Por que nos comovemos com o texto do pai de Micarla?
Uma troca de mensagens que diz muito sobre a história da Educação brasileira
23/09/2016
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Jornalismo
23/09/2016
Pedro, a filha Micarla e a troca de mensagens que emocionou a internet. Crédito: Reprodução/Facebook
Em meio a separações hollywoodianas e reforma do Ensino Médio, a internet brasileira suspirou nos últimos dias por conta de uma história muito mais singela. Uma estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Micarla Lins, compartilhou no Facebook um pedido de desculpas do pai.
Durante uma conversa no Messenger, Pedro escreveu para a filha “Decupa pro não sabe esr”. Emocionada, ela usou seu exemplo para questionar quem faz piada ou discrimina por erros de português, lembrando que nem todos têm as mesmas oportunidades na vida.
Rapidamente, um post que deveria atingir apenas os amigos de Micarla, se espalhou pelas timelines, conseguindo mais de 40 mil compartilhamentos e 270 mil curtidas. A seguir, vieram reportagens em portais e na TV. Mas, além do afeto entre pai e filha, o que nos comove tanto na história de Pedro e Micarla?
Meu palpite é a Educação, ou melhor, a falta da Educação. Ela nos une. A história de Pedro, pernambucano que largou a escola na infância para trabalhar depois da morte precoce da mãe, é parecida com a de muitos milhões de brasileiros. É a história da exclusão escolar que condenou gerações inteiras ao analfabetismo integral ou funcional.
É preciso lembrar que mesmo a Educação pública no Brasil nunca foi para a maioria. Colégios públicos pioneiros e históricos, como o Pedro II ou o Caetano de Campos foram criados para atender a demanda dos ricos.
No Rio imperial, a missão do Pedro II era formar uma elite nacional alinhada com o pensamento hegemônico ocidental, branco e cristão. Já na República em São Paulo, as salas e corredores do Caetano de Campos eram ocupadas em sua maioria por filhos de políticos e fazendeiros.
Foi principalmente nos anos 1990 que o Brasil, e não apenas uma parte pequena dele, começou a entrar em larga escala na escola. Um Brasil real, mestiço, pobre e machucado por décadas de exclusão. E a escola não estava preparada para o Brasil.
Os pais, avôs e bisavôs desses alunos que pisaram pela primeira vez em uma sala de aula não tinham o que convencionamos chamar de “cultura escolar”. Também não tinham livros em casa porque não sabiam ler. O que eles tinham era uma longa trajetória de trabalho duro que começou cedo demais para que eles pudessem ir à escola, assim como o pai de Micarla.
Esse choque entre a escola brasileira e os brasileiros continua. Depois do momento da inclusão, que não está completamente superado, veio o desafio da qualidade. Como ensinar esses alunos sem referência alguma de escrita, sem alimentação adequada em casa e com pais que têm vergonha de ir à reunião por acharem não ter roupas adequadas?
Não é raro ainda hoje que se justifique o fracasso escolar pela “família desestruturada” ou que o aluno pobre seja visto como menos capaz de aprender. Conheci muitos pais na minha trajetória cobrindo Educação e os mais humildes, que estudaram nada ou muito pouco, são os que mais valorizam a chance que os filhos têm e eles não tiveram.
Lembro de um avô analfabeto no Acre que assumiu os netos e me contou explodindo de alegria que os dois estavam “na cidade”, estudando na federal. Uma mãe em uma comunidade quilombola no sertão de Pernambuco que andava quilômetros para levar e buscar os filhos na escola. E lembro do meu pai, nascido na roça no interior da Bahia. Com meus avós analfabetos, foi o único dos irmãos a conseguir se formar, contra todas as impossibilidades da pobreza.
Por isso imagino o quanto Pedro, o pai de Micarla, se sente feliz com a filha ter conseguido chegar à UFRJ. Se a exclusão na Educação Básica era, e ainda é, intensa, a entrada dos pobres no Ensino Superior começou ontem. Fiquei muito feliz ao saber que Micarla escolheu Serviço Social e que seu projeto de vida é contribuir de alguma forma para reduzir essa desigualdade tão brasileira.
Para Pedro, digo: não peça desculpas, mas comemore o que proporcionou a Micarla. E deixo um conselho, se matricule em uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Há muitos professores, com extrema sensibilidade e capacidade de ensinar os que já não são crianças. No Brasil dos últimos anos, estamos cheios de exemplos de que sempre dá tempo. Do gari que virou advogado à empregada doméstica que deixou de ter vergonha por não saber ler um bilhete dos patrões.
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