Em um ano, os alunos do 8º ano se tornaram escritores
Ao preparar uma homenagem a professores marcantes, alunos com sérias dificuldades para ler e escrever mudaram sua história
01/03/2013
Este conteúdo é gratuito, entre na sua conta para ter acesso completo! Cadastre-se ou faça login
Compartilhe:
Jornalismo
01/03/2013
Quem lê o texto reproduzido no final desta página nem imagina que, há um ano, a maioria dos alunos do 8º ano da EEF Odilon de Souza Brilhante, em Ocara, a 104 quilômetros de Fortaleza, tinha graves problemas de leitura e escrita, com dificuldades para realizar produções coerentes e usar corretamente a letra maiúscula, os diferentes tempos verbais e os sinais de pontuação.
Moradores da zona rural e filhos de pais com baixa escolaridade, esses meninos e meninas faziam parte de uma realidade que, infelizmente, se perpetua no país: alunos que chegam ao fim do Ensino Fundamental sem conhecimentos adequados em leitura e escrita. Um estudo do pesquisador José Francisco Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), com base na Prova Brasil 2011, mostra que 552 mil estudantes do 9º ano (22% do total) têm aprendizado insuficiente em Língua Portuguesa.
A trajetória da turma de Ocara, no entanto, foi para um caminho bem diferente. Os estudantes encontraram pela frente o professor Antonio Oziêlton de Brito Sousa, que aceitou o desafio de tirar o atraso deles e torná-los leitores proficientes. Ex -aluno da escola, o docente conhecia de perto a realidade local e tinha a convicção de que todos podiam aprender.
A resistência, no entanto, era grande. Arredios, os jovens se colocavam contra qualquer proposta de escrita do professor. "Eu dizia logo que não gostava de Língua Portuguesa e não ia fazer nada", conta a aluna Heloísa Ribeiro, 15 anos. "Éramos a turma mais difícil da escola", complementa o colega Ytalo Barbosa da Silva, 16. Com um olhar cuidadoso, o professor percebeu que tanta indisciplina tinha como pano de fundo dificuldades que vinham desde o início da escolarização. "A maioria não tinha as habilidades necessárias para participar de eventos linguísticos, orais ou escritos, no cotidiano da sala de aula", conta.
Era preciso criar uma sequência que fizesse sentido para os jovens. Sousa optou pelo gênero memórias literárias, tendo como foco lembranças que marcaram a vida escolar de cada um. "Ele formulou uma proposta em um contexto com poucos recursos (pequeno acesso a livros, falta de referências de leitura em casa etc.) atento ao que era representativo na comunidade (a escola) e a algo comum a todos (a memória)", comenta Rita Jover-Faleiros, docente da Universidade de Brasília (UnB).
Como a turma tinha resistência com a escrita, Sousa começou usando apenas a linguagem oral. "Sentamos em roda, todos foram convidados a observar imagens de jornais e revistas e utilizá-las para falar sobre sua trajetória escolar. "Alguns não queriam participar, mas, com a apresentação espontânea dos colegas, acabaram aceitando", comenta. "Nesse ponto, percebi a necessidade de continuar trabalhando a produção oral integrada à escrita."
Depois da conversa, ele pediu que a turma produzisse um texto e, com base nos resultados, preparou um plano anual de trabalho. As aulas foram divididas em seis módulos, que contemplavam expressão oral, leitura, escrita, revisão e reescrita e culminavam na produção de um livro em homenagem aos professores que marcaram a vida de cada um. As atividades começaram com a retomada de questões simples. O professor pediu que a classe falasse sobre as características dos bons educadores, listando-as no quadro. Em seguida, todos assistiram ao filme Adorável Professor (Stephen Herek, 440 min, Buena Vista Filmes do Brasil, tel. 11/5503-9900) e realizaram uma análise crítica. Para finalizar, Sousa pediu que, em duplas, os alunos produzissem uma lista de professores marcantes, discutindo o uso de maiúsculas e minúsculas.
Minha professora inesquecível*
Minha vida mudou completamente quando conheci uma professora muito especial, ela se chama Analine. Me ajudou bastante. Quando veio me ensinar, eu era muito mal educado e bagunceiro, mas ela conversou comigo e hoje sou completamente diferente, hoje sou um aluno comportado e bem educado.
Ensinava perfeitamente bem e nós sempre queríamos aprender mais. Antes eu não sabia muito sobre Matemática, hoje posso ser considerado um bom aluno nessa matéria, pois ela me ajudou bastante.
Ela sempre dizia "Nunca desista, você é capaz" e assim eu aprendi. Sou muito esforçado e me dedico bastante. Sei que um dia vou conseguir ser um bom profissional na área que eu escolher.
Todas as noites, na casa dos meus pais, eu estudo e sempre me lembro dos ensinamentos da minha querida professora Analine. Agora eu sei que quem estuda tem um futuro melhor e posso ser alguém na vida.
Muito obrigado por acreditar em nós. Eu nunca irei me esquecer da minha professora inesquecível.
