Leitura e escrita de lenga-lenga na alfabetização
A turma aprendeu a escrever com esses textos, que permitem exercitar a autoria
PorSophia WinkelBruna Nicolielo
01/10/2014
Este conteúdo é gratuito, entre na sua conta para ter acesso completo! Cadastre-se ou faça login
Compartilhe:
Jornalismo
PorSophia WinkelBruna Nicolielo
01/10/2014
No ano passsado, Mara Elizabeth Mansani, da EE Professora Laila Galep Sacker, em Sorocaba, a 101 quilômetros de São Paulo, decidiu inovar: substituiu as consagradas parlendas e outros textos de memória pelas lenga- lengas para alfabetizar a classe do 1º ano. Esse tipo de construção tem repetições, frases curtas, rimas e enumerações crescentes ou decrescentes. Permite criar textos de autoria mais complexos que os de memória, já que é preciso pensar sobre o que escrever, em vez de reproduzir o que já se sabe de cor. "Há alguns anos, eu mesma diria que era impossível propor a alunos de 6 e 7 anos em alfabetização que elaborassem suas próprias produções, mas essa foi minha ideia", explica a docente. O objetivo dela era fazer com que a classe avançasse na compreensão do sistema e se aproximasse do processo de composição de um texto, levando em conta as características das lenga-lengas.
Depois de identificar os conhecimentos dos estudantes (Mara encontrou duas crianças com escrita pré-silábica, duas com escrita silábica sem letras pertinentes, dez com escrita silábica com letras pertinentes, nove com escrita silábico-alfabética e duas com escrita alfabética), ela compartilhou sua proposta com a sala. Em seguida, apresentou o livro Dez Sacizinhos (Tatiana Belinky, 16 págs., Ed. Paulinas, tel. 11/2125-3500, 28,80 reais), dizendo que a turma não só aprenderia a ler e escrever como produziria suas próprias lenga-lengas. "Só se aprende a escrever escrevendo e para isso precisamos de bons modelos de texto", diz. Numa roda de leitura, ela leu a obra em voz alta e explorou as repetições de sons e palavras, as rimas e a contagem crescente e decrescente. Nas aulas seguintes, levou outros modelos de lenga- lenga, como Tangolomango e Tumbalacatumba, canções que fazem parte de brincadeiras orais e são conhecidas por crianças em muitas partes do Brasil. A docente também explorou as semelhanças entre o livro Dez Sacizinhos e esses outros textos, discutindo, por exemplo, que rimas apareciam, como começava cada parte, quais personagens havia e o que acontecia com eles. Assim, os alunos entenderam as principais características da lenga-lenga, preparando-se para a etapa que viria na sequência.
Em seguida, a professora convidou os estudantes a redigir as próprias produções. Ela dividiu a sala em grupos de cinco crianças, separando-as por hipóteses próximas e deixando pelo menos uma com hipótese alfabética ou silábico-alfabética em cada quinteto. Cada agrupamento deveria escolher um personagem e um lugar onde se passaria a história. Todos teriam de combinar esses elementos com rimas dos números de 1 a 10. A garotada explorou o humor e a criatividade, escolhendo protagonistas e situações tão variadas quanto águias em cima de uma montanha, gatos em uma casa, menininhos bonitinhos passando por uma série de desastres, cachorrinhos passeando pelo bosque e borboletas voando pelo céu.
Circuito de intervenções
Enquanto os alunos produziam, Mara circulava pelos grupos para acompanhar o desenvolvimento da proposta e fazer as intervenções necessárias. Dessa forma, ela pôde sentar com cada quinteto por volta de dez a 15 minutos, pelo menos por quatro vezes, alternadamente, e mediar o trabalho de todos eles. A docente apresentava às crianças questões como "Onde está escrita essa palavra?", "Não está faltando alguma coisa nessa palavra?", "Quais outras palavras têm o som parecido com a que você está tentando escrever?". "É importante elaborar boas perguntas para que os alunos reflitam e avancem em seus conhecimentos sobre a escrita. O professor tem de estar sempre atento ao aprendizado da turma e também ter um acompanhamento regular das produções", diz Marisa Garcia, supervisora acadêmica do programa Ler e Escrever e professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISE-Vera Cruz). Ela sugere o livro Chapeuzinho Vermelho Aprende a Escrever (Clotilde Pontecorvo, Emilia Ferreiro, Isabel García Hidalgo e Nadja Ribeiro Moreira, 232 págs., Ed. Ática, tel. 11/3990-2100, edição esgotada), que faz uma pesquisa aprofundada sobre as dificuldades linguísticas, ortográficas e fonológicas de crianças em séries iniciais com base no conto que dá nome à obra.
