Como abordar transgeneridade na escola?
Instituições devem criar espaço acolhedor para alunos trans, promover o respeito e o diálogo sobre o tema, além de desenvolver iniciativas contra a LGBTfobia
19/06/2023
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Jornalismo
19/06/2023
Há 14 anos, o Brasil se mantém em 1º lugar no ranking dos países que mais assassinam indivíduos trans no mundo. Vítimas de negligências médicas, discursos de ódio, estupros e outras tantas violências, muitas vezes essas pessoas têm o pleno acesso à Educação negado, assim como outros direitos.
Como quaisquer crianças e adolescentes, transgêneros tendem a passar grande parte de suas vidas no ambiente escolar. No entanto, as vivências não são as mesmas, pois esse ainda é um espaço bastante hostil às pessoas trans, conforme os dados publicados pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), em 2020. Segundo a pesquisa, 64,1% delas não chegam a concluir o Ensino Médio.
Entre os motivos do abandono escolar estão as dificuldades de usar o nome social e de frequentar o banheiro da escola que representa o seu gênero, além da falta de abordagem de pautas como transfobia ou LGBTfobia com os estudantes.
“Esses fatores colaboram com a indisposição de ir às aulas e se transformam em exaustão. Mais cedo ou mais tarde, isso vira desprezo, culminando na desistência forçada”, aponta o documento.
Sayonara Naider Bonfim Nogueira, ativista e coordenadora do Projeto Travessia, vinculado à Rede Trans Brasil e que funciona como um Observatório Nacional de Violações de Direitos de Pessoas Trans, afirma que o país é muito rico quando se trata de leis e políticas de inclusão escolar. No entanto, esse debate segue longe do campo da diversidade sexual e de gênero.
Ela considera que o sucateamento da Educação, a ausência de formação continuada dos professores, o cansaço que acomete os profissionais e a ausência de dados sobre a população LGBTQIAPN+ nas escolas faz com que a formulação de políticas públicas estacione, gerando danos à vida social e educacional desses alunos.
Em 2018, a regulamentação do uso de nome social nas instituições de Educação Básica foi aprovada pelo Ministério da Educação. Desde então, jovens maiores de 18 anos podem solicitar o registro no ato da matrícula escolar, e menores de 18 anos precisam de autorização e assinatura das pessoas responsáveis.
O uso de banheiros, vestiários e demais espaços segundo a identificação de gênero também está garantido nas escolas. Na visão de Sayonara, apesar de representarem um avanço, essas conquistas são apenas a ponta do iceberg, pois “faltam políticas públicas de permanência, que incentivem o combate à discriminação”.
Projeto propõe trabalhar a temática o ano inteiro, debater preconceitos e integrar estudantes LGBTQIAPN+
Fábio de Lima, professor de Filosofia da EE Professor Joaquim Luiz de Brito, em São Paulo (SP), é idealizador do projeto “Brito Sem LGBTfobia”. A iniciativa surgiu em 2013, quando ele identificou que alguns alunos usavam terminologias desse universo para ofenderem uns aos outros – até mesmo de “brincadeira” – oprimindo aqueles que eram parte do grupo LGBTQIAPN+.
Entre as primeiras ações, há dez anos, a escola promoveu uma sessão de cinema do filme Orações para Bobby, baseado em uma história real estadunidense, na qual a mãe tenta “curar” o filho da homossexualidade. Segundo Fábio, o resultado entre os estudantes cisgênero foi imediato, com o reconhecimento de suas atitudes preconceituosas.
A psicóloga clínica Liliana Seger, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), diz que as instituições devem funcionar como um ambiente inclusivo e acolhedor, seja em relação ao gênero ou à sexualidade. Ela defende que, muito além de cursos ou palestras que tratem pontualmente do tema, é preciso trazer as questões para o dia a dia, com atividades que ensinem a lidar com as diferenças.
