Compartilhe:

Jornalismo

Alfabetização: como conduzir o processo de aprender a escrever

Especialistas dão orientações e dicas práticas para apoiar esse percurso trabalhando temas de interesse das crianças e partindo do que elas já sabem

PorIngrid Yurie

29/03/2023

Crianças da rede municipal de ensino de Aracati (CE) realizam atividades de alfabetização, em 2022. Foto: Renato Stockler

Aprender a escrever é objeto de fascínio das crianças, que se orgulham de empunhar um lápis e participar do mundo letrado. É isso que tanto motiva os estudantes na complexa empreitada da alfabetização e produção da escrita.

Quando o professor, atento, segue esse interesse natural dos alunos, as aprendizagens se tornam mais significativas e, portanto, duradouras. “É menos sobre treino e memorização e mais sobre dar sentido à alfabetização”, sintetiza Regina Clara, consultora do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e coordenadora pedagógica.

Ela explica que, desde pequenas, as crianças produzem textos — narrativas próprias que ainda não são escritas. “Elas manifestam o desejo de brincar ou de comer, antes de começar a escrever de próprio punho, e isso também é texto. Depois, seguem aprendendo a produzir novos textos em função de diferentes situações de comunicação até o fim da vida.”

Durante esse processo de aquisição da linguagem, encaram o desafio da coordenação motora e de compreender o que escrever, para quem, como e com qual objetivo. Ainda, o de relacionar sons e letras, os conhecimentos prévios e os novos.

Magda Soares [educadora referência em alfabetização] vai dizer que a alfabetização tem muitas facetas”, cita Daniela Mara Lima Oliveira, docente da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Uma delas é essa janela que se abre para as crianças. Vivemos em um mundo grafocêntrico, isto é, com escrita em todo lugar. Quando elas podem acessar esse mundo, ficam doidas! Querem escrever e ler o tempo todo.”

Alfabetização e exercício da cidadania

Escrever e ler, inclusive, são atividades que enriquecem uma à outra simultaneamente e ajudam os estudantes a consolidar as habilidades necessárias para a alfabetização.

Também contribui para esse processo trabalhar os temas de interesse das crianças e do território que as circunda, além de personalizar o ensino adotando as melhores estratégias para cada agrupamento de estudantes. Dada a diversidade, que é característica desse processo, Regina defende que é preciso “ir além da disputa entre métodos”.

“Precisamos encarar nossas crianças como sujeitos pensantes, que observam e interpretam o mundo à sua volta e têm hipóteses de como escrever”, diz Regina. “Depois, é partir de quem eles são e do que já sabem para criar os melhores contextos para que a alfabetização ocorra.”

Uma alfabetização adequada e com sentido facilita o acesso ao conhecimento humano acumulado e constitui um exercício de cidadania. “Na alfabetização, temos pessoas se fortalecendo nesse lugar de cidadão de direito — de poder participar das situações comunicativas, de [ter] presença no mundo, de produzir, manifestar, expressar-se”, pontua a consultora do Cenpec.

Alfabetização e produção da escrita

Crianças da rede municipal de ensino em atividades pedagógicas em Angical (PI), em 2022. Foto: Renato Stockler

Em 2019, circulou na internet o desafio da boneca Momo, no qual se apropriaram da criação do artista japonês Keisuke Aiso para disseminar notícias falsas e incentivar as crianças a atentarem contra a própria vida. O tema reverberou entre os alunos de 1° ano da professora Luciana Domingues Ramos, que leciona na EMEF Professor João Carlos von Hohendorff, em São Leopoldo (RS).

“Discutimos juntos os perigos da internet e as fake news. Depois, criei com eles o #Desafio_Anti_Momo, em que eles fizeram sua própria boneca Momo de massinha, tiraram foto e, no computador, escreveram pequenos textos para estimular as pessoas a fazerem o bem”, conta Luciana. O resultado foi publicado nas redes sociais da escola.

O tema também foi desdobrado em memes, podcasts e um filme de curta-metragem. “Eles gostam de escrever no caderno, mas quando esse texto chega a outras pessoas, mobiliza muito”, salienta a educadora.

Ela também considera positivo diversificar os suportes e formatos de narrativa. “Nessa fase, nem todos escrevem, mas querem mostrar o que estão aprendendo. Então, atividades que permitem que eles se expressem de várias formas são muito motivadoras.”

Escrever para aprender a escrever

Segundo Regina, também contribui para a alfabetização alternar momentos de escrita coletiva, em duplas e individualmente. “Pedir para uma criança ditar um texto para um colega escrever é muito rico.”

Atividades de transcrição de textos que as crianças sabem de cor também promovem o progresso da escrita. Isso porque elas aprendem a manter fidelidade ao registro, controlar o que já foi escrito e o que ainda falta escrever, observar aspectos relacionados à segmentação do texto e analisar questões relativas à compreensão do sistema alfabético e das convenções do sistema ortográfico.

Decalque e reconto de textos conhecidos são outras práticas indicadas. O decalque possibilita concentrar-se no conteúdo temático, uma vez que a atividade consiste em retirar algumas palavras centrais de um texto já conhecido e pedir que as crianças as substituam, dando outro sentido a canções e poemas, por exemplo. Já o reconto de textos conhecidos prioriza aspectos estilísticos, o que permite que as crianças se apropriem da linguagem que se usa para escrever.

