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Jornalismo

Todas as leituras

Ler não é fácil. Mas estudos mostram que é possível explorar na escola os diferentes tipos de texto que usamos no dia-a-dia. Conheça as melhores estratégias para ensinar as turmas de 1ª a 8ª série a ler por prazer, para estudar e para se informar

PorRoberta Bencini

01/08/2006

Diversidade: com sua mala de leitura, a bibliotecária Lucila (à esq.), de Belo Horizonte, apresenta jornais, livros, revistas e muito mais. Montagem: Alexandre Camanho/Foto: Pedro Motta
Diversidade: com sua mala de leitura, 
a bibliotecária Lucila (à esq.), de Belo 
Horizonte, apresenta jornais, livros, revistas 
e muito mais. Montagem: Alexandre Camanho
/Foto: Pedro Motta

Todos os dias, Lucila Braga Ribeiro prepara uma grande mala. Pensando em seus companheiros de "viagem", escolhe os melhores "passaportes": livros de ação, de terror, romances, contos de fadas, revistas, jornais, fascículos, dicionários... Mal chega à biblioteca da EE Professor Batista Santiago, em Belo Horizonte, ela é logo cercada pelas crianças, eufóricas para conhecer os novos "destinos". Todos se oferecem para ajudar a carregar a preciosa carga, já desgastada após tantas aventuras. "Quando olhamos o material, é aquele alvoroço", festeja a bibliotecária. Muitas vezes, o percurso começa com uma leitura em voz alta. Em seguida, quem quiser pode pegar outros livros de literatura e dar seqüência ao "passeio" em grupo ou sozinho. Mas há outras paradas previstas. Lucila também estuda com os "viajantes" e, nessa situação, todos navegam em silêncio e fazem anotações e esquemas para compreender trechos de enciclopédias e fascículos.

Com sua mala, Lucila proporciona à turma exatamente o que os especialistas recomendam: trabalhar não apenas "leitura", mas todas as leituras que se apresentam no nosso dia-a-dia. Que leituras? Textos para buscar informações práticas, satisfazer curiosidades, informar-se sobre o que acontece no mundo, divertir-se, aprender, relacionar-se com as pessoas, fazer amigos. Com um detalhe muito importante: ela utiliza estratégias e comportamentos diferentes para cada uma dessas atividades. Afinal, ninguém lê uma notícia de jornal da mesma maneira que mergulha num romance.

Ler, todo mundo sabe, está longe de ser uma tarefa fácil. Dá muito mais trabalho do que ver televisão, ouvir música ou pensar na vida. Qualquer leitura exige o domínio da língua e suas nuances, além de tempo e concentração, determinação e conhecimento sobre o tema (ou vontade para aprender e descobrir). Mas ler é o único jeito de se comunicar de igual para igual com o restante da humanidade, seja no tempo por meio de textos escritos por gente que já morreu, como Jean Piaget ou William Shakespeare , seja no espaço ao ver, em jornais, livros e revistas, o que japoneses ou alemães acham de eventos que estão ocorrendo neste exato momento. É nos escritos que desvendamos outras culturas, que hábitos e histórias diferentes se revelam para nós, que compreendemos, de fato, o sentido da expressão diversidade (de idéias, vivências, sonhos, experiências).

É por isso que ler é talvez a coisa mais importante que a escola tem a ensinar e não só aos alunos. Infelizmente, porém, muitos professores brasileiros não sabem como "embarcar" nessa expedição (leia o quadro abaixo). "A maior parte das escolas só trabalha com textos didáticos e literários e muitas vezes de maneira burocrática, sem sentido para os alunos", afirma a pedagoga argentina Delia Lerner, uma das maiores autoridades no tema.

Mas nem todos são assim. Ao contrário, ensinam corretamente. Nesta reportagem, você vai conhecer experiências reais de professores que desenvolveram (e utilizam) estratégias e procedimentos de leitura eficientes para ensinar a seus alunos três comportamentos distintos: ler por prazer, para estudar e para se informar. Aperte o cinto e vire a página, pois a viagem já vai começar.

Dos brasileiros de 15 a 64 anos...

61% têm muito pouco ou nenhum contato com os livros

47% possuem no máximo dez livros em casa

30% localizam informações simples em uma frase

37% localizam informação em texto curto

25% estabelecem relações entre textos longos

Quantos livros uma pessoa lê por ano...

