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Jornalismo

Reescrever para escrever com qualidade

A moçada experimentou todas as etapas da produção textual para redigir melhor

PorRaissa Pascoal

01/10/2014

A professora Renata aprimorou a escrita de sua turma utilizando-se de contos de aventura. Foto Manuela Novais. Ilustração Anna Cunha A professora Renata aprimorou a escrita de sua turma utilizando-se de contos de aventura Em duplas, os alunos vivenciaram as etapas de reescrita, edição e revisão dos textos. Foto Manuela Novais. Ilustração Anna Cunha O mágico ficou sabendo que Aladim estava vivo e fez um plano para tirar a lâmpada dele. Em duplas, os alunos vivenciaram as etapas de reescrita, edição e revisão dos textos De forma individual, as crianças produziram textos, colocando em ação o que aprenderam. Foto Manuela Novais. Ilustração Anna Cunha Simbad comprou um outro barco para navegar mais uma vez com seus companheiros. De forma individual, as crianças produziram textos, colocando em ação o que aprenderam

Foi no quadro, com a professora Renata Maria Pontes Cabral de Medeiros, que as crianças reescreveram uma das histórias da mais famosa coletânea da cultura oriental, As Mil e Uma Noites, conhecida no Ocidente desde o século 18 e publicada em diferentes versões. O conto narra os esforços de Sherazade para dissuadir o rei Shariar a matar todas as jovens do reino onde viviam. O monarca, decepcionado com sua primeira esposa infiel, não acreditava mais que as mulheres eram dignas de confiança. Por isso, desposava uma a cada noite e, para não correr o risco de ser traído novamente, mandava matá-la no dia seguinte. Esperta, Sherazade pensa num plano: ela decide se casar com Shariar e, para fazê-lo esquecer da sua vingança, inventa uma nova aventura incrível sempre antes da hora de dormir. Quando o clímax está chegando... pausa! Ela diz que o sol está nascendo e interrompe a narrativa para continuar no dia seguinte.

Enquanto Sherazade levou mil e uma noites para persuadir o monarca com histórias surpreendentes, Renata precisou de apenas quatro meses para fazer a turma do 4º ano da EMEF Fabiano Alves de Freitas, em Ituverava, a 415 quilômetros de São Paulo, escrever textos de qualidade. Partindo da prática coletiva para a individual (leia o quadro abaixo), a ideia foi realizar um projeto de reescrita de contos de aventura para ensinar às crianças as principais etapas de produção de um texto: criação de repertório, planejamento, textualização, revisão e edição. Posteriormente, o resultado da atividade se transformaria em um livro, que circularia pelas outras classes. "É importante permitir que os alunos se apropriem das práticas próprias da cultura escrita, inclusive a de produzir para um público externo ler. Além disso, a reescrita de textos de qualidade possibilita a interação com modelos que trazem informações linguísticas e repertório necessários a todo escritor", explica Mónica Baez, psicolinguista, doutora em Pesquisa Educacional e professora da Universidad Nacional de Rosario, na Argentina. Com esses recursos em mãos, o grupo, que começou alfabético no início do ano, mas não escrevia mais que listas e uma pequena quantidade de frases com sentido, passou a produzir textos extensos, com sequência lógica, bem pontuados e com correção ortográfica.

Em foco, as características do gênero

A professora se preocupou em fazer uma seleção de contos de um tema sobre o qual a turma se interessava. Entre eles, estavam clássicos da literatura como Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, Ali Babá e os Quarenta Ladrões e Simbad, o Marujo. A escolha dessas histórias é um dos destaques do trabalho da docente, de acordo com Denise Guilherme, formadora de professores e curadora do Leitura em Rede. "O repertório apresentado não é qualquer um. A professora Renata traz bons modelos de contos e escolhe trabalhar com um gênero novo para as crianças, o que a permite dar sentido ao trabalho com a estrutura desses textos", afirma ela. Foram seis semanas de leitura, durante as quais os estudantes conheceram diferentes versões das histórias, com adaptações de autores como Ruth Rocha, Carlos Heitor Cony e Rosalind Kerven.

O passo seguinte foi levantar as principais características do gênero. Afinal, para escrever um bom texto é preciso dominar sua linguagem. O conto escolhido para isso foi A História de Sherazade, retirado do livro Histórias das Mil e Uma Noites, de Ruth Rocha (72 págs., Ed. Salamandra, tel. 11/2790-1300, 39 reais). Renata fez uma cópia do conteúdo para cada estudante, a fim de que todos acompanhassem a leitura coletiva com o material em mãos. Com base em um roteiro de perguntas sobre tempo, espaço, cenário, personagens, sequência dos episódios e momentos de maior tensão, a turma destacou oralmente os elementos estruturais da história que sempre deveriam estar presentes para que ela fizesse sentido. A professora os listou no quadro.

"Essa metodologia adotada foi interessante porque as crianças estavam começando a trabalhar com um gênero ainda pouco conhecido por elas. O levantamento coletivo das características permitiu a criação de um modelo de estrutura do conto", explica Denise. O resultado dessa atividade se transformou num quadro, que foi afixado na parede para consulta.

A leitura em grupo ainda rendeu a oportunidade de Renata compartilhar com a classe algumas estratégias de leitura utilizadas por leitores experientes, uma vez que ela pedia constantemente que a turma voltasse ao texto para justificar as respostas dadas. Como explica Isabel Solé em Estratégias de Leitura (194 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-703-3444, 68 reais), em momentos como esse, existe uma construção conjunta de conhecimento, por meio do qual o professor e os alunos podem "dominar procedimentos (de leitura) com maior precisão e rigor". Nesse processo, o docente atua como guia, levando os estudantes a aprender comportamentos de leitores socialmente estabelecidos e, com o tempo, assumir "a responsabilidade em seu desenvolvimento de forma progressiva, até se mostrar competente na aplicação autônoma do que foi aprendido".

