a escola buscou fazer de tudo para garantir a aprendizagem do aluno e acredita que pode resolver esses problemas de aprendizagem com mais um ano, a reprovação é justificável. Contudo, deveríamos entender que a reprovação não deveria ser a resposta para a maioria dos alunos, mas um entre os vários instrumentos para auxiliar estudantes com dificuldades de aprendizado. Cabe destacar também que altas taxas de reprovação sinalizam não problemas individuais dos alunos, mas problemas estruturais do processo de ensino-aprendizagem. Um caso interessante é o da rede de Foz do Iguaçu (PR), que entre 2009 e 2012 deu autonomia para que os professores reprovassem os estudantes, mas mesmo assim a taxa de reprovação escolar caiu. E isso aconteceu num contexto de diálogo sobre os malefícios da reprovação e um suporte mais direto da secretaria para o desenvolvimento de aspectos pedagógicos.

Nos comentários destacados está também a ideia de que aprovar é dizer que o aluno não precisa estudar. Essa é uma questão bem complexa, e eu dificilmente vou conseguir me colocar na condição de vocês, educadores, em relação aos desafios relacionados a esse ponto. Apesar de parte da minha trajetória escolar ter ocorrido na rede pública, ao lado de muitos colegas que não se engajavam nos estudos, e de ter visitado diversas escolas como pesquisador, é muito difícil retratar fielmente todas as questões ligadas à relação aluno-professor. Imagino – e consigo apenas imaginar – como pode ser duro para um professor ver um aluno que não se preocupa com sua própria aprendizagem e ter que, ao final do ano, sinalizar que tudo vai bem e aprova-lo.

No entanto, o meu questionamento aqui visa propor um olhar para a possível existência de outras formas mais estimulantes de incentivar os estudos ao invés de tomar como regra a “punição educativa” para quem não estuda. Algumas escolas têm, por exemplo, promovido a valorização dos alunos de  bom desempenho para inspirar e mobilizar os demais, além de despertar a atenção dos pais e da comunidade. Medidas para recuperar a defasagem ao longo do ano letivo e durante as férias escolares também precisam ser consideradas, embora dependam também de recursos financeiros e de outros fatores que vão além do compromisso dos professores.

Outro dado relevante é o fato de que a reprovação no Brasil tem se mostrado ineficaz, se considerado o objetivo primário da escola que é o de garantir a aprendizagem. Os alunos que repetem uma série raramente atingem um bom nível de aprendizado após a repetência. Fiz um estudo sobre isso em 2011: Os alunos reprovados no Brasil: uma análise das proficiências e das taxas de abandono por meio das avaliações Prova Brasil e Pisa. Os alunos que fazem uma série novamente deveriam receber um acompanhamento mais individualizado, mas não é isso que acontece. E, de novo, não se trata apenas de ineficiência ou má vontade dos professores. São todas questões que demandam alinhamento e sintonia entre todos os atores e componentes envolvidos.

"De maneira mais dura, reprovar é uma maneira de impedir que um incompetente esteja, futuramente, em hospitais fazendo cirurgias ou em edificações construindo edifícios."

Por fim, selecionei um último comentário e gostaria de propor uma reflexão sobre ele. Há nele um retrato da discussão confusa em torno da reprovação, que carrega particularidades quando o foco é a Educação Básica e não o Ensino Superior. A Educação Básica carrega o papel de desenvolver competências essenciais para que o aluno tenha condições de sonhar e de, no futuro, concretizar seus projetos de vida e exercer sua cidadania. A questão é bem diferente no Ensino Superior, que mira no desenvolvimento de conhecimentos mais específicos e focados em uma área de atuação profissional. Se, no Ensino Superior, o estudante não estiver dominando habilidades importantes para o completo e responsável exercício profissional, deve, sim, ser retido.

Discutir educação é necessário. Do exercício do diálogo e da motivação compartilhada para a superação dos desafios é que podemos juntos encontrar novos e melhores caminhos. Os desafios não são poucos e nem fáceis de resolver. Mas estou convencido de que reprovar muitos alunos não é a solução. Sigo à disposição para continuar o debate. Segue o meu e-mail: ernesto.faria@student.fpce.uc.pt

Ernesto Martins Faria é pesquisador da Fundação Lemann e doutorando em Organização do Ensino, Aprendizagem e Formação de Professores na Universidade de Coimbra (Portugal)

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