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Jornalismo

De escola ocupada a escola no divã: o que aconteceu com a Fernão Dias?

Um dos símbolos das manifestações dos estudantes secundaristas, instituição tem diálogo travado, alunos irritados e professores acuados

PorBruno Mazzoco

06/03/2018

 

Fachada da EE Fernão Dias Foto: Bruno Mazzoco
A entrada da escola, no bairro de Pinheiros, já não tem faixas ou sinais do período de ocupação

A EE Fernão Dias Paes fica a 600 metros da sede da NOVA ESCOLA. Ocupa um quarteirão inteiro em Pinheiros, bairro com um dos metros quadrados mais caros de São Paulo. Ao seu lado funcionam sebos de livros, restaurantes japoneses e escritórios de design. Se não fossem seus estudantes, dificilmente alguém diria que há uma escola ali. Parece um museu. Tem uma estátua do bandeirante Fernão Dias, o “caçador de esmeraldas”, na frente. Também ostenta um jardim amplo e grades vazadas – bem diferente das instituições que parecem presídios espalhadas pela periferia da cidade. Até o ano passado, apenas os meninos e meninas de uniforme azul lembravam à comunidade que, além de hamburgueria gourmet e lojas de bomba de chocolate, também há escolas públicas na região.

No final de 2015, os estudantes ocuparam a escola e trouxeram uma energia inédita ao bairro. Era um protesto contra a reorganização da rede, proposta pelo governo do Estado de São Paulo. A Fernão seria uma das instituições afetadas pela medida e foi uma das primeiras ocupadas. Em poucas semanas, ela se transformaria num dos símbolos de um movimento que se espalharia pelo país inteiro. De um dia para o outro, o prédio deixaria de ser um pedaço da paisagem para virar protagonista do bairro. Pinheiros estava tomada de estudantes. O debate sobre Educação transbordava em cada esquina da zona oeste de São Paulo. A escola recebeu voluntários, eventos e debates. Parecia que algo bom ia acontecer. Nas avaliações oficiais, a Fernão está ligeiramente abaixo da média e das metas estimadas para ela. O Ideb era de 4,7 em 2013 e a posição no Enem de 2014 foi a de 7222. Tanta energia canalizada, certamente, teria algum efeito positivo. Ao menos era essa a hipótese.

Durante o primeiro semestre de 2016, com a volta às aulas, NOVA ESCOLA foi a fundo para descobrir o que aconteceu naquela escola. Os estudantes, afinal, venceram o governo paulista. O secretário de Educação caiu e a reorganização foi suspensa. Mas... e a sala de aula? O que fica naqueles corredores entre as mesas? Qual o saldo de uma explosão de energia? Como fica a relação entre professores e alunos? E entre os docentes e a gestão?

O resultado é mais complicado do que deixava antever o otimismo das primeiras semanas de ocupação. Hoje, a Fernão Dias é uma escola no divã – e sem previsão de alta.


Tim Burton e homofobia
Jarbas Bispo ensina Língua Portuguesa na Fernão Dias Paes há quatro anos. Em 2016, ele mudou do período noturno para o matutino, justamente o período em que os estudantes haviam se envolvido mais no movimento. Ele sabia que os alunos não eram mais os mesmos. “Eu acompanhei de perto a ocupação e senti a necessidade de rever muitas coisas, principalmente o trabalho em sala de aula”, afirmou.

O ponto de partida para o planejamento foi uma lista de reivindicações formulada pelos alunos. Ela foi entregue aos docentes e à equipe gestora do colégio. Com base no documento, Jarbas quis realizar um projeto interdisciplinar nos 1ºs anos, focado em artigos opinativos.

Aliando os desejos dos jovens aos principais assuntos de redação de vestibulares e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele e o professor de Filosofia Felipe de Freitas elaboraram uma relação do que chamaram de “temas polêmicos”. Tópicos como maioridade penal, homofobia, reforma agrária e legalização da maconha deveriam ser escolhidos pela turma para virar objeto de discussões, seminários e produções textuais. Ao final do projeto, a ser concluído em dezembro, os grupos deverão elaborar um vídeo que responda a uma pergunta filosófica relativa a um dos assuntos.


 “Antes, eu tentava fazer algo diferente, mas já chegava com tudo pronto. Agora, eu consulto a classe primeiro para saber o que ela quer estudar.” Jarbas Bispo, professor de Língua Portuguesa


 

No decorrer das atividades, algumas solicitações dos alunos foram sendo atendidas. O pedido para que espaços fora da sala de aula fossem utilizados, por exemplo, foi contemplado com encontros semanais na sala de leitura e o uso do teatro para as dramatizações. Visitaram, também, a exposição dedicada à obra do cineasta norte-americano Tim Burton para aumentar as referências da classe em relação à produção audiovisual. Tudo isso no primeiro semestre. “Antes, eu tentava fazer algo diferente, mas já chegava com tudo pronto. Agora, eu consulto a classe primeiro para saber o que ela quer estudar”, explica Jarbas.

