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Jornalismo

Comparação e reescrita de fábulas

Trabalhe a produção de texto usando um gênero que reúne várias características propícias para tal, a fábula

PorCamila Monroe

01/02/2011

 
Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10

Conto, poesia, notícia, biografia, parlenda, fábula... Como você bem sabe, os gêneros textuais devem ser apresentados e trabalhados na sala de aula para ensinar a turma a ler, produzir bons textos, reconhecer os diversos aspectos da linguagem escrita e explorar as normas gramaticais e ortográficas.

De acordo com Bernard Schneuwly, psicólogo suíço, um dos autores de Gêneros Orais e Escritos na Escola, os gêneros são instrumentos para a aprendizagem dos discursos orais e escritos. Não se trata só de instrumentos de uso da língua em si mesmos. Têm também dentro de si instrumentos menores, aspectos estruturais e formas gramaticais. No entanto, por reunir características próprias e ser organizados de modos distintos, cada gênero deve ser colocado em cena em momentos e com finalidades diferentes.

As fábulas, por exemplo, trazem à tona características narrativas diferentes de cartas e biografias, dentre outros tipos de texto, deixando explícito o discurso direto e indireto. E por serem concisas, centradas em um só conflito, e apresentarem belas expressões, são ideais para explorar diversas questões com turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental.

Mesmo assim, esse gênero não costuma ser muito popular entre alguns docentes por causa de um de seus pontos mais marcantes, a moral.

Como se o trabalho com os alunos tivesse de se resumir ou ficar centrado nela. Ao contrário!

Não faz sentido usar essas histórias com finalidade disciplinar em sala. É claro que vale a pena organizar uma discussão com as crianças sobre a atribuição de determinadas características que os autores dão aos personagens (na maioria das vezes, animais), com o intuito de fazê-las compreender que as regras ditadas pelas fábulas não são válidas em qualquer situação. "Analisar de forma crítica essas atribuições é um bom exercício, pois elas são carregadas de simbolismos que os escritores utilizaram de acordo com o contexto da época em que viveram", explica Camila Castro, coordenadora da Comunidade Educativa Cedac, na capital paulista.

Tendo isso claro, fica mais fácil se concentrar em atividades que realmente importam, as que focam produção e análise linguística - um desafio para os estudantes se apropriarem de novos recursos de leitura e escrita.

A reescrita encaminha a turma para a autoria

Primeiramente, é fundamental ajudar a turma a conhecer e apreciar as fábulas para melhor compreendê-las e saber produzi-las na escola ou fora dela. Para isso, atividades de reescrita são recomendadas por especialistas.

 

Além disso, é preciso fazer a criançada se debruçar sobre os textos para analisar como se dá a questão da pontuação e da paragrafação, por exemplo. Esse foi o foco do trabalho desenvolvido por Jandira Stand, professora da 3ª série na EMEF Humberto de Campos, na capital paulista, vencedora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10 (leia mais sobre o projeto na última página).

Comparar diferentes versões da mesma história também pode ser muito proveitoso no que diz respeito ao tipo de discurso escolhido, à organização dos fatos, às características dos personagens e também ao vocabulário. Exatamente por ser um gênero tão antigo (fábulas são contadas há quase 3 mil anos), esse tipo de texto possui palavras desconhecidas pelas crianças e vem quase sempre acompanhado de um glossário, um bom instrumento para ampliar o rol de palavras da turma.

Propor que os alunos façam comparações entre duas versões revela a existência de diversas possibilidades na hora de escrever e pode servir de inspiração para a produção autoral (leia a sequência didática).

Ler diferentes versões amplia as possibilidades de escrita

Monteiro Lobato (1883-1948), por exemplo, elaborou duas reescritas de A Cigarra e a Formiga, fábula originalmente contada por Esopo. Em suas versões, ele apresenta diferentes finais modificando as características atribuídas normalmente aos animais citados.

No original, a formiga não ajuda a cigarra a se proteger do frio invernal, pois fica revoltada pelo fato de ela ter cantado o verão inteiro. Na versão de Lobato A Formiga Má, a cigarra acaba morrendo. Leia o trecho final:

(...) a formiga era uma usuária sem entranhas. Além disso, invejosa. Como se não soubesse cantar, tinha ódio à cigarra por vê-la querida de todos os seres.
- Que fazia você durante o bom tempo?
- Eu... eu cantava!...
- Cantava? Pois dance agora, vagabunda! - e fechou-lhe a porta no nariz: a cigarra ali morreu entanguidinha; e quando voltou a primavera o mundo apresentava um aspecto triste. É que faltava na música o som estridente daquela cigarra, morta por causa da avareza da formiga. Mas se a usuária morresse, quem daria pela falta dela?