Franscisco de Assis Morais da Silva, 18 anos
*Reprodução dos textos originais dos alunos
Análise de textos do gênero memórias
O módulo seguinte foi voltado à análise de textos do gênero memórias. O professor apresentou aos jovens a coletânea Meu Professor Inesquecível (org. Fanny Abramovich, 160 págs., Ed. Gente, tel. 11/3670-2500, 31,90 reais) e sugeriu uma tempestade de ideias sobre o título. Em seguida, leu em voz alta o texto de Marcos Rey (1925-1999), presente na obra, e pediu que confirmassem as suposições a respeito do tema. Os estudantes fizeram, então, uma segunda leitura, atentando para as características desse gênero textual. No fim, cada um escolheu seu professor inesquecível.
Entendido como são os textos de memórias, chegou a hora de ampliar o repertório e analisar produções de qualidade, tendo como foco questões relativas a coesão, coerência e vocabulário e a transposição da linguagem oral para a escrita. Para começar, os alunos receberam diversos textos. Fizeram uma primeira leitura silenciosa e, reunidos em cinco grupos, elegeram um e o apresentaram aos colegas, destacando aspectos que chamaram a atenção. Na aula seguinte, a turma recebeu a visita da bibliotecária da escola para uma entrevista coletiva. Em grupos, fizeram perguntas sobre as memórias escolares dela e escreveram relatos, que passaram por uma revisão coletiva.
Como não poderia faltar, o quarto módulo foi dedicado à escolha de livros. As atividades começaram na biblioteca. Uma aluna leu para a turma o texto Chuva de Estrelas, de Ilka Brunhilde Laurito (1925-2012), publicado no livro didático, e cada um pôde eleger uma obra e levá-la para casa. Os estudantes foram ao laboratório de informática e pesquisaram sobre os autores que haviam selecionado. "O trabalho articulado de leitura e escrita, dentro de um processo contínuo, permite ao aluno buscar soluções para seus textos em obra consagradas", diz Rita.
Ainda dentro do módulo quatro, o professor reservou um tempo para analisar coletivamente algumas produções iniciais dos alunos. "Destacamos pontos específicos que tratavam do uso dos tempos verbais e dos pronomes", explica. Com base na atividade e nos conhecimentos adquiridos, a classe elaborou um plano da produção final. O texto teria de ter as seguintes características: foco narrativo e pronomes em primeira pessoa; narrador-personagem; início, meio e fim; e tempo e espaço apropriados ao gênero.
Faltavam ainda alguns aspectos gramaticais, que foram tratados no quinto módulo. Sousa abriu a aula lendo para todos o conto Galinha ao Molho Pardo, de Fernando Sabino (1923-2004), presente no livro O Menino no Espelho (176 págs., Ed. Record, tel. 21/2585-2407, 34,90 reais). Em seguida, a classe fez uma leitura em voz alta, atentando para o uso dos sinais de pontuação e a colocação dos verbos. O docente problematizou a eliminação dos plurais, comum na linguagem oral e não aceita na escrita, e reservou um tempo para que a moçada começasse o texto final.
O último módulo foi dedicado ao aprimoramento das produções. "Combinamos que haveria uma revisão coletiva e outra individual", explica o professor, que optou por listar no quadro problemas comuns a todos: separação silábica, uso do "porque", grafia de algumas palavras etc. Os textos foram devolvidos e, em duplas, os alunos fizeram ajustes. Sousa leu atentamente cada produção e deu devolutivas individuais para que os autores a aperfeiçoassem.
A última atividade foi a organização do livro. Os jovens desenharam opções de capa e votaram nas que mais gostaram. Como houve empate, a turma decidiu dividir a publicação em dois volumes.
Foi realizada, então, uma grande festa para apresentar o livro aos professores homenageados e a toda a comunidade. Os dois volumes foram catalogados e hoje fazem parte do acervo da biblioteca escolar. Os meninos e as meninas que chegaram ao 8º ano sem ler com fluência nem conseguir colocar suas ideias por escrito agora vivem entre livros e sonham com a faculdade, um bom emprego e um futuro melhor. Depois de um ano de muito trabalho, cada um está apto a reescrever sua própria história.
Minha professora inesquecível*
No ano de 2009, quando tinha 10 anos, eu era muito bagunceira e teimosa, não prestava atenção nas aulas. Só melhorei quando conheci alguém muito especial, era a minha professora inesquecível, o nome dela é Fernanda. Ela me ajudou na organização e até no comportamento.
Curti
"Antes desse projeto, eu não conseguia escrever. Não sabia e nem tinha paciência. Hoje eu amo os livros. Tenho até um diário, em que registro as minhas memórias."
Heloísa Ribeiro, 15 anos
Minha professora inesquecível*
Eu gostava muito quando a Analine vinha dar aula. A cada dia, eu aprendia coisas incríveis e interessantes, ela explicava muito bem.
Gislane Cosme Leite, 16 anos
*Reprodução dos textos originais dos alunos
Últimas notícias