Como é prática em NOVA ESCOLA, pedimos para ver uma aula de Jarbas. Afinal, aparentemente, o movimento das ocupações estimulou docentes a repensar suas atitudes – e Jarbas e Felipe seriam símbolos disso. Foi aí que a escola foi se acomodando no divã.

 

O bloqueio
Para ver uma aula de Jarbas, e mesmo para entrar na escola, é preciso autorização da Secretaria Estadual de Educação. Parece duro, e é. Mas é um avanço tremendo ao que existia há bem pouco tempo. No passado, professores eram terminantemente proibidos de dar entrevistas. A norma é ilegal, mas deixou marcas em todo o processo de comunicação entre escolas e sociedade, mediada pela imprensa. Ainda há um certo medo de falar sem autorização.

O sinal positivo só veio às vésperas das férias de julho. Da calçada para dentro, o cenário é bem diferente daquele de dezembro de 2015. Não há mais cartazes com palavras de ordem na fachada. No pátio amplo e arborizado que serve de entrada para o prédio, os únicos vestígios da mobilização estudantil são as pichações na estátua que representa o famoso bandeirante que empresta o nome à escola. O autor trocou a alcunha de “caçador de esmeraldas” por “assassino”.

No hall de entrada, um aviso dá a medida das dificuldades que a gestão tem enfrentado. “Senhores pais ou responsáveis, em virtude da inexistência de funcionários nesta unidade escolar, o atendimento ao público da secretaria estará limitado ao seguinte horário: segunda a sexta-feira, das 9 às 12 horas. Contamos com sua colaboração. A Direção”. Por lá, os serviços de limpeza e merenda são terceirizados. Então, excluídos professores e a equipe gestora, desde o início do ano a Fernão possui apenas uma funcionária para dar conta dos mais de 1 mil alunos. Outros três se demitiram e foram substituídos por pessoas que já desistiram.

É essa funcionária que recebe NOVA ESCOLA e a encaminha para a sala da diretoria. Somos recepcionados por uma pequena comitiva composta pela gestora e sua vice, a assessora de imprensa da Secretaria de Educação e dois representantes da diretoria de ensino. Logo somos informados de que não será possível acompanhar as aulas de Jarbas e Felipe, como havíamos solicitado, nem falar com os alunos deles. A proposta da escola era simples: organizar uma roda de conversa com alguns docentes e estudantes previamente selecionados.


 

Reunião com alunos e professores na sala de leitura Foto: Bruno Mazzoco
Alunos, professores e gestores foram reunidos para conversar com a reportagem na sala de leitura

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sem diálogo
Todos sobem para a sala de leitura. Formam-se dois círculos. No mais interno estão os sete alunos escolhidos para participar da reunião. Atrás, os docentes e a diretora. Os representantes da secretaria completam o cenário e observam tudo de perto.


“Não vamos fingir que a gente tem aula na sala de leitura todo dia. Eu ainda não estive aqui este ano, por exemplo." Ícaro Gabriel Pio da Silva, aluno do 3º ano


 

Perguntamos aos estudantes se eles foram a favor ou contra as ocupações e qual balanço fazem do movimento. Um dos primeiros a falar, o aluno do 3º ano Ícaro Gabriel Pio da Silva, 17 anos, expressa desconforto com o ambiente escolhido para a entrevista. “Não vamos fingir que a gente tem aula na sala de leitura todo dia. Eu ainda não estive aqui este ano, por exemplo. Achei até uma ironia a gente estar fazendo essa conversa aqui, porque é uma mentira. Era para a gente estar em uma das classes com o assoalho e com as carteiras quebradas. Porque aí estaria na realidade do dia a dia”, reclamou.

 

Embora Ícaro seja o mais abertamente a favor do protesto dos secundaristas, todos os estudantes presentes dizem ter apoiado a ocupação da escola e apontam o fato de os alunos terem ganhado mais voz e o relaxamento de algumas regras como principais ganhos. Dois exemplos disso foram o fim da obrigatoriedade do uso do uniforme e das restrições às idas ao banheiro.

“Só era permitido ir ao banheiro na segunda e na quinta aulas. Era absurdo. A gente tinha medo de ir até lá, encontrar alguém da coordenação e tomar suspensão. Porque era assim: você estava bebendo um refrigerante na sala de aula, levava uma suspensão. Se pedia a borracha para o colega do lado, o professor entendia outra coisa e você levava três dias de suspensão em uma semana de prova”, lembrou Letícia Corvacho, 17, também do 3º ano.

Victória Bonfim Correia, 16, aluna do 2º ano, reforçou que, antes da ocupação, a escola era muito rígida. “A gente tinha medo de falar com os professores, de propor alguma coisa para a diretora. Hoje, temos um grêmio livre em que podemos propor coisas. Eu tinha muita vergonha, muito medo de tirar uma dúvida dentro da sala de aula por causa dessa rigidez. Agora não, eu levanto a mão”, explicou.