França 7

Estados Unidos 5,1

Itália 5

Inglaterra 4,9

Brasil 1,8

Fonte: Câmara Brasileira do Livro, Instituto da Biblioteca Nacional, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Ministério da Educação

Quer saber mais?

Contatos

Colégio Pentágono, R. Nelson Gama de Oliveira, 1244, São Paulo, 05734-150, tel. (11) 3747-6277

EE José Lobo, R. dos Missionários, s/no, Goiânia, 74430-360, tel. (62) 3271-6159

EE Paulo Tapajós, Rod. Mogi-Bertioga, km 28, Mogi das Cruzes, SP, 08770-000, tel. (11) 4792-1467

EE Professor Batista Santiago, R. Cléber Soares de Andrade, 330, Belo Horizonte, 31525-390, tel. (31) 3452-3061

EMEF João Grendene, R. Delmo Kerber, 248, Farroupilha, RS, 95180-000, tel. (54) 3268-6063

Unidade Integrada Professor Carlos Saads, R. da Feira, 788, São Luís, 65073-271, tel. (98) 3273-0765

BIBLIOGRAFIA

Ensino de Literatura, William Roberto Cereja, 208 págs., Ed. Atual, tel. (11) 3613-3000 , 29 reais

A Leitura, Felipe Alliende e Mabel Condemarín, 215 págs., Ed. Artmed, tel. (51) 3027-7000 , 39 reais

O Livro e a Leitura no Brasil, Alessandra El Far, 76 págs., Ed. Jorge Zahar, tel. (21) 2108-0808 , 22 reais

Ler e Escrever na Escola, Delia Lerner, 120 págs., Ed. Artmed, 32 reais

INTERNET

No site www.escolaquevale.org.br, você encontra mais informações sobre a seqüência didática realizada na escola Carlos Saads

Ler por prazer

Existe coisa mais divertida do que ler para crianças? Magia, fantasia e imaginação são apenas alguns dos elementos presentes nesses momentos, muitas vezes inesquecíveis. Por que, então, as escolas formam tão poucos leitores e o gosto pelos livros ainda é (quase) uma raridade em nosso país? Todos os estudos apontam que o vilão da história é sempre o mesmo: misturar a literatura com atividades didáticas. "Com razão, os estudantes não gostam quando precisam fazer resumos ou preencher fichas após a leitura de um romance ou um conto", diz o professor William Cereja, autor de uma pesquisa sobre o tema. Afinal, se o negócio é ler por prazer, não há sentido em exigir tarefas que não têm nenhuma relação com isso. O correto é apenas trocar idéias e privilegiar a construção de sentido dos textos, estabelecendo relações com a realidade dos alunos e com diversas artes.

Em outras palavras, nas aulas de Literatura só deveria haver espaço para textos literários. Pode parecer óbvio, mas não é o que se vê por aí. Muitos professores organizam o currículo com base na ordem cronológica e histórica dos movimentos literários. "Discutem os problemas e conflitos sociais presentes em determinadas obras. Debatem a biografia dos autores, mas lêem muito pouco", afirma Maria José Nóbrega, consultora e professora da Universidade de São Paulo.

Com os pequenos, fantasia

Eduardo de Campos, regente de turmas de 2ª série da EE Paulo Tapajós, em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, investe em brincadeiras com leitura em voz alta. Quando entrou na sala com A Bruxinha Que Era Boa, de Maria Clara Machado, levou uma vaia. "O quê? Olha o tamanho desse livro, professor..." Mas ele sabia o que estava fazendo. A idéia é justamente mostrar que um livro grosso não é necessariamente chato e que todos são capazes de ler e, principalmente, de gostar. "Que desafio", lembra. "Já imaginou se não consigo? Nunca mais essa garotada chegaria perto de uma obra grande."

Para dar conta do recado, foi preciso muito planejamento (como na maioria das situações didáticas). Eduardo leu o texto várias vezes em casa, elegendo os trechos em que faria paradas para promover suas intervenções. Para cada etapa, programou diferentes situações: leitura em voz alta pelos alunos e pelo professor e leitura individual silenciosa. Antes de iniciar a atividade, ele cumpriu o passo mais importante: levantar as referências que os alunos já tinham sobre o assunto (no caso, bruxas). Nos dias seguintes, novas situações exigiram que os estudantes relacionassem as próprias experiências com a obra (entre outras coisas, todos prepararam "poções mágicas" com as ervas aromáticas que cultivam em casa, exatamente como ocorre com as bruxas no livro). Cada capítulo foi explorado em clima de brincadeira, enquanto o professor verificava continuamente se as crianças estavam entendendo o espírito da história. Assim, quase sem perceber, o livro grande chegou ao fim.

