Bichos e homens através dos tempos
Analisando diversas fontes, a garotada relacionou o passado e o presente. Dessa forma, entendeu como se produz o conhecimento histórico
01/03/2013
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Jornalismo
01/03/2013
Pelas ruas próximas à EM Professora Zilma Thibes Mello, na cidade de Iperó, a 163 quilômetros de São Paulo, vagam muitos animais abandonados - o que resultou numa questão de saúde pública na região. Pensando nisso, o professor Ailton Luiz Camargo decidiu propor aos alunos do 8º ano um estudo sobre a relação entre homens e bichos, do período colonial aos dias de hoje. Seu objetivo era ensinar um conteúdo previsto para essa etapa por meio de uma abordagem que mobilizasse a atenção da turma e a levasse a refletir sobre a realidade do seu entorno. O trabalho segue orientações que podem ser úteis a professores de todo o Brasil, como a valorização de eixos temáticos e do diálogo entre o presente e o passado (leia a entrevista com o psicólogo espanhol Mario Carretero na última página).
O ponto de partida foi a leitura de um trecho da lei municipal de proteção aos animais e de uma notícia de jornal que relatava a apreensão de aves silvestres na região. Com base nisso, os alunos escreveram um texto argumentativo, que serviu como avaliação diagnóstica. Nele, explicaram o que entendiam sobre a relação entre homens e animais. Ao analisar as produções, Ailton notou que a turma não sabia que essa relação era determinada pelo contexto histórico.
Uma breve discussão em sala sobre as leis de proteção aos animais ocorreu em seguida. O professor lançou algumas provocações à classe, como "As leis são aplicadas?" e "Será que elas sempre existiram?". Depois, convidou a garotada a estudar a economia colonial com base em uma pesquisa com fontes históricas (leia o quadro na página seguinte). Assim, a turma se aproximou de procedimentos típicos do trabalho do historiador, como fazer inferências sobre materiais e comparar versões. Os alunos leram artigos previamente selecionados por Camargo e fizeram anotações. Enquanto isso, ele circulava pela sala, perguntando, por exemplo: "Quais as informações mais relevantes em cada texto?"
O próximo passo foi analisar as obras do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), que retratou cenas de homens e bichos no período colonial brasileiro. A classe foi separada em duplas e cada uma trabalhou com uma pintura. Depois, apresentou suas conclusões ao restante da turma. Obras de arte exigem procedimentos de leitura específicos. "O professor precisa ensinar os alunos a fazer esse trabalho, dando a eles os instrumentos, como informações preliminares sobre as obras. Também deve conduzir a atividade, explicando o que é necessário notar em cada imagem", diz Ivo Mattozzi, professor de Didática da História da Universidade de Bolonha, na Itália.
Camargo sugeriu que a garotada observasse as ações e os personagens retratados e a forma como a relação entre homens e animais era representada. Nesse ponto ainda, chamou a atenção para o fato de que as obras não poderiam ser tomadas como uma reprodução fiel da realidade, pois refletiam a perspectiva do autor. "Isso leva o aluno a entender que as fontes históricas não são necessariamente vestígios exatos do passado, mas representações dele com base em pontos de vista diferentes", afirma Matozzi.
A pesquisa foi complementada com uma aula expositiva. O professor abordou os principais aspectos da colonização no Brasil ao longo do século 18 e as relações travadas com os animais naquele cotidiano, como o uso de mulas para o transporte de mercadorias e alimentos - o que originou o tropeirismo, um dos fenômenos mais importantes da colônia. Camargo também deu um retorno coletivo sobre atividades já realizadas. "Selecionei trechos das informações coletadas pelos alunos na pesquisa e li para estimular o debate e complementar minha fala." Na etapa seguinte, a turma redigiu seu primeiro texto. O objetivo era dissertar sobre a relação entre homens e animais no Brasil colônia. O professor interveio, sugerindo mudanças e corrigindo erros conceituais. "Nesses momentos, eu pedia que o aluno revisasse sua pesquisa, sem encerrar a discussão com a resposta correta."
Depois de mergulhar no período colonial, a garotada voltou para o presente, estudando a realidade com base em novos documentos. Leu artigos da lei e discutiu sobre as violações que já tinha visto. A última etapa envolveu a produção de uma carta que seria enviada às autoridades locais. O objetivo era reivindicar melhorias para a questão dos maus-tratos aos animais na região. "Assim, o professor retomou a discussão da sondagem sobre a existência de leis e sua aplicação. Também estimulou os estudantes a se reconhecerem como sujeitos históricos, capazes de intervir na realidade", explica Juliano Custódio Sobrinho, professor do curso de História da Universidade Nove de Julho (Uninove). Ao fim do projeto, os alunos entenderam que as inquietações do presente podem ajudar a interpretar o passado. E que esse período, por sua vez, não é uma simples sequência de fatos, mas um conjunto de fenômenos complexos, com muitos pontos de contato com o aqui e o agora.
