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Jornalismo

Alcides José Scaglia Docente do curso de Ciências do Esporte e coordenador do Laboratório de Estudos em Pegagogia do Esporte (Lepe), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens), da Universidade de São Paulo (USP). (Crédito: Arquivo Pessoal/ Alcides José Scaglia)
 
 
Há tempos destaco a necessidade de superar a hegemonia da abordagem tradicional de ensino dos esportes. Para isso, é necessário levar em conta a Pedagogia do esporte, que tem como objeto de estudo e intervenção o processo de ensino, vivência, aprendizagem e treinamento do esporte. Com ela, ocorre o acúmulo de conhecimento significativo a respeito da organização, sistematização, aplicação e avaliação das práticas esportivas em diversos sentidos e manifestações. 


A Pedagogia do esporte é compreendida como uma práxis educativa na qual as ações e intervenções intencionais revestem-se de exigências pedagógicas, assumindo a responsabilidade de resolver a relação entre teoria e prática.

Nessa concepção, os movimentos esportivos não são meros gestos motores, e sim ações carregadas de desejos, sentidos e significados, podendo ser analisados somente no contexto mais amplo das ações humanas.

Assim, a Pedagogia do esporte assume o porquê, o para que, o que e o como ensinar esporte, em diferentes cenários, para distintas faixas etárias.

Neste artigo, focarei nas questões metodológicas dessa Pedagogia, mais precisamente na constituição de duas metodologias de ensino diferentes e divergentes (na verdade, opostas), na tentativa de auxiliar os professores no desenvolvimento das aulas. A primeira é a analítica/tecnicista, também chamada de método tradicional de ensino dos esportes, influenciada pelas teorias empiristas e inatistas. A segunda, denominada novas tendências em Pedagogia do esporte, é formada por diferentes caminhos construídos sobre os pressupostos da teoria interacionista e suas abordagens do processo de ensino (humanista, sociocultural, cognitivista e ecológica).

 

O jeito tecnicista de ensinar

Não é pecado seguir o método tradicional. Mas, é um grave equívoco desenvolver o método sem compreender as bases teóricas que o sustentam e também o que desencadeia ações e intenções.

Valer-se do método tecnicista significa acreditar que o mundo é feito de padrões e comportamentos manipuláveis. Ou seja, em raciocínio coerente ao método, respaldado pelo behaviorismo e racionalismo, entende-se que o ser humano veio ao mundo vazio e precisa ser preenchido de conhecimentos (modelados e transmitidos) ou, então, precisa ter seus talentos descobertos, revelados por um experiente observador.

Se o professor é responsável pelo preenchimento, baseando-se em um modelo ideal (padrão ouro), ele transmitirá as verdades (informações), de modo a obter o comportamento que deseja. Ou, certo da existência de predicados inatos, o professor provocará estímulos que despertem comportamentos e vocações já interiorizadas.

Quando denomino uma metodologia de ensino de esportes de tecnicista ou analítica, quero dizer que, nesse caso, a preocupação principal está concentrada no desenvolvimento e aperfeiçoamento das técnicas do jogo e dos movimentos, muitas vezes estereotipados.

O clássico e genuíno tecnicista, em meio ao desenvolvimento de sua Pedagogia do esporte, fragmenta o todo (jogo) em partes (fundamentos técnicos). Cada fração é trabalhada de forma descontextualizada da exigência do jogo todo, tendo o objetivo do automatismo de um movimento.

Um adepto da metodologia tecnicista sempre aplica treino de passe dois a dois a uma modalidade qualquer de jogos coletivos de invasão, cobrando que o gesto técnico seja executado com maestria e em consonância com os padrões motores. Em uma aula de voleibol, ele inicia explorando o domínio da manchete e do toque, além da distribuição espacial dos jogadores durante o jogo determinada por marcas desenhadas no chão para reconhecimento dos postos específicos. Na de basquete, começa pela clássica fila para realização da bandeja, traçando arcos no chão para sincronizar as passadas. Esse mesmo professor ainda desenvolve treinos de futebol com chutes a gol em fila, cruzamentos sem defesa, treinos táticos com o time adversário fazendo sombra etc.

