Cultura de paz em meio à violência: como construir uma escola segura?
Propostas de ação coletiva que buscam superar a violência são cada vez mais necessárias ao cotidiano das escolas
26/04/2023
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Jornalismo
26/04/2023
A cultura de paz nas escolas só é possível em um ambiente de diálogo e empatia. Foto: Getty Images
Há um conto, evocado volta e meia em palestras com educadores, que fala sobre um viajante do tempo, vindo do século 19, chegando aos nossos dias. Nele, descreve-se todo o espanto daquele homem, tremendamente impactado com as mudanças do mundo à sua volta. Porém, ao final da história, o viajante encontra “abrigo” em uma escola, pois esta seria exatamente como aquelas que existiam em sua época.
Já presenciei essa crítica algumas vezes, com mais e menos embasamento. Mas entendo que a escola que construímos hoje em dia está longe da que era desenvolvida 200 anos atrás. Poderia dar um punhado de exemplos sobre isso. Provamos estar no século 21 quando pensamos na integralidade de nossos alunos; no momento em que trabalhamos a educação socioemocional com a mesma importância que a cognitiva; quando dialogamos de forma horizontal com a comunidade escolar ou vislumbramos a Educação para além dos muros da escola, entre outros.
Então, amiga leitora e amigo leitor, se observarmos atentamente descontinuidades e permanências, notaremos que a escola tem se transformado (que bom!), tornando-se cada vez mais integrada à realidade de suas comunidades. Mas é claro que há elementos nela que permanecem e permanecerão.
O historiador Phillippe Ariès afirma que a escola moderna surge como um lugar para “adequação da criança ao mundo adulto”. Assim, se por um lado hoje em dia não lidamos com a infância como uma fase inacabada dos nossos alunos, por outro, o “mundo externo” sempre esteve e continua presente, influenciando os espaços escolares. Em outras palavras, as escolas nunca foram ou serão bolhas apartadas da sociedade.
Partindo desse princípio, como seria possível pensar em uma cultura de paz nas escolas quando estas estão inseridas em uma sociedade tão violenta como a nossa?
A ideia de desenvolver ações para que o diálogo e a mediação, em lugar da violência, resolvam os conflitos não é nova. No final dos anos de 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas definiria que 2000 seria o Ano Internacional da Cultura de Paz.
Junto com essa escolha, foram criados pilares que baseariam, no mundo, uma cultura sem violência. Estes passavam pelo respeito à vida, o fomento de escuta visando à compreensão, e a solidariedade. No entanto, o Brasil dos últimos anos parece ter entrado na contramão desse movimento.
Alguns dados largamente veiculados exemplificam o quão violentos nos tornamos. Em 2022, após mais 131 mortes, recebemos pelo décimo quarto ano seguido o desonroso título de “país que mais mata pessoas trans no mundo”. Para piorar, nos últimos quatro anos triplicou o número de registros de Caçadores, Atiradores Desportivos e Colecionadores (CACs) no país. Junto a isso, em média 691 armas chegaram diariamente às mãos de civis entre 2019 a 2022. Como pensar em tolerância e paz em um cenário assim?
Se não bastassem esses números alarmantes, quem de nós, amigos leitores, não teve a oportunidade de observar a explosão da intolerância e de discursos de ódio nas redes sociais, potencializada por fake news em tempos de pós-verdades? Isso para falar somente na parte da rede à qual temos acesso. Imaginem o que acontece em fóruns marginais da dark web... Era evidente que toda essa violência impactaria as nossas escolas.
Que se pese o fato de que não conheço um professor com mais de seis meses de regência que afirme nunca ter presenciado um ato de violência no espaço escolar, os últimos acontecimentos nos deixam perplexos pela brutalidade. Mas é triste a constatação de que não têm nos causado tanto espanto conviver nas salas de aula e nos pátios com ofensas verbais, bullying cotidiano contra certos estudantes, agressões entre alunos e, em alguns casos, até contra profissionais da Educação.
A nossa escola não é uma bolha, não está apartada da sociedade. Logo, a tendência é encontrarmos nela a mesma violência presente fora dos seus muros.