Os animais na História
A percepção humana sobre os bichos mudou ao longo dos séculos. Conheça alguns pontos marcantes dessa trajetória, que foi explorada por Camargo em sala
Século 6 a.C. O filósofo grego Pitágoras (570-500 ou 490 a.C.) discute o respeito aos animais.
Século 16 No Brasil colônia, os animais são divididos em bons e maus de acordo com sua utilidade.
Século 18 O filósofo britânico Jeremy Bentham (1748-1832) defende o respeito à dor animal. No Brasil, a divisão dos bichos entre bons e maus persiste.
Século 19 O tema continua mobilizando pensadores, mas ainda não há leis de proteção aos animais. Debret os registra em suas obras.
1970 Em todo o mundo, surgem movimentos sociais em defesa de diversos grupos. A luta pelos direitos dos animais ganha força e a oposição entre bons e maus do passado dá lugar a uma nova perspectiva, na qual todos merecem condições mínimas de respeito.
1978 A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Unesco, é promulgada.
1997 Uma portaria do Ibama estabelece diretrizes para a compra e a venda de bichos silvestres.
Anos 2000 São criadas diretrizes para a propriedade, a posse, o transporte e a guarda responsável de cães. Estados e municípios criam leis de proteção aos bichos.
Fontes Fundo Mundial para a Natureza (WWF, sigla em inglês) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Pesquisa
Fontes históricas, como trechos de livros e pinturas, ajudaram a aprofundar o estudo
Depois de identificar que os alunos não viam a relação entre bichos e pessoas como uma construção histórica, Camargo propôs um estudo sobre a questão no período colonial. Eles leram e interpretaram textos de autoria de historiadores como Mary del Priore, e do livro História Geral da Civilização Brasileira (Boris Fausto e Sérgio Buarque de Holanda, 412 págs., Ed. Bertrand Brasil, tel. 21/2585-2000, 65 reais). Também analisaram obras de Debret. Assim, compararam versões e conheceram diversos aspectos da sociedade da época. Os dados obtidos serviram de base para a etapa de produção textual. Nela, a garotada redigiu, individualmente, um texto sobre a relação entre homens e animais no período colonial.
Estudo de caso
Análise de documentos permitiu relacionar o passado à realidade local
Os estudantes registraram relatos de maus-tratos aos animais que já tinham presenciado nas ruas do bairro em que fica a escola. Também leram e debateram os artigos da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e uma lei municipal sobre o tema. Fizeram, ainda, uma tabela, em que apontavam os artigos aplicados ou não na cidade. Por fim, cada um escreveu uma carta às autoridades municipais. O objetivo era reivindicar o cumprimento da lei local, usando os conteúdos estudados para desenvolver a argumentação.
"A finalidade da disciplina é fazer perguntas"
Como o passado e o presente devem ser relacionados nas aulas de História?
Mario Carretero Essa relação é um dos objetivos da disciplina. O recomendado é entender o instante imediato, que definimos como presente de forma maleável, e não apenas como o hoje em dia, mas qualquer momento do próprio passado que foi influenciado por um momento anterior.
Como enfoques não lineares desenvolvem o pensamento histórico dos alunos?
Carretero A História costuma ser apresentada como uma explicação narrativa do que aconteceu, de forma que o estudante recebe um relato fechado, no qual não há espaço para dúvidas e questões. Na realidade, isso não é assim nem para os historiadores. A finalidade da disciplina é fazer perguntas sobre o passado, entre outras coisas porque não sabemos bem o que ocorreu nem por quê. Um enfoque didático que se baseia em buscar relações significativas entre diferentes momentos temporais por meio de perguntas e de atividades de investigação, adaptadas à aula e ao nível cognitivo da turma, gera uma possibilidade muito rica de compreender a História e de construir conhecimentos históricos.
É válido trabalhar com recortes temáticos?
Carretero Sim. As pesquisas atuais questionam o sentido de oferecer uma narrativa histórica baseada em entidades abstratas (o Estado e a nação, por exemplo) como sujeito histórico, mostrando que há muitos outros. Mulheres, crianças, escravos e homossexuais são algumas das opções possíveis. Oferecer a possibilidade de fazer perguntas em aula sobre como viveram esses grupos, sem pretender que sejam a única narrativa possível, é uma forma de enriquecer as aulas.
Que critérios utilizar para selecionar os conhecimentos mais relevantes para cada classe?
Carretero A seleção de conteúdos deve ser feita considerando não apenas os saberes prévios dos alunos mas também as necessidades da comunidade escolar e sua adequação ao projeto político-pedagógico (PPP) da instituição. Este último, sobretudo, é muito importante.
Mario Carretero, psicólogo, especialista em desenvolvimento cognitivo e didática das Ciências Sociais
Curti
"Aprendi muito sobre a economia colonial. Também entendi que a relação humana com os bichos é determinada pelo contexto e, por isso, muda com o tempo."
Juliana Silveira, 13 anos
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