Com os maiores, curiosidade

Há cerca de 20 anos, vem se difundindo o ensino da Literatura pelo estudo dos diferentes gêneros. Hoje, outros caminhos são mais explorados, como criar seqüências de leitura para conhecer o universo de um autor, diferentes versões de uma mesma obra ou explorar uma temática literária. É isso que Érica Meyer faz com os estudantes da 8ª série na EE José Lobo, em Goiânia. O tema brinquedo foi a estratégia que ela criou para fazer a turma ler um romance. E não era um romance qualquer, mas Sagarana, de João Guimarães Rosa. Para alcançar essa meta ambiciosa, Érica preparou muito bem o terreno. A "brincadeira" começou com os textos e as músicas de Vinicius de Moraes para A Arca de Noé. O poema Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, foi a segunda obra lida. Então, Érica apresentou o poeta Jorge de Lima e seu O Mundo do Menino Impossível.

Quando chegou a Guimarães Rosa, os adolescentes já estavam tinindo e queriam dar continuidade à discussão sobre as imagens presentes em obras literárias. As 60 páginas do conto São Marcos (que é parte do romance) foram lidas pela professora em cinco aulas. "Não só consegui manter o interesse de todos como o melhor presente foi encontrá-los lendo Rosa fora da sala de aula", conta. Ponto para ela. O principal objetivo de qualquer atividade ou projeto de leitura por prazer é justamente desenvolver esse comportamento leitor: fazer com que os estudantes se tornem leitores autônomos e busquem novos livros, só pela curtição de viajar em suas páginas.

Projetos e atividades de leitura por prazer devem...

? Ser um convite à imaginação.

? Desenvolver a escuta atenta.

? Prever situações de leitura em voz alta pelo professor e pelos alunos.

? Ter como foco a leitura de textos literários.

? Quando for pertinente, envolver outras linguagens, como música, pintura e cinema.

? No caso de livros longos, promover a leitura do texto em capítulos (ou partes), interrompida por desafios para os alunos.

? Propor a leitura individual para estimular preferências e formar leitores autônomos.

Ler para estudar

De todos os comportamentos leitores, o de ler para estudar é certamente o mais cobrado pelos professores desde os primeiros anos do Ensino Fundamental ainda que muitos não saibam como ensiná-lo a seus alunos. Sem dúvida, aprender a ler textos informativos, artigos científicos, ensaios e livros didáticos (e paradidáticos) é uma habilidade fundamental para toda a vida, dentro e fora da escola. O jovem que, ao final da 8ª série, não consegue compreender corretamente essas informações acaba se convencendo de que "é ruim da cabeça mesmo" e, muitas vezes, desiste definitivamente dos estudos.

Orientar a leitura desses textos é mais difícil, entre outras coisas, porque o próprio material de estudo é pouco atraente: muitas letras, poucas ilustrações, um conjunto de idéias que precisam fazer sentido (e elas quase sempre são novas para o leitor). O ritmo de trabalho é, necessariamente, mais lento, para alcançar o objetivo de localizar informações sobre um assunto específico e reler trechos difíceis. Entender isso é essencial para criar situações didáticas coerentes com a realidade. Aqui, sim, faz todo sentido pedir resumos, esquemas e sínteses para facilitar o entendimento. O foco não deve ser apenas a avaliação, mas principalmente o registro, pois, ao escrever e esquematizar, a gente precisa reelaborar o que foi lido. E isso é estudar.

Investigação em grupo

O desafio tem início na 2ª série, quando as crianças estabelecem os primeiros contatos com livros de Matemática, Ciências, Língua Portuguesa... "O que você entendeu desse texto?" Essa é a pergunta que Adriana Correia Lima mais faz em suas aulas de História na Unidade Integrada Professor Carlos Saads, em São Luís. O tom nunca é inquisitório, mas investigativo. A descoberta do significado das palavras se dá o tempo todo na forma de dúvidas e respostas, que vão muito além do caderno. Todos aprendem mais quando dividem idéias e constroem o conhecimento em grupo. Foi assim que as turmas de 4ª série trabalharam o tema descobrimento do Brasil. Confira aqui, passo a passo, como Adriana conduziu esse processo, sob orientação do programa Escola que Vale, da Fundação Vale do Rio Doce.