Regina recomenda ainda que o professor mantenha um mapa atualizado da classe, com a hipótese de escrita que cada criança tem, seu ritmo, avanços e volume de escrita do qual ela dá conta. Assim, ele pode calibrar o desafio que vai propor para cada estudante e as formas de agrupar e reagrupar a turma para a aprendizagem colaborativa.

Esse olhar atento a cada um faz toda diferença. Geisla Lima, professora alfabetizadora na EMEB Professora Marina de Almeida Rinaldi Carvalho, em Jundiaí (SP), lembra o caso de um aluno que se recusava a escrever. Só foi possível convencê-lo do contrário ao propor que ele escrevesse sobre os bichinhos do jardim, sua paixão, para compartilhar esses conhecimentos com outras pessoas. “Ouvir as crianças e saber do que elas gostam facilita demais esse trabalho”, destaca. 

O lugar do erro na alfabetização

“Professora, tá certo?” é uma pergunta que costuma ecoar nas salas de aula dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Empenhados em abrir mão de sua escrita tão própria para adotar o padrão da Língua Portuguesa, é comum que os estudantes entrem em um conflito interno.

“É um momento delicado, que demanda lidar com o erro, e muitas crianças não recebem bem essa questão. Pode haver muita cobrança, impactos para a autoestima e o desejo de não querer mais arriscar”, observa Luciana. “O mais importante é dar liberdade para eles se aventurarem e lembrá-los de que uma criança que está aprendendo a escrever é uma criança corajosa.”

Isso demanda que o professor incentive os estudantes a qualificar suas perguntas, para entender quais são as dúvidas, em vez de apenas dizer a eles qual seria a forma correta de escrita. “É interessante pedir para eles explicarem suas hipóteses e, então, dialogar a partir disso”, sugere Daniela.

Quando as crianças já construíram a base alfabética, elas devem ser estimuladas a refletir sobre as regularidades contextuais e morfológicas e aprender a identificar quais são os contextos “perigosos”, porque mais de uma letra compete para representar um determinado fonema. Para enfrentar esses perigos, é importante incentivar o uso do dicionário.

Disponibilizar dicionários e deixar listas de palavras nas paredes da sala, como o nome de cada aluno ou os animais favoritos deles, também desenvolve a autonomia dos estudantes para escrever novas palavras a partir dessas já conhecidas.

Para ir além do certo e errado, a professora Geisla aposta no trabalho com as duplas produtivas. “Eles pensam juntos e têm discussões, enquanto eu aponto maneiras de refletir sobre o que estão fazendo.”

Regina indica ainda fazer escolhas do que revisar e aprimorar nos textos, ao invés de tentar corrigir todos os aspectos de uma só vez. “Vale deixar para fazer isso em um segundo momento, até em outro dia após a escrita do texto, porque isso faz com que as crianças fiquem menos apreensivas com a convenção.”

Propostas para promover a escrita

Confira algumas sugestões de atividade para estimular a produção de texto das crianças 

Proponha a elaboração de listas e bilhetes

O caráter comunicativo real é especialmente atraente para as crianças. Geisla pede que seus estudantes escrevam listas e bilhetes quando precisam listar materiais e solicitar giz à secretaria, por exemplo, ou para compartilhar com a turma o que vai ter de merenda no dia. “Mas também já escrevemos bilhetes para avisar a mãe dos Três Porquinhos que o Lobo Mau está na floresta”, brinca a educadora.

Incentive a produção de cartas

Antes de receber uma turma de 1° ano, a professora Luciana escreve uma carta para se apresentar a cada estudante. No decorrer do ano, são as próprias crianças que começam a produzi-las. “Quando recebem uma carta, ficam com vontade de respondê-la, de mandar outras para pessoas queridas. É a função social da escrita cativando as crianças”, ressalta.

Incentive a produção coletiva de recontos

Proponha o reconto oral de um conto de que as crianças gostem muito e grave a performance. Transcreva o texto e, na aula seguinte, antes de apresentar a transcrição, ouça a gravação com a turma. Comente que contar uma história oralmente é diferente de escrevê-la. Proponha, então, que as crianças revisem coletivamente o texto para que ele fique parecido com os contos dos livros. Retome a leitura do que já foi revisado, sempre que necessário, para que avaliem se o resultado está ficando interessante.

Estimule a produção de dicas literárias

Em geral, quando lemos algo de que gostamos, vamos logo indicando o livro para os amigos, não é? Aproveite esse comportamento leitor para estimular as crianças a escrever pequenas recomendações literárias aos colegas de outras turmas. Essa troca pode contribuir para a construção de uma comunidade de leitores na escola. 

Esta reportagem faz parte do nosso Especial Alfabetização. Acesse aqui e leia todos os conteúdos! 

Consultoria pedagógica: Mazé Nóbrega, consultora de Língua Portuguesa e professora da pós-graduação no Instituto Vera Cruz, em São Paulo (SP)

Veja mais sobre

Últimas notícias