Além das questões relacionadas à reflexão sobre o sistema, a professora também problematizava aspectos ligados ao tipo de texto proposto, perguntando sobre o que os estudantes tinham de inserir na produção para que ela ficasse parecida com as que conheceram antes de começar a escrever. Nessa etapa, muitas discussões interessantes ocorreram, como a necessidade de encontrar uma rima para zero (veja um exemplo na galeria da primeira página). "Todos estavam comprometidos em respeitar a ordem decrescente que haviam escolhido e manter a coerência da história, pois algo deveria acontecer para que o personagem desaparecesse, ou seja, não poderiam colocar qualquer tipo de acontecimento", explica Mara. Durante o circuito de intervenções, a dinâmica de reflexões proposta por ela foi incorporada pelos alunos naturalmente. Eles davam ideias, sugeriam rimas e corrigiam a produção dos outros. Também era comum ouvir: "É assim que escreve!", "Acho que está faltando alguma coisa! Vamos ler de novo?", "Nossa, que difícil! O que rima com o número 1?".
Conforme a garotada ia escrevendo o texto, a professora lia em voz alta para estimular os outros grupos a continuar o trabalho. As crianças se surpreendiam com a criatividade dos colegas e se divertiam com as rimas engraçadas. Foram quatro semanas de produção divididas em dois dias de aula por semana. Em todos esses encontros, a professora repetiu o circuito de intervenções pedagógicas. "Ele foi muito importante para problematizar questões, oferecer informações sobre a escrita para que os estudantes avançassem em suas hipóteses e acompanhar as aprendizagens de todos", destaca Beatriz Gouveia, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá (leia no quadro abaixo as intervenções mais adequadas).
Intervenções que não podem faltar
Pedir que os alunos leiam o que escreveram. Assim, eles interpretam a escrita. Nesse momento, estão diante de um problema e se esforçam para buscar uma solução, acionando tudo o que sabem.
Propor uma discussão coletiva. A ideia é potencializar a reflexão e fazer circular o maior número de informações. É possível debater escritas da mesma palavra produzidas por diferentes alunos, pedir para que a turma explique suas escolhas, questionar quais outras palavras são semelhantes a que está gerando dúvidas e quais são as fontes de informação disponíveis que podem ajudar a pensar nas escritas.
Consultoria Beatriz Gouveia
Na próxima etapa, a docente selecionou algumas escritas para discussão. Ela exibiu os textos no retroprojetor e pediu a ajuda dos alunos para revisá-los. Eles foram fazendo tentativas, o que levou a mais reflexão e à socialização de novos conhecimentos. Mara também entregou um dicionário para cada grupo, pedindo que eles verificassem a grafia de algumas palavras. Além disso, a turma discutiu se as informações estavam claras, se as lenga-lengas eram coerentes ou se poderiam ser redigidas de outra maneira.
Quando os textos ficaram prontos, Mara os digitou e os revisou em casa. Na aula seguinte, a garotada se reuniu para ler as produções. Com a ajuda de um computador e um projetor, ela foi mostrando a versão final e explicando que as editoras também fazem a revisão dos materiais enviados por seus escritores antes da publicação. Esse também foi um momento de discutir escritas convencionais. "Isso é importante, pois se os alunos só precisarem refletir sobre os erros, a impressão é que os acertos são incontestáveis, quando na verdade há uma variedade de maneiras de escrever algo", diz Érica de Faria, especialista em alfabetização. Nesse momento, Mara deixou claro que o original, a escrita de próprio punho deles, não seria alterado, apesar dos erros ortográficos. Ela avaliou que não caberia uma revisão nesse material, afinal a classe ainda estava em processo de alfabetização. Depois que tudo estava revisado, a docente pediu que cada grupo fizesse as ilustrações e as dedicatórias.
Os desenhos ficaram caprichados. Mara digitalizou o material, fez a edição gráfica com sugestões das crianças - que discutiram, por exemplo, a posição dos elementos em cada página -, montou os livros e imprimiu um exemplar para cada estudante. Quando eles ficaram prontos, toda a comunidade escolar foi convidada para o lançamento das obras. Pais, professores, alunos e a equipe escolar ficaram encantados com as produções e com a beleza das ilustrações. Os próprios livros se transformaram num bom suporte para leitura, pois as crianças leram muitas vezes e puderam descobrir as escritas dos outros grupos. "Fiquei muito feliz com o resultado: todos no 1º semestre do 1º ano revisando suas produções e conhecendo os procedimentos para escrever um bom texto", explica a professora. Ao fim do projeto, a turma também ficou satisfeita. "Aprendemos a ler, a trabalhar em grupo e a escrever bons textos", comemora Vitória Cristina Antunes de Almeida, 7 anos.
Últimas notícias