O primeiro passo foi uma boa pesquisa. A professora gastou tempo na biblioteca selecionando diferentes textos sobre o assunto e organizou uma lista com diversos títulos, entre enciclopédias e livros didáticos e paradidáticos sobre as grandes navegações e outros temas correlatos.

O segundo foi fazer o diagnóstico dos conhecimentos prévios da garotada: "Alguém faz idéia de quem foi Pedro Álvares Cabral? Quem conhece o ponto de vista dos povos indígenas sobre o descobrimento?" Na mesma aula, todos leram o primeiro texto com a professora. O ideal é que ele tenha poucas informações, para permitir que a garotada se familiarize com o assunto. Uma dica é apresentá-lo numa cartolina, no retroprojetor ou no power point. Assim, todos acompanham juntos e descobrem o comportamento leitor previsto para essa situação. A leitura compartilhada é um importante momento. Adriana conduzia o ritmo e convidava os estudantes a lerem em voz alta instigando o aprofundamento do estudo com perguntas. Aqui é possível relacionar o assunto com outras linguagens, como a exibição de um filme ou a análise de uma pintura.

A terceira etapa é quando você, professor, deve sair de cena. Se o objetivo é formar leitores autônomos, capazes de estudar sozinhos, é fundamental que os alunos compartilhem a leitura e se ajudem nas tarefas de grifar trechos e elaborar esquemas e resumos. É a hora de apresentar vários textos e pedir comparações entre eles. Inicialmente, o trabalho é em duplas.

Até que, na quarta etapa, a leitura passa a ser individual. Novas questões garantem o interesse pelas histórias e conceitos que envolvem o descobrimento do Brasil. É o que a argentina Delia Lerner chama de assumir a responsabilidade pelo conhecimento.

1. Planejamento
A professora Adriana, da escola Carlos Saads, em São Luís, seleciona obras sobre o descobrimento do Brasil

2. Leitura em voz alta
Adriana investiga os conhecimentos prévios dos alunos e lê um texto, fazendo comentários e perguntas

3. Leitura em duplas
Os alunos lêem outros textos e respondem a questões, fazendo esquemas e resumos e grifando palavras

4. Leitura silenciosa
As crianças lêem e comparam diferentes textos, mas agora individualmente

Antes da leitura, você precisa...

? Selecionar diferentes textos sobre o tema.

? Programar visitas à biblioteca com a turma.

? Durante a leitura...

? Comente e relacione diferentes textos e linguagens.

? Leia com os alunos em voz alta.

? Ensine a relacionar o título, a capa e o índice com o conteúdo da obra.

? Faça paradas estratégicas para explicar conceitos.

? Depois da leitura...

? Peça resumos sobre o tema estudado.

? Proponha seminários e palestras.

Ler para se informar

A semana dos alunos de 1ª a 4ª série do Colégio Pentágono, em São Paulo, começa com um bate-papo sobre as notícias que foram publicadas nos jornais de sábado e domingo. Em casa, cada criança seleciona uma reportagem. Em sala de aula, todos conversam e trocam idéias, discutem o que está acontecendo no país e no mundo sem nenhuma formalidade. "É uma maravilha quando os assuntos se repetem. Aproveito o gancho para confrontar diferentes pontos de vista", diz a professora Janette Garcez Kruger Crivelari, da 3ª série. A leitura descontraída e dinâmica repete o que ocorre do lado de fora da escola (em que as pessoas comentam o que lêem). E é assim que deveria ser sempre (em vez de apenas apresentar o veículo e suas características, como título, legenda etc., para depois solicitar a confecção de um jornalzinho em classe). Só lendo o jornal de verdade, o estudante será capaz de entender a linguagem rápida e concisa acompanhada de símbolos, gráficos, fotografias e ilustrações do texto da imprensa.

Essa prática aproxima os pequenos do mundo cotidiano distante das metáforas e "viagens" da literatura e ajuda a formar leitores assíduos e interessados pelos fatos reais. "Jornais e revistas cumprem a função básica de produtores de conhecimento. Como a informação é a matéria-prima do trabalho escolar, não há como falar em educação sem ler essas publicações todo dia", explica Flávia Aidar, educadora e historiadora. Nenhuma leitura dá tanta oportunidade de desenvolver o senso crítico. "Há uma distância enorme entre o que acontece dentro e fora da escola. A exploração do texto jornalístico contribui para aproximar essas realidades", diz Maria José Nóbrega. E você ainda ajuda a formar jovens mais críticos e com opiniões próprias, capazes de brigar por seus direitos.

