Como dar aulas práticas de Ciências sem laboratório?
Espaço não está presente na maioria das escolas brasileiras, mas é possível pensar em experimentos significativos mesmo dentro da sala de aula
23/08/2023
Compartilhe:
Jornalismo
23/08/2023
Laboratórios de Ciências são raridade nas escolas públicas do Brasil. Números do Censo Escolar de 2022, compilados pelo QEdu - plataforma de dados educacionais - mostram que apenas 9% delas contam com esse tipo de espaço para que os alunos realizem atividades práticas do componente curricular.
Por isso, a maioria dos professores enfrenta o desafio de garantir que a turma faça investigações e experimentações em outros ambientes, como a própria sala de aula ou o entorno da escola. E, ao vencer as barreiras de infraestrutura, muitos docentes têm descoberto que é possível avançar nas aprendizagens de forma instigante e conectada com o cotidiano dos alunos.
“O problema da infraestrutura é real, principalmente, para as escolas que só contam com os Anos Iniciais [do Ensino Fundamental]. Pelo menos aqui na minha região, raramente essas escolas têm laboratório de Ciências”, afirma Cintia Maciel Batista Diógenes, professora da EM Maria Roseli Lima Mesquita, em Fortaleza (CE).
Para ela, refletir sobre o papel do laboratório, repensando a maneira de planejar as práticas de Ciências nos Anos Iniciais, é uma oportunidade de descobrir atividades que dão mais sentido às aulas.
“Quando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi homologada, houve um movimento bacana das escolas de apropriação do documento. Eu tive a oportunidade de dialogar com muitos professores sobre o que a BNCC trazia em relação às Ciências da Natureza. Nessas discussões, muitas vezes debatemos a Competência 2 [Compreender conceitos fundamentais e estruturas explicativas das Ciências da Natureza, bem como dominar processos, práticas e procedimentos da investigação científica, de modo a sentir segurança no debate de questões científicas, tecnológicas, socioambientais e do mundo do trabalho (...)”].
Cintia lembra que muitos professores diziam que era impossível desenvolver essa competência exatamente pela falta de um laboratório de Ciências para os alunos. Isso porque, segundo ela, quando se fala em práticas nesse componente, logo emerge a imagem de um laboratório de paredes brancas e uma pessoa com jaleco. “Esse tipo de experimentação é, sim, uma possibilidade, mas não só”, acredita.
A prática de Ciências, diz, pode acontecer numa roda de conversa, na observação de um parque, de um canteiro, de uma árvore. Pode ser feita empiricamente no dia a dia. “Quando a gente tira um pouco esse estigma de que Ciência só é feita em laboratório, a gente desmistifica a pesquisa e podemos nos enxergar, todos, como pesquisadores e cientistas”, aponta. “Eu gosto de saber que tenho a opção de levar a turma para um laboratório, mas não usá-lo indiscriminadamente é importante. O laboratório deve ser utilizado quando o experimento solicita o cuidado dentro de um espaço mais controlado. Fora isso, sou adepta a explorar outros ambientes.”
Verônica Gomes, doutora em Ensino de Ciências com ênfase em Aprendizagem Criativa e coordenadora de implementação do Programa Escolas Criativas, tem a mesma opinião sobre o uso dos laboratórios. “É possível pensar em atividades experimentais, exploratórias e investigativas mesmo sem ter um espaço como um laboratório. Ainda mais quando partimos da perspectiva de que o ensino de Ciências deve estar contextualizado com o cotidiano”.
Considerando essa visão, Verônica diz que é possível pensar nos fenômenos relacionados ao componente aplicados no dia a dia, como reações químicas com substâncias que estão na cozinha de casa. “É claro que existem alguns fenômenos que exigem aparatos. Mas, de modo geral, grande parte do que envolve a Educação Básica, principalmente nos Anos Iniciais, é super possível de ser trabalhado numa perspectiva investigativa, de resolução de problemas e com experimentos práticos sem um espaço específico para isso”.
Verônica alerta que o principal ponto de atenção é considerar e planejar essas aulas pensando na segurança, observando se o resultado não coloca em risco a saúde, o bem-estar e a integridade física das pessoas envolvidas. Fora isso, é cuidar para que todos possam participar e tenham a mesma percepção e entendimento da proposta.