 


“Tudo para o adolescente hoje é repressão. Faz parte da adolescência ser contra qualquer limite. A discussão é válida, mas eu acho que eles não estão preparados para ela." Andréa Sbrana, diretora


Depois de todos os alunos falarem, a bola passou para a diretora Andréa Sbrana. “Apesar de eles dizerem que a escola os reprimia, não vejo isso como repressão, mas como organização”, afirmou. “Tudo para o adolescente hoje é repressão. Faz parte da adolescência ser contra qualquer limite. A discussão é válida, mas eu acho que eles não estão preparados para ela. A maioria dos que estava na ocupação não consegue ter um argumento. Eles não têm um diálogo consistente”. Mas não é papel da escola ajudar a melhorar os argumentos? “Sim, mas não é um papel só dela, é da família também. Na maioria das vezes, eles não têm essa preparação da família. E, infelizmente, a escola não foi capacitada para isso”. Por essas e outras, a diretora afirma estar em compasso de espera para a aposentadoria e se diz desiludida com a situação atual de descontrole em que a instituição se encontra, com docentes sendo constantemente desrespeitados e alunos fora das salas de aula.

“A gente ouve muito estudante falando ofensas para o professor e achando que isso é a coisa mais normal do mundo”, contou Eduarda da Costa, 16, do 3º ano. Todos que participam do encontro confirmam o aumento dos casos de desrespeito e avaliam essas ocorrências de maneira negativa. Mas alguns deles fazem questão de destacar que atitudes desse tipo sempre ocorreram.

Além da questão disciplinar, houve dano ao patrimônio da escola por causa de roubos e depredações. A diretora estima o prejuízo em cerca de 50 mil reais e não acredita que a reposição dos equipamentos roubados ou danificados aconteça em curto prazo.

“O que é aula boa para mim? É eu ensinar de uma forma que eles possam entender e utilizar. Antes, eu usava um retroprojetor, um computador. Eu não tenho mais isso, estou fragilizado nessa parte. Então, se você perguntar se a ocupação foi boa? Para mim não foi, porque me deixou amputado”, argumentou Antônio Russo Júnior, professor de Geografia. Para ele, o único ponto positivo foi a capacidade de trabalho coletivo demonstrada pela garotada.

“É um saco!”
Além de Jarbas e Felipe, contatados pela reportagem, e de Antônio, também participou do encontro a professora Vanessa Zorzan, de Biologia. Ela sofre com a instabilidade do ambiente e a falta de assiduidade dos jovens. “Com essa possibilidade de, entre aspas, assistir ou não às aulas, eles estão escolhendo quando vêm. Se eles não estão com vontade, não assistem”, contou. Isso a leva a ter de explicar muitas vezes o mesmo conteúdo. “Vários alunos que estavam na ocupação ameaçam ocupar novamente a escola. Então, em vez de iniciar um trabalho no laboratório que pode ser interrompido, eu prefiro seguir a cartilha que o governo dá. Porque aí, se interromper, é fácil retomar. Agora, uma atividade de observação fica comprometida. O meu trabalho mudou, está muito difícil”.

Jarbas e Felipe concordam que a fase pós-ocupação tem sido delicada, mas preferem olhar o lado meio cheio do copo. “A gente começou a pensar como poderia aproveitar essa experiência”, relatou Jarbas. Felipe completou: “Desses conflitos todos que acabaram emergindo, a positividade é poder ensinar formas de ser e de agir diferentes e que ficam latentes dentro da escola”.

Após quase quatro horas de entrevista com jeito de terapia de grupo, coube a Letícia, do 3º ano, sintetizar o momento atual vivido na Fernão Dias. “Eu vejo uma polarização nítida. De um lado tem o grupo dos que foram a favor das ocupações, com professores e alunos. E de outro os que foram contra. Em vez dos dois sentarem como nós estamos aqui, levantarem as questões e admitirem que os dois lados têm aspectos positivos e negativos, um fica mais preocupado em criticar o outro para legitimar a sua ideologia. Nesses sete meses, todos os dias é isso. É um saco!”

Com o fim das ocupações, da porta para fora, a escola voltou para o anonimato. Ela virou, novamente, parte da paisagem de Pinheiros. Já não há mais eventos, oficinas e faixas. Até os estudantes, sem uniforme, se misturaram à multidão. Mas, da porta para dentro, os problemas que existiam se agravaram.

Já virou clichê dizer que não há solução fácil em Educação. Não há uma única saída para garantir o aprendizado de todos os alunos, dando a eles o ensino que eles merecem e precisam. Porém, há um consenso: sem diálogo e sem pacto pela qualidade, aquela energia bonita dos estudantes secundaristas se dissipou como um raio num dia de céu azul. Ainda dá tempo de recuperar – mas é preciso agir rápido.

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