O professor Fábio conta que, em 2015, o projeto “Brito Sem LGBTfobia” trabalhou a temática do filme Priscilla, a rainha do deserto, centrado na história de duas drag queens e uma transexual, levando até a escola pessoas que integram essa comunidade. “Além do apoio das gestoras, temos muita adesão dos alunos. São várias equipes atuando para organizar o evento anual”, descreve Fábio. “Eles [estudantes LGBTQIAPN+] se sentem parte da escola, pois é um projeto que visa não só criar uma consciência livre de preconceito, como integrá-los”, diz o professor. Como outras possibilidades de filmes para tratar do tema, ele sugere XXY, Tomboy e Minha vida em cor-de-rosa.
Em Porto Alegre (RS), na EMEF Saint-Hilaire, a professora Maria Gabriela Souza acredita que a leitura é um direito de aprendizagem que contribui para o diálogo sobre transgeneridade. “A partir da mediação de leitura, é possível estabelecer um espaço de segurança para que os alunos possam se expressar.”
É dessa maneira que ela atua na orientação do Coletivo de Mediadoras(es) de Leitura Luísa Marques, que acontece no contraturno escolar. “Apostamos nessa experiência como dispositivo pedagógico que valoriza o bem-estar físico, mental e social dos alunos. [Há uma intencionalidade] associada ao compromisso em melhorar a qualidade de vida no território educativo. [Desenvolvendo ações como essa], favorecemos as condições de expressão, a escuta e o acolhimento dos estudantes”, explica Maria Gabriela.
Segundo a professora, a contação de histórias é uma ponte para abordar o respeito à identidade de gênero. No projeto “Arco-íris: é sobre respeito”, estudantes e mediadoras(es) de leitura contam histórias para falar sobre o respeito às pessoas LGBTQIAPN+ e desenvolver a competência 10 (Responsabilidade e cidadania) da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Trabalha-se, entre outros aspectos, a incorporação de direitos, a tomada de decisões, a análise de valores individuais e coletivos, além da participação social.
“Nesse caso, a empatia é um dos caminhos para a alteridade e está presente nas propostas que atuam para discutir o respeito às pessoas transgênero”, argumenta a professora.
Para ela, também é necessário que a escola construa um acervo que possibilite realizar essas dinâmicas: “Alguns livros, como A história de Julia e sua sombra de menino e Julian é uma sereia, são boas indicações. Além disso, a série de animação Que corpo é esse, do canal Futura, reúne episódios que abordam o tema [e podem complementar as leituras].”
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Sayonara, do Projeto Travessia, também é educadora e lecionou Geografia durante 16 anos na Educação Básica. A partir dessa experiência, ela acredita que as abordagens sobre gênero e sexualidade devem acontecer na perspectiva da afetividade, com atividades que reforcem os conceitos de valorização da vida, da ética e do respeito, e que impactem positivamente na formação das pessoas.
Ela explica que as competências socioemocionais presentes na BNCC permitem o trabalho com temas como sexualidade e diversidade. Por outro lado, de maneira concreta, o assunto só aparece em Ciências da Natureza no 8º ano. “Mas ele é levado de forma ‘biologizante’, esquecendo da questão afetiva, dos direitos humanos e da cidadania.”
Na EMEF Bernardo Lemke, de Nova Hartz (RS), a pesquisa foi um dos caminhos encontrados pela professora Denize Groff para abordar as pautas ligadas à comunidade LGBTQIAPN+. Ela orienta projetos de iniciação científica, que permitem aos alunos estudar temas de seu interesse.
“Tenho um grupo de 6º ano, por exemplo, que ficou chocado com o número de mortes de homossexuais no Brasil e resolveu desenvolver um plano para investigar as causas da homofobia”, diz.
“Alguns relataram o quanto essa problemática é presente [em seu cotidiano], com parentes que não são aceitos nas famílias. Assim, eles estão buscando entender o preconceito [nas esferas] micro e macro, com resultados que apresentarão na mostra de projetos científicos. Diante disso, um dos objetivos é colocar em prática estratégias para combater a discriminação na comunidade escolar”, reforça.
Como professora de História, Denize lembra que a temática da homoafetividade costuma aparecer nas aulas de História Antiga. “Muitos soldados gregos e romanos se casavam com mulheres para garantir a linhagem, mas a relação amorosa se dava de forma homoafetiva. Em vez de gerar constrangimento, o aluno vê que é algo natural e há muito tempo presente [na sociedade]”.
Ela considera, no entanto, que nos últimos anos houve retrocessos quanto à liberdade para abordar alguns assuntos em sala de aula, no contexto das fake news sobre a chamada ideologia de gênero. Assim, caberia à escola e à rede de ensino oferecer segurança, apoio e formação aos educadores para discutirem sobre diversidade.
Confira as definições de cada termo da sigla
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e Não-binários, além de outras pessoas que não se encaixam nestes termos.
Mulheres que sentem atração sexual/romântica por pessoas do mesmo gênero.
Homens que sentem atração sexual/romântica por pessoas do mesmo gênero.
Relacionam-se com pessoas dos dois gêneros.
Não se identificam com o gênero que lhe foi atribuído. Inclui mulheres trans, homens trans e travestis (sempre mulheres).
Pessoas que transitam entre os “gêneros”, sem necessariamente concordar com tais “rótulos”.
Possuem variações biológicas não-binárias. Uma pessoa intersexo pode ser hétero, gay, lésbica, bissexual ou assexual e se identificar como mulher, homem, ambos ou nenhum.
Aqueles que não sentem atração sexual por nenhum dos dois gêneros.
Atraem-se por pessoas independentemente do seu gênero -- sejam homens ou mulheres cis/trans, agênero ou não-binárias.
Identificam-se com mais de um gênero. Geralmente, entendem sua identidade como algo fluido, que vai além das categorias homem e mulher.
Para que a escola proporcione um ambiente saudável e seja um espaço de diálogo e combate aos preconceitos, o papel dos gestores também é fundamental. Eles devem ser capazes de lidar com essa pauta e identificar eventuais violências.
“Acho importante que a gestão defina um professor articulador das temáticas de gênero. Essa pessoa torna-se uma referência para estudantes trans, que conseguem denunciar situações opressoras e constrangimentos. Esse educador vai ajudar a encaminhar, junto à direção da escola, o combate aos preconceitos”, sugere a professora Maria Gabriela.
“Na minha escola, eu faço esse papel. É essencial que, ao receber a demanda do aluno, seja feito o acolhimento e o registro para, então, seguir com as medidas necessárias. Ele precisa saber que pode confiar na escola.”
Segundo a psicóloga Liliana, além de estar aberto para ouvir, os professores e gestores devem observar mais de perto o aluno trans que demonstrar alterações no comportamento e intervir por meio do diálogo. “Quando a gente vê um adolescente que era tranquilo e está muito agressivo, fechado ou falando demais, cabe perguntar se ele precisa de ajuda, mas sempre respeitando o espaço da individualidade”.
De acordo com Sayonara, a construção de um Projeto Político Pedagógico (PPP) alinhado à proposta da inclusão e da diversidade é ainda mais significativo. “O documento deve ser idealizado em conjunto e trazer temáticas como gênero e sexualidade para reuniões pedagógicas e conselhos, preparando o corpo docente para ocorrências [como denúncias de assédio]”, destaca.
Com uma reestruturação cíclica do PPP, é possível incluir propostas que expandem a diversidade nos espaços, estabelecendo ações e atividades institucionalizadas, que não dependem apenas da iniciativa dos professores.
Por fim, ela orienta que, para combater a LGBTfobia no ambiente escolar, é imprescindível que os gestores desconstruam estereótipos e não compactuem com os agressores – sejam eles docentes ou alunos. Se necessário, acionem ainda o Conselho Tutelar, o Ministério Público e as Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente.
Entre abril e maio de 2023, NOVA ESCOLA ouviu, com o apoio da ONG TODXS, 4.035 educadores de instituições públicas e privadas de diferentes níveis de ensino, por meio de um questionário aplicado virtualmente. Entre os principais resultados estão:
“Os últimos estudos da NOVA ESCOLA têm comprovado que o ambiente escolar é um reflexo da sociedade. É necessário trabalhar esses temas para que a escola seja o lugar em que meninos e meninas aprendem a conviver com as diferenças e a deixar de lado preconceitos e estereótipos que encontram nas demais esferas sociais”, ”, disse Ana Ligia Scachetti, pedagoga e CEO da NOVA ESCOLA, em entrevista à CNN Brasil.
*Texto atualizado em 29/06/2023 para acréscimo de informações sobre a pesquisa.
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