Nota-se com os exemplos que esse educador não leva em consideração o que é imprevisível e, concomitantemente, ignora a complexidade existente nos jogos, além do fato de todos os problemas fundamentais serem resolvidos previamente pela ação docente. Logo, os alunos não precisam pensar, somente executam movimentos nas aulas. O passe é reduzido a gesto (fundamento técnico) que tem um fim em si mesmo, é adestrado. Não se pensa nele como uma ação de natureza tática, que denota uma intenção não necessariamente previsível, decorrente das circunstâncias apresentadas durante a partida.

O tecnicista assim procede, pois se baseia nas ideias de que com a especialização das partes terá um todo (jogo) melhor e quanto menos pensarem os participantes melhor poderão jogar. Basta seguir o que foi ensinado (ensaiado), treinado e encenado. Esse procedimento didático-metodológico é o mesmo que alfabetizar com cartilhas, gerando analfabetos funcionais: eles identificam as letras (que equivalem a gestos técnicos), mas apresentam grande dificuldade na interpretação de textos (que equivale à leitura tática do jogo). Em consequência, dependem de um outro traduzir, a seu modo, o texto (o que, por sua vez, tem relação no esporte com o fato de o treinador ler o jogo para o jogador, narrar as ações e indicar suas tomadas de decisão).

No ensino tradicional, se aprende por modelação e transmissão de um padrão a ser copiado de modo estereotipado. O melhor é o jogador mais apto, pois ele mostra com perfeição o movimento que deve ser repetido à exaustão pelos outros. E o ex-jogador é o mais bem preparado para ser professor, dispensando até mesmo a necessidade da formação pedagógica.

Uma característica marcante da abordagem tradicional é o fato de ela não contemplar a possibilidade de desordem. Ela se baseia nos pressupostos de ordem e progresso. Um tecnicista ortodoxo nunca imaginaria que o progresso advém do processo de organização engendrado pela desordem do sistema.

Sob a ótica do modelo tecnicista de ensino, os esportes coletivos jamais poderiam ser ensinados por meio de jogos e da ação tática. O que interessa é o adestramento do movimento técnico. Mesmo porque jogo é jogo e treino é treino.

 

O que há de novo

Ao apontar que existem novas tendências em Pedagogia do esporte, evidentemente, afirmo, ao mesmo tempo, que a Pedagogia tradicional já está superada. As novas tendências não vêm ajustar o modo de trabalho tradicional. Elas nascem sob uma nova ótica, ou melhor, sob um emergente paradigma influenciado diretamente pelas teorias interacionistas. E, quando se evidencia uma mudança de paradigma como essa, está se afiançando uma ruptura com um determinado modo de pensar e fazer.

Se o problema metodológico é de ordem paradigmática, não é possível modificar a metodologia sem alterar a forma de pensar o processo. Sob essa perspectiva, os princípios ditam que o processo de ensino do esporte na escola deve ser centrado na lógica que aproxima as diferentes modalidades. Por exemplo, analisar o processo com base nas competências para o jogo, na inteligência interpretativa e na tomada de decisão.

Assim, os jogos coletivos, levando em conta as metodologias interacionistas, primam pela exploração das ações do jogo (não dos movimentos ou dos gestos). O jogo, por sua vez, orientado para ampliar o acervo de possibilidades de ações (condutas motoras), é um processo aberto a todos, que não necessita de pré-requisitos para sua prática. Logo, o aluno é observado como sujeito ativo em seu desenvolvimento, influenciando o ambiente (que deve ser rico em possibilidades) e sendo influenciado por ele. Aprende a tomar decisões, busca autonomia aliada à emancipação, principalmente à medida que toma consciência de suas ações e da manifestação da lógica do esporte (jogo) em nosso contexto cultural e social.