A turma foi, então, desafiada a recontar a história para a professora. "As crianças ditaram o texto e eu escrevi no quadro sem fazer intervenções. No fim, pedi que elas lessem e perguntei se estava bom. Daí, os alunos começaram a notar alguns pontos que precisavam melhorar", conta Renata. A todo momento, eles foram lembrados de que o autor de uma obra deve se preocupar com quem vai lê-la. Por isso, é preciso revisar o que foi produzido e checar se existe uma sequência lógica dos fatos, se a linguagem está adequada ao público, se a pontuação e a ortografia estão corretas e se o conteúdo está bom o suficiente para ser compreendido pelo leitor e suscitar interesse. Caso a turma deixasse de apontar algum aspecto, a docente intervia e chamava a atenção para aquilo que não foi destacado.

As articulações do trabalho

Com base nos estudos do psicólogo Lev Vygotsky (1896-1934), sabemos que colocar os alunos para interagir é fundamental para que avancem nas aprendizagens com base na troca com seus pares e com o professor. No entanto, também é necessário permitir que eles enfrentem desafios sozinhos. Não à toa, existem alguns tipos de organização do trabalho em sala de aula: coletiva, em pequenos grupos e individual. Segundo a educadora argentina Delia Lerner, no artigo A Autonomia do Leitor. Uma Análise Didática, eles podem ser estabelecidos de duas formas: a ascendente, que começa com o trabalho individual e culmina no coletivo, e a descendente, que prevê o caminho contrário. "Para definir qual é a mais apropriada, o docente deve conhecer a temática a ser desenvolvida e antecipar os aspectos mais desafiantes para as crianças de acordo com os saberes e recursos que elas já dispõem", explica Mónica Baez. No trabalho de Renata, fazia todo sentido adotar o processo descendente, pois o gênero estudado era pouco conhecido pelos alunos e teriam dificuldade para realizar as atividades propostas sozinhos.

Bons textos feitos a quatro mãos

O próximo conto escolhido para ser reescrito foi O Pescador e o Gênio. Lido e planejado coletivamente exatamente como o anterior, dessa vez o material foi produzido por duplas, organizadas pela educadora de acordo com as habilidades de cada integrante - se um aluno tinha dificuldade em pontuação, por exemplo, ele era colocado para trabalhar com um colega que tivesse mais facilidade nesse aspecto.

Terminada a produção em classe, a professora levou os textos para casa, escolheu o que apresentava mais problemas (como falta de clareza e sequência lógica), digitou e imprimiu uma cópia para cada aluno. "Isso evitou que a turma perdesse tempo tentando decifrar a letra dos colegas", explica Renata. Em sala, a educadora transcreveu a história no quadro e fez a revisão junto com as crianças, que sugeriram mudanças para deixá-la mais bem escrita e interessante.

A etapa seguinte teve o objetivo de checar se a classe estava se apoderando da prática de revisão. Para isso, Renata priorizou o trabalho feito pelas próprias duplas, com base nos contos Aladim e a Lâmpada Maravilhosa e Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Depois de planejar e reescrever as histórias, cada grupo leu sua produção para a turma, que fez apontamentos. A professora levou todos os materiais para casa, digitou exatamente como foram escritos e os distribuiu para outros grupos em sala. "A ideia era incentivar que eles, como leitores, pensassem como o texto poderia ser melhorado para ajudar a compreensão e fizessem sugestões às outras duplas. Às vezes, os colegas que atuavam como leitores externos viam coisas que não haviam sido notadas antes", diz Renata.

Em cada história produzida, a docente privilegiou a intervenção em um aspecto por vez. "As crianças não dão conta analisar para tudo. Por isso, quando se foca o olhar em um dos pontos do texto, como coesão, coerência, pontuação ou ortografia, é possível problematizar a questão e deixar que o estudante se estenda mais nela", explica Denise. A determinação do que seria trabalhado foi feita com base nas fichas de observação elaboradas para avaliar cada aluno, com as quais a professora pôde acompanhar o avanço de todos e identificar quais eram as dificuldades que ainda persistiam na turma. "Eu avaliei os alunos em vários momentos, mas sempre pensei em cada um individualmente, ainda que o trabalho fosse coletivo ou em dupla", diz Renata.

Hora de reescrever individualmente

O último passo do projeto foi o trabalho individual. O objetivo era avaliar se os estudantes haviam dominado todas as etapas de produção de um texto, do planejamento à edição. "É oportuno que as crianças se apropriem das palavras de outros por meio de situações de reescrita, mas que também conquistem, com toda a informação necessária a seu alcance, o direito de escrever por si mesmas", diz Mónica.

Para isso, Renata propôs aos alunos que, após a leitura do conto Simbad, o Marujo, criassem o relato de uma nova viagem do personagem, que costumava viver experiências fantásticas nos mares. Antes de deixá-los partir para a textualização, a professora fez um arremate final das características dos contos lidos, lembrou a classe de que os livros com as histórias trabalhadas nas últimas semanas estavam disponíveis em cima de sua mesa para consulta e se disponibilizou para tirar dúvidas ao longo da produção.

Depois de tantas aventuras e textos redigidos, a turma montou um livro ilustrado com as histórias escritas em sala. A intenção era fazer as produções circularem por outras classes e mostrar que, com as intervenções da professora e o comprometimento da turma, é possível escrever mais e melhor.


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