“Quando entendemos que o conteúdo visto e reconhecido apenas como curricular é, na verdade, um conteúdo da vida, a gente percebe que esses conceitos e fenômenos acontecem na escola, fora dela, no entorno, na casa das famílias, o que amplia o campo de possibilidades”, destaca. “Então, se você vai trabalhar com fungos e bactérias, por exemplo, é possível usar elementos do cotidiano e também pensar o quanto os conservantes agem na preservação de alimentos, mas interferem na nossa saúde”. Ela propõe convidar a turma para a seguinte experiência:
“O laboratório tem um papel importante, mas por si só não basta se não houver uma perspectiva de aprendizagem baseada nas metodologias ativas, colocando o aluno em um papel de investigador para responder a perguntas”, pondera a especialista.
As práticas de Ciências nem sempre têm a ver com microscópios, tubos de ensaio e copos de becker. Elas podem estar relacionadas a uma entrevista, uma análise de dados ou à observação de algum espaço. Para a professora Cintia Diógenes, de Fortaleza, o mais importante é saber a pergunta que o professor deve fazer para que o aluno se sinta motivado a respondê-la? Para isso, o problema precisa fazer parte do cotidiano, da cultura social dos estudantes.
Nos Anos Iniciais, essas experimentações são mais simples e não devem comprovar uma tese. O mais legal, conforme a professora, é provocar uma inquietação. “Por exemplo, perguntei para a minha turma: o que acontece com o lixo depois que você o joga fora? O questionamento veio a partir do relato de que na entrada do bairro onde está localizada a escola era comum o acúmulo de lixo.”
A partir daí, começou um trabalho de investigação científica que, inclusive, culminou em uma coleta seletiva na escola, que também virou um polo de arrecadação de lixo eletrônico. “O que é arrecadado vira doação para um projeto de robótica”, conta Cintia.
“A Ciência precisa sempre estar conectada à relevância social. E, na escola, temos que mostrar que ela está conectada com a nossa vida”, ressalta. Cintia comenta que trabalhou em um colégio que ficava ao lado de uma praça, uma das mais movimentadas da comunidade, e levou os alunos para esse local. “Nós estávamos começando a falar sobre relações ecológicas, e pedi que eles observassem fauna e flora na praça e registrassem a interação dos seres e do meio”.
Quando voltaram e foram socializar as informações, os alunos conversaram sobre diferentes relações que observaram, mas que ainda não sabiam nomeá-las, da estrutura social das formigas ao inquilinismo e mutualismo. “E partindo dessa conceitualização, debatemos a importância dessas relações para o meio ambiente e como os seres humanos impactam o meio em que vivem”, lembra a professora.
A relação de respeito e pertencimento que os povos originários vivenciam com a natureza faz com que eles tenham muito a ensinar sobre as práticas científicas. “A Ciência acontece todo dia, o tempo todo, e os povos originários vivem em seu próprio laboratório”, afirma Jussara de Araújo Gonçalves, professora do Programa de Pós-graduação em Ensino em Contexto Indígena Intercultural e diretora da Agência de Inovação da Universidade do Estado do Mato Grosso.
De acordo com ela, as etnociências são conhecimentos valiosos, mas nem sempre reconhecidos. “Os indígenas trabalham muito a oralidade, e percebemos que parte desse conhecimento tem se perdido. [No contexto] da globalização, esse contato com outras culturas pode fazer com que muitos acreditem que a cultura deles é inferior, o que não é verdade. Por isso, trabalhamos para valorizar esse conhecimento enquanto Ciência.”
E a Ciência faz parte da rotina dos indígenas, relacionando-se de forma estreita com as práticas cotidianas. Jussara cita como exemplo o desenvolvimento de tecnologia para a extração de compostos de cianeto - que são tóxicos - da mandioca brava. “Eles extraem, utilizam a mandioca em si, reaproveitam o sumo na própria alimentação e ainda o usam para afugentar animais”, descreve.
Foi no próprio dia a dia das práticas do seu povo que a professora Eneida Kupodonepá, da EEI Jula Paré, em Barra do Bugres (MT), criou um recurso pedagógico para ajudar professores na abordagem de Ciências - e também Matemática e Língua Portuguesa - com alunos indígenas e não indígenas a partir dos conhecimentos dos Balatiponé Umutina.