Interesse pela realidade

A professora Janette é uma leitora assídua de jornais. Assim como os alunos, ela também seleciona uma notícia para comentar toda segunda-feira. Segundo ela, os focos de interesse das crianças precisam ser orientados. "Os meninos costumam ir direto na seção de esportes. Se eu não conduzir a leitura, eles não passam para outras páginas." Política e economia só entram nas discussões se ela levantar o tema. E engana-se quem acha que essas questões mais densas devem ficar de fora da pauta. Nesse processo de aprendizagem, cabe ao professor provocar, instigar a curiosidade, fazer relações com outros textos e utilizar as reportagens para a construção do saber. Informação, sozinha, não é nada. Informação aliada ao trabalho docente é conhecimento.

Se você não está a par dos recentes acontecimentos políticos do país, como explicar para os alunos as denúncias de corrupção ou as coligações para a próxima eleição? Há sempre um jeito de fazer os pequenos se interessarem. O caso dos dólares escondidos na cueca do assessor de um parlamentar arrancou muitas gargalhas da turma de Janette. Depois disso, ela aprofundou a discussão, dirigindo a leitura e apontando outras notícias e charges que explicavam melhor o assunto. O mesmo vale no caso do ensino de Ciências toda vez que são publicados artigos sobre um novo software, promessas de cura de algum tipo de câncer ou de tratamentos contra a aids. Nessas condições, o ensino deixa de ser abstrato e também a relação entre diferentes disciplinas fica facilitada. O texto jornalístico é assunto para todo dia e para toda conversa. E que tal comentar esta reportagem com seus colegas?

Para gostar de ler

"Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!" É na mesa de um bar que os estudantes da EMEF João Grendene, em Farroupilha, na Serra Gaúcha, ouvem a mãe de um deles recitar os versos de Mario Quintana. Palmas e assobios antecedem a apresentação seguinte.

A professora Cátia Tonim faz um fundo musical com violão para a leitura de mais uma obra do poeta. Pais, alunos, vizinhos, professores e funcionários da escola se encontram uma vez por mês para celebrar um artista brasileiro. Quintana é o preferido. "A turma não gostava de poesia. Agora não pára de ler", conta Joselena Schulz, que leciona para turmas de EJA.

Os eventos são um sucesso por dois motivos principais: além de ajudarem a melhorar o desempenho dos estudantes em Língua Portuguesa, aumentam a interação entre as pessoas ao propiciar momentos de prazer e aprendizagem. Mas o que realmente importa é que eles mostram como a escola João Grendene assumiu (com sucesso) a missão de criar um ambiente leitor para toda a comunidade e acabou por revelar como um colégio pode se tornar um importante pólo de cultura na cidade. De projetos simples, como permitir que os alunos levem os livros da biblioteca para casa e compartilhem a experiência com os pais, até ações mais elaboradas, como a promoção de oficinas e saraus, é essencial que diretores e professores se envolvam diretamente em atividades de incentivo à leitura. Afinal, pesquisas mostram que o brasileiro lê menos de dois livros por ano (leia o quadro na parte 1).

A boa notícia é que o interesse da sociedade pelo tema é cada vez maior. No ano passado, o Ministério da Educação distribuiu mais de 20 milhões de exemplares diretamente para as escolas ou seja, o acervo existe, o que não pode é ficar com essas obras trancadas num armário. E muitas empresas apostam em projetos que ajudam a formar cidadãos mais capazes de compreender o mundo.

A Nestlé patrocina anualmente o Viagem pela Leitura, com foco na capacitação de professores e apoio à produção escrita de alunos do Ensino Fundamental. As editoras Abril, Ática e Scipione "adotaram" as escolas próximas das empresas, em São Paulo: no Projeto Entorno, coordenado pela Fundação Victor Civita, funcionários vão à sala de aula ler para as crianças. Há ainda a doação de livros para as bibliotecas e a capacitação de diretores e coordenadores pedagógicos.
Tudo para estimular os estudantes a encontrarem mais prazer em ler.

O Tesouro no Quintal

Ilustração: Alexandre Camanho
Ilustração: Alexandre Camanho

 

 

 

 

 

 

 

Era uma família grande, a nossa: pai, mãe, cinco filhos. Grande e pobre. Papai, pedreiro, mal conseguia nos sustentar. Mamãe ajudava como podia, fazendo faxinas e costurando para fora, mas mesmo assim a vida era difícil. Papai vivia bolando formas de reforçar o orçamento doméstico ou de, pelo menos, diminuir as despesas. Foi assim que lhe ocorreu a idéia da horta.

