Compartilhe:

Jornalismo

Visibilidade Trans: “Graças aos meus alunos, eu renasci para o mundo”

Professora conta sua trajetória e reflete sobre a importância da Educação para combater a discriminação e estimular o respeito às diferenças

PorