A luta dos ciganos pelo direito à Educação
Discriminados há séculos, grupos nômades sofrem para ter cidadania no Brasil
PorNOVA ESCOLARodrigo RatierWellington SoaresAnna Rachel Ferreira
01/06/2015
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Jornalismo
PorNOVA ESCOLARodrigo RatierWellington SoaresAnna Rachel Ferreira
01/06/2015
"Quando eu era pequena e os ciganos estavam por aqui, quase não saía de casa. Minha mãe dizia que eles roubavam crianças." Por muito tempo, o temor infantil permaneceu vivo na memória de Elisete Maria Stepka, moradora de Gonçalves Júnior, distrito rural com pouco mais de meia dúzia de ruas em Irati, a 153 quilômetros de Curitiba. Durante décadas, seu povoado foi ponto de parada de caravanas ciganas. Grupos nômades chegavam todo mês e montavam acampamento. Faziam negócios de compra e venda de mercadorias, ficavam um tempo - no máximo duas semanas - e seguiam. A população do lugar, formada por descendentes de colonos europeus, mantinha distância. E tinha medo.
A desconfiança se dissipou - e Elisete tem muito a ver com isso. Em 2004, ela se aproximou de um conjunto de cerca de dez famílias. "Me pediram que eu fizesse algumas imagens deles para levarem à sala das promessas da Basílica de Nossa Senhora Aparecida", conta. Diferentemente do que costumava acontecer, aquela caravana não voltou à estrada. Ficou por semanas, que se tornaram meses e, depois, uma estadia definitiva, quando alguns integrantes arranjaram emprego na região e compraram o terreno do acampamento (veja fotos da comunidade nas galerias de fotos). Com a permanência, o povoado começou a se preocupar com a situação das crianças. Coube a Elisete, que já atuava como professora, fazer o convite para que elas fossem matriculadas. Hoje, muitas são alunas de Elisete na escola local. Apenas dois jovens não estudam.
O número é excelente para o contexto desses agrupamentos. No resto do país, as dificuldades começam com a escassez de informações sobre povos ciganos. A melhor estimativa, de 2011, fala em mais de meio milhão no Brasil, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reconhece que os dados são incipientes. Não se sabe quantos precisam ser incluídos na escola nem quantos adultos devem ser alfabetizados.
A distância entre eles e o estudo tem conexão direta com um histórico de segregação. Como se fosse parte das lonas das tendas e das roupas coloridas, a alcunha de ladrões, trapaceiros e feiticeiros os acompanha há séculos. Esses preconceitos justificaram a exclusão na maior parte das sociedades em que eles quiseram se inserir. "Foi o fato de serem sempre expulsos de onde estivessem que determinou o nomadismo dos ciganos", explica Claudio Iovanovitchi, membro do Conselho Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná.
Perseguidos também por aqui
Acredita-se que foi pela via da expulsão, aliás, que chegaram ao Brasil - deportados pela coroa portuguesa no século 16. Hoje estão representadas em nosso território as três etnias ciganas: rom (originária da atual Romênia), calom (Espanha e Portugal) e sinti (Alemanha e França), todas marcadas pela discriminação. Até 2002, as únicas políticas implementadas pelo Estado para essas populações visava impedir ou controlar seu acesso. "Atas e documentos policiais mostram a perseguição aos ciganos", esclarece Mirian Alves, docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Com a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em 2003, começaram a se desenhar algumas iniciativas para a integração desses grupos à sociedade. A principal iniciativa é o Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos, um material de orientação sobre os direitos dessas populações em serviços sociais.
No caso da Educação, a falta de documentos, como o histórico escolar, serve de justificativa para barrar a matrícula de crianças ciganas. Em outras situações, a alegação é a ausência de comprovante de residência, embora uma resolução de 2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE) defina que isso não é obrigatório. Ainda que as escolas tenham o dever de se adaptar aos grupos que se mudam num curto período de tempo, diversas delas fogem de alunos em situação de itinerância. "Muitas vezes, ao perceberem que estão conversando com uma família cigana, os servidores públicos criam justificativas para negar o atendimento", lamenta Claudio.