Eneida explica que o material foi feito para o seu mestrado profissional e a proposta serve como referência para o professor planejar suas aulas a partir do conhecimento indígena que envolve a pesca com timbó – nome dado a um caule de onde é extraída uma substância tóxica, mas que, manipulada por meio dos conhecimentos indígenas, é utilizada em lagos e córregos como uma técnica de pesca. Em contato com a substância, os peixes ficam inertes e são facilmente capturados por meio de cestas ou de flechadas. A atividade não agride o meio ambiente, já que a composição química do timbó faz com que ele tenha uma ação imediata e passageira, não colocando em risco também a saúde de quem se alimenta dessa pesca.
“A pesca com timbó é a prova de que as Ciências estão na natureza, ao nosso redor e não apenas no laboratório da escola”, salienta Eneida. Tomando como ponto de partida a pesca, a docente trata de temas como a importância dos rios, espécies de peixes, substâncias presentes em plantas, reações químicas, estações do ano, noções de volume, mudanças climáticas, entre outros.
“O objetivo foi valorizar os conhecimentos locais e tradicionais do povo Balatiponé Umutina, especialmente a pesca com o timbó, uma atividade milenar que, apesar de algumas mudanças sofridas no decorrer dos tempos, continua sendo praticada”, conta. “[A ideia é] contribuir também com atividades pedagógicas no ensino de Ciências Naturais, utilizando os conhecimentos de maneira lúdica para ensinar crianças e adolescentes, tanto em escolas indígenas quanto não indígenas, promovendo a interculturalidade”.
Para a professora Eneida, os conhecimentos globalizados e sistematizados são complementares aos saberes populares. Eles contribuem para a aquisição de novos saberes a partir de outras perspectivas e, no caso dos saberes indígenas, levando à reflexão sobre ações sustentáveis.
A pandemia da Covid-19 evidenciou a desigualdade de acesso à tecnologia e a sua utilização nas escolas brasileiras. Apesar disso, algumas unidades conseguiram implementar recursos tecnológicos. Segundo a professora Kely Cristina Bueno, de São Bernardo do Campo (SP), essas ferramentas podem ajudar também na ampliação das possibilidades para as aulas de Ciências.
Atualmente, Kely atua na EMEB Alfredo Scarpelli e na EMEB Maria Rosa Barbosa como professora de Apoio a Projeto Pedagógico Tecnológico, Inovação e Criatividade nos Anos Iniciais do Fundamental. Em 2017, ao concluir sua dissertação de mestrado, a professora verificou que salas de informática e bibliotecas foram mencionados como os espaços mais disponíveis e utilizados pelos professores de diferentes regiões do país nas aulas de Ciências.
“Diante da ausência de laboratórios e a disponibilidade da utilização das salas de informática, o laboratório remoto surgiu como uma possibilidade viável de observação de experimentos. Isso, principalmente, se considerarmos que nesses espaços é possível acompanhar experimentos para além dos muros da escola, desde que se tenha um dispositivo eletrônico conectado à internet”.
Ela explica que no caso dos laboratórios remotos, experimentos são disponibilizados via plataforma aberta (open source) e acessados por professores e alunos por meio de um computador, tablet, celular ou lousa digital, de qualquer local, desde que conectado à internet. Algumas opções são ofertadas por universidades em plataformas compartilhadas e gratuitas, como o projeto do qual Kely participou, envolvendo uma parceria entre a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a rede municipal de São Bernardo.
“Buscando contextualizar e ampliar um projeto já realizado anteriormente sobre análise da água da represa Billings, foi criado e disponibilizado no ano de 2021 um experimento para o acesso remoto, o que possibilitou o planejamento e desenvolvimento de diferentes propostas sobre a represa, a água e os microrganismos, entre outros temas”, detalha. Foram realizadas coletas de água em dois pontos, e as amostras eram observadas em tempo real através de uma webcam e um microscópio digital. No fim, o projeto também serviu de base para uma formação de professores da rede.
De acordo com ela, os espaços verdes e áreas de represas, rios e córregos podem auxiliar no desenvolvimento de diferentes propostas investigativas. “Observar a metamorfose e o desenvolvimento de diferentes insetos, o crescimento de plantas, a coloração da água da represa, de um córrego, em diferentes períodos de tempo, pode ser um recurso riquíssimo”, considera. “Além disso, outros espaços que estão sendo implementados nas escolas podem ser utilizados para o desenvolvimento de atividades práticas como o laboratório de informática, com simulações online e até mesmo os laboratórios remotos”, reforça a professora.
Últimas notícias