Cara leitora e caro leitor, é uma constatação simples o fato de que trabalharemos para mitigar, e não para resolver o problema da violência nas escolas. Enquanto a sociedade em que elas se inserem for violenta, as escolas serão violentas. Mais que isso, da mesma maneira que buscamos “derrubar os muros” para nos inserir nos territórios, a violência também não respeitará qualquer limitação espacial se não for combatida.
Para nossa sorte, somos educadores. Assim, mesmo que aparentemente estejamos vulneráveis nesse contexto, penso ser justamente a escola o lugar de guinada para mudar a realidade. Como dizia Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Assim, ao desenvolver uma cultura de paz dentro dos ambientes escolares, estamos criando muito mais do que um local de trabalho seguro para nós e nossos alunos. Essas ações, de maneira coletiva e sistemática, têm potencial para se tornar o alicerce de uma nova sociedade.
Se a implementação de uma cultura de paz escolar requer tempo e conscientização, isso, no entanto, só poderá se materializar por meio de ações cotidianas e práticas – como as que adotamos na EM Professora Ivone Nunes Ferreira, onde sou gestor há quatro anos, e que cito a seguir, com o objetivo de auxiliar nesse trabalho.
1. Conscientização da comunidade escolar como um todo. Um dos principais meios utilizados para a propagação do pânico e a desestabilização da rotina do espaço escolar atualmente é a internet. Com isso, é urgente aproveitar momentos como a entrada e saída dos alunos, além de reuniões e fóruns já estabelecidos no calendário escolar, para conscientizar os responsáveis sobre cuidados no repasse de informações.
2. Desenvolver projetos que trabalhem a empatia, a tolerância e a escuta de forma sistemática, e não só reativa. Costumamos promover ações como rodas de conversas e palestras para falar sobre violência após situações-limite. Então, é importante criar um ambiente que naturalize a cultura de paz nas escolas, e não só falar dela como resposta. Assim, estipular datas para essas intervenções dentro dos bimestres e ao longo do ano é essencial.
3. Trabalhar de forma intersetorial para qualificação das informações e dos atendimentos. Somos educadores e, de maneira geral, tratamos das mais diversas situações em nossas escolas. Mas principalmente com o aumento da violência nos espaços escolares, a presença de profissionais técnicos da saúde e da assistência social são de suma importância para a atenção a alunos, professores, funcionários e responsáveis. Há quem pregue o aumento do policiamento nas escolas, mas tenho convicção de que psicólogos e assistentes sociais, em parcerias firmadas entre unidades escolares e clínicas da família, trarão efeitos muito mais significativos e benéficos para a segurança de todo o território da escola em curto, médio e longo prazos.
4. Contratação de pessoal para o controle de acesso aliada a ações de segurança cotidiana. Quando pensamos em nível macro de gestão, a primeira providência que nos vem à mente é a contratação de porteiros para as escolas. Essa medida, adotada em algumas redes, auxilia em diversos pontos já citados, especialmente por aumentar a sensação de segurança do portão para dentro. Além disso, quando for viável, e houver verba para isso, a instalação de câmeras em áreas comuns da escola também é bem-vinda. No entanto, em alguns casos, a simples confecção de carteirinhas pela secretaria da escola, para serem distribuídas aos responsáveis, auxiliando a saída em segurança dos alunos, já pode surtir um efeito interessante.
5. Manter um canal aberto para escuta constante dos alunos. Parte significativa da violência nas escolas parte, infelizmente, de alunos e ex-alunos que por diversos motivos não foram ouvidos no tempo correto. Cabe aos gestores, coordenadores pedagógicos, professores e funcionários sempre criar espaços de escuta e manter suas salas e gabinetes abertos para as queixas dos alunos. Lembremos: um pequeno problema para nós pode ser um grande problema para o outro.
Enfim, precisamos lembrar que a cultura de paz nas escolas só é possível em um ambiente de diálogo, de empatia, em que as pessoas que ali trabalham, estudam e convivem se sintam seguras. Assim, informação de qualidade, transparência nas ações e escuta ativa, somadas a intervenções sistemáticas, se tornam primordiais nesse processo.
Abraços e até a próxima coluna!
José Couto Júnior é licenciado em História, tem mestrado em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e é doutorando em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2018, foi eleito Educador do Ano pelo Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 13 anos, atua desde 2019 como diretor na EM Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro (RJ).
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