As diferentes (não divergentes) propostas metodológicas concebidas em meio às influências advindas das novas tendências em Pedagogia do esporte tendem a valorizar o jogo, principalmente quando metodologicamente se baseiam na constatação de que, de acordo com João Batista Freire, o esporte é nada mais do que um jogo na sua forma mais socializada.

Pensar o esporte como jogo permite, assim, conceber uma metodologia construída com a interação entre diferentes jogos. Trata-se de uma complexa teia de conhecimentos, o que justifica e respalda a existência de uma grande família de jogos, com ramificações muito peculiares (por exemplo, os chamados bola-mão e bola-pé e os intermediados, individuais, de rede, de campo, de invasão...). Eles, por sua vez, se constroem exponencialmente por intercâmbios e ressiginificações da cultura lúdica.

Os procedimentos didático-metodológicos são, nessa perspectiva, pautados na dinâmica e funcionalidade do jogo e estão baseados nas relações de cooperação e oposição, individuais e coletivas. A aprendizagem do jogo é guiada pela compreensão de seus princípios e de sua lógica imanente e da elaboração dos mecanismos de gestão e regras de ação (ações táticas intencionais) perante o caráter situacional. O estudante, vivenciando sua autonomia, é ativo no processo de desenvolvimento. Ele regula as ações e elabora intencionalmente seus projetos de ação (reescrita do jogo) diante do processo organizacional do jogo/esporte. Faz isso em consonância com os referenciais funcionais - princípios operacionais e regras de ação (ataque e defesa) - e os referenciais estruturais do jogo (invariantes estruturais, tais como regras, parceiros, adversários, espaço e alvos).

Um professor influenciado pelos princípios e metodologias interacionistas tende a ensinar os diferentes esportes por meio de jogos semelhantes, agrupando-os em blocos que levam em conta a lógica de cada um. Entende que a tática do passe no basquete é a mesma do polo aquático e dos demais esportes coletivos. Dessa maneira, se o aluno entende a lógica do passe, mais facilmente construirá as ações motoras específicas para cada jogo. Ou seja, a razão de fazer (tática) determinará o modo de fazer (técnica). E, dessa maneira, ensina-se a jogar certo esporte jogando.

Logo, no esporte educacional, a prioridade deve ser o ensino das lutas (não especificamente do judô ou da capoeira), da "nadação" (para só depois chegar à natação propriamente dita e ao polo aquático), de todos os esportes com raquetes (não apenas do tênis), dos coletivos de invasão ou daqueles com rede (em vez da exploração de modalidades separadamente) e dos que envolvem corridas, saltos e arremessos variados (para só depois abordar o atletismo).

Portanto, de acordo com as novas tendências em Pedagogia do esporte, não é mais valorizado o desenvolvimento das habilidades técnicas fechadas (como o tecnicismo anuncia), mas, sim, das habilidades reconhecidas como abertas, em que o padrão motor cede espaço ao contexto do jogo (ambiente). O professor, nessa situação, é responsável por criar estratégias didático- metodológicas no jogo e pelo jogo (ambiente de aprendizagem) e também por guiar os estudantes pelo processo de construção dos conhecimentos sobre o esporte em suas múltiplas dimensões possíveis.

 

Resumo

Na escola, o trabalho com Educação Física deve ser centrado na técnica da prática esportiva ou na aprendizagem de esportes por meio de jogos? Do ponto de vista tradicional, a primeira opção faz mais sentido. Já para professores com princípios interacionistas, é a segunda que faz a turma construir saberes sobre diversos esportes. A direção para que apontam as novas tendências da Pedagogia do esporte também indica que o ensino deve ser orientado pela segunda ideia.

 

Referências bibliográficas

FREIRE, J. B., SCAGLIA, A. J. Educação como Prática Corporal. São Paulo: Scipione, 2003.

REVERDITO, R. S., SCAGLIA, A. J. Pedagogia do Esporte. São Paulo: Phorte, 2009.

SCAGLIA, A. J. O Futebol e as Brincadeiras de Bola. São Paulo: Phorte, 2011.

TANI, G., BENTO, J. O., PETERSEN, R. D. S. Pedagogia do Desporto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006.

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