Na segunda versão, A Formiga Boa, Lobato confere um aspecto compreensivo à personagem do título. Confira.

- E que fez durante o bom tempo, que não construiu a sua casa?
A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois de um acesso de tosse.
- Eu cantava, bem sabe...
- Ah!... - exclamou a formiga recordando-se. Era você então quem cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?
- Isso mesmo, era eu...
- Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas horas que sua cantoria nos proporcionou. Aquele chiado nos distraía e aliviava o trabalho. Dizíamos sempre: que felicidade ter como vizinha tão gentil cantora! Entre, amiga, que aqui terá cama e mesa durante todo o mau tempo.
A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol.


É importante ressaltar, porém, que encaminhar o trabalho autoral, nesse caso, não implica propor que os alunos criem fábulas próprias.

Estabelecer relações entre personagens e elaborar um fio condutor para a história que leve a um final moralista já é uma tarefa bastante complexa, ainda mais para crianças.

O propósito da atividade tem de ser realmente lidar com a transformação de algum elemento da narrativa (tempo, cenário, personagem etc), sem se preocupar com a criação do enredo.

Para que o processo de transformação não se torne algo automático, com a simples troca de uma palavra por um sinônimo, por exemplo, é fundamental fazer com que os estudantes reflitam sobre o que leram.

Assim, a fábula tem de ser contextualizada por eles, para que entendam os motivos que levaram o autor a escrever daquela forma e não de outra. Para essa contextualização, é essencial conduzir o trabalho na perspectiva de ajudar a turma a pensar e avaliar o que e como mudar e quais os impactos que as mudanças provocam no enredo.

É preciso ainda valorizar a vivência de cada um, pois é isso que permite escolher os melhores pontos para a mudança. Foi assim com La Fontaine e Monteiro Lobato - dois modelos literários de peso para as crianças se inspirarem a escrever com muita qualidade.

Reescrita inteligente: o projeto da Educadora Nota 10

Foto: Fernanda Preto

Jandira Stand
Pedagoga, é professora da rede municipal de São Paulo há 23 anos. Está se preparando para o mestrado na área de texto e discurso oral e escrito.

 

Foto: Fernanda Preto

1. Perceber pela voz

Jandira organizou sessões de leitura em voz alta de fábulas para contextualizar o uso e a função da pontuação. "Dei muito espaço à leitura, pois essa é a principal forma de perceber a importância dos recursos discursivos para ditar o ritmo das histórias", explica.

 

Foto: Fernanda Preto

2. Trabalho em dupla

Depois, convidou a turma a reescrever fábulas, a fim de analisar o que os alunos tinham compreendido das histórias. Para incluir uma estudante com paralisia cerebral em processo de alfabetizacão, Jandira flexibilizou o desafio da escrita: propôs o uso de letras móveis e recorreu ao trabalho em grupo, pedindo a ela que ditasse o texto a um colega.

 

Foto: Fernanda Preto

3. Hora da revisão

A cada reescrita, ocorriam revisões coletivas. Os alunos substituíam termos e alteravam a pontuação e a paragrafação.

 

Foto: Fernanda Preto

4. Registro valioso

 No fim do projeto, as fábulas, cheias de estilo, foram reunidas num livro, presenteado aos outros alunos da escola. Para avaliar o desenvolvimento de todos, Jandira montou um portfólio para cada aluno e planejou intervenções pontuais.

 

Foto: Kris Knack

"Jandira mereceu o prêmio porque usou um gênero adequado à faixa etária dos alunos para ensinar pontuação e também por fazer o acompanhamento individualmente."

Ana Flávia Alonso, selecionadora de Língua Portuguesa.

Quer saber mais?

CONTATOS
Camila Castro
EMEF Humberto de Campos, tel. (11) 2749-4506
Jandira Stand

BIBLIOGRAFIA
Gêneros Orais e Escritos na Escola
, Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz e colaboradores, 240 págs., Ed. Mercado de Letras, tel. (19) 3241-7514, 58 reais

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