Morávamos numa minúscula casa de subúrbio, não longe de uma bela praia, que, contudo, raramente freqüentávamos: era lugar de ricos. Casa pobre, a nossa, sem nenhum conforto. Mas, por alguma razão, tinha um quintal bastante grande. Do qual, para dizer a verdade, não cuidávamos. O capim ali crescia viçoso e no meio dele jaziam, abandonados, pneus velhos, latas, pedaços de tijolos e telhas. Papai olhava para aquilo, pesaroso: parecia-lhe um desperdício de espaço e de terra. Um dia chamou os dois filhos mais velhos, meu irmão Pedro e eu próprio, e anunciou: vamos fazer uma horta neste quintal.

Proposta mais do que adequada. Nós quase não comíamos legumes e verduras, porque eram muito caros. Mas, se plantássemos ali tomate, alface, agrião, cenoura, teríamos uma fonte extra de alimento ? sem custo.

Sem custo, mas não sem trabalho. Para começar, teríamos de capinar aquilo tudo e revirar a terra para depois plantar e colher. Meu pai não hesitou: vocês dois, que são os mais velhos, vão fazer isso.

Não gostamos muito da determinação. Não éramos preguiçosos, mas preparar a terra para fazer uma horta não era bem o nosso sonho e representaria um grande esforço. Contudo, não tínhamos alternativa. Quando papai dava uma ordem, era para valer. E, no caso, ele tinha o decidido apoio da mamãe, que era de uma família de agricultores e gostava de plantar.

Quem prepararia a terra? Foi a pergunta que fiz ao Pedro, que, além de mais velho, era o líder entre os irmãos. Pergunta para a qual ele já tinha a resposta:

? Isso é coisa para o Antônio.

Antônio era o irmão do meio. Com nove anos, era um menino quieto, sonhador. Mas não era muito do batente, de modo que fiquei em dúvidas: como convencê-lo a fazer o trabalho?

? Deixa comigo ? disse Pedro, que se considerava um cara muito esperto. ? Eu sei como convencer o cara.

E sabia mesmo. Porque Pedro era dono de uma lábia fantástica, argumentava como ninguém. Ah, sim, e sabia contar histórias ? inventadas por ele, claro. Era com uma história que pretendia motivar o Antônio a capinar o pátio.

Eu estava junto, quando ele contou a tal história. Era uma boa história: segundo um famoso professor, séculos antes piratas franceses haviam andado pela nossa região e ali haviam enterrado um tesouro. Expulsos pelos portugueses, nunca mais tinham retornado, de modo que a arca com jóias e moedas de ouro ainda estava no mesmo lugar, que podia ser o pátio de nossa casa.

? O tesouro será a nossa salvação ? concluiu, entusiasmado.

Antônio estava impressionado. Se havia coisa em que acreditava, era em histórias. Aliás, estava sempre lendo ? era o maior freqüentador da biblioteca do colégio.

? Quem sabe procuramos esse tesouro? ? perguntou.

Era exatamente o que Pedro queria ouvir.

? Se você está disposto, eu lhe arranjo uma enxada...

Antônio mostrava-se mais do que disposto. No dia seguinte, um feriado, lá estava ele, enxada em punho, cavando a terra, diante do olhar admirado da família. Papai até perguntou o que tinha acontecido.

? Ele se ofereceu para fazer o trabalho ? disse Pedro, dando de ombros.

Para encurtar a história: tesouro algum apareceu, mas, um mês depois, tínhamos uma horta no quintal. Antônio acabou descobrindo a trama de Pedro, mas não ficou zangado. Inspirado pelo acontecimento, escreveu uma história, com a qual ganhou um prêmio literário da prefeitura. Uma boa grana, que ele usou para comprar livros. Hoje é um conhecido jornalista e escritor. Acho que ele acabou, mesmo, encontrando o tesouro.

Quem é quem

Moacyr Scliar, autor deste conto, nasceu em Porto Alegre em 1937 e lançou o primeiro de seus mais de 50 livros em 1968. A maioria dos títulos é voltada para o público juvenil, como Os Vendilhões do Templo e O Mistério da Casa Verde.

Alexandre Camanho, que fez a ilustração desta página (com bico de pena, colagem e computador), nasceu em 1972 em São Paulo. Publicitário, freqüentou a oficina de gravura de Evandro Jardim.

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