Entre os que chegam à escola, permanecer nela é o desafio. Os estigmas que cercam essas comunidades levam ao bullying e, por consequência, à evasão. Um estudo realizado em 2009 pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) para o Ministério da Educação (MEC) mostra que os ciganos são os povos sobre o qual há maior preconceito no ambiente escolar. Um exemplo chocante: entre os entrevistados, 27% dos professores e 40% dos estudantes concordaram com a afirmação de que ciganos detestam responsabilidades. "Conhece-se muito pouco sobre nossa história e cultura. É preciso formar os educadores para desconstruir esse tipo de preconceito", afirma Lucimara Cavalcante, fundadora da Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK), que defende os direitos dessa população.
"No período de adaptação, uma jovem da comunidade ficou conosco na sala de aula. Ela nos ajudou em questões como a dificuldade das crianças ciganas em permanecer sentadas."
Elisete Maria Stepka, professora da rede estadual do Paraná
Contra o estigma, a qualificação
Formações específicas no assunto são raras. Uma das pioneiras, da Secretaria de Estado da Educação do Paraná, discute preconceitos com a comunidade escolar e apresenta elementos de história e cultura dos ciganos. Em Gonçalves Júnior, o trabalho auxiliou a integração nas duas escolas públicas que fazem a ponte entre colonos e esses povos. Os pequenos, que antes tinham dificuldades com os horários e para permanecer sentados durante a aula, não se acostumavam com a comida e permaneciam isolados em seu grupo, estão completamente adaptados. No intervalo e na aula, eles se divertem com todos os amigos. "A gente conversa sobre tudo. Às vezes, elas me perguntam coisas da minha cultura e eu questiono sobre o dia a dia na casa delas", conta Chaiane Fernandes, 14 anos. Longe do preconceito, os obstáculos, agora, são mais prosaicos. "Gosto de Ciências e também de Matemática, mas preciso melhorar muito em Língua Portuguesa", confessa Ivan Fernandes Pereira, 14 anos.
Trajetórias de sucesso escolar como as dos estudantes Chaiane e Ivan são fundamentais para vencer as barreiras culturais. Lauro Fernandes, patriarca dos que residem no distrito, é um dos grandes aliados dos funcionários da escola. "É muito importante que as crianças e os jovens ciganos estudem e adquiram conhecimento. Quanto mais misturados, melhor."
Em outras comunidades, a valorização da Educação não é tão clara. Por desconfiança contra os gadjé, como eles chamam os não ciganos, ou por não reconhecerem como legítimos os conhecimentos da escolarização, muitos grupos evitam matricular as crianças nas instituições regulares. Uma alternativa, a formação de escolas exclusivas para esses povos, é a opção de cidades como Porto Seguro, a 710 quilômetros de Salvador, e Betim, a 39 quilômetros de Belo Horizonte. O esforço de adaptação vai além do ajuste curricular para a itinerância. "Como eles são muito espontâneos, querem uma escola flexível, que comece com brincadeiras e termine na hora em que preferem", explica Flávio José Oliveira Silva, professor da Universidade Potiguar (UnP) e especialista em Educação de crianças ciganas.
Mesmo em Gonçalves Júnior, há problemas. Dos dois alunos que estão fora da escola, uma menina de 17 anos largou os estudos para cuidar de uma tia doente e assumir as tarefas domésticas. E seu irmão mais novo, 15 anos, desistiu depois de aprender a ler e fazer contas - retrato da visão pragmática que muitas comunidades ainda possuem da Educação. Ainda assim, o caso do distrito paranaense aponta um caminho para a garantia da cidadania dos povos ciganos. "Não tenho estudo nem sei assinar meu nome. Quero que a vida dos meus filhos seja diferente", afirma Dilair Fernandes, mãe de Chaiane, Vanessa, Amarildo e Adriele - todos matriculados. "Quero que arrumem um bom emprego, sejam o que quiserem."
"O que eu mais gosto da escola é fazer novas amigas. A gente vai na casa uma da outra... Eu até já dormi na casa da Vanessa. É um pouco diferente da minha, mas não muito."
Chaiane Fernandes, aluna regular do Colégio Estadual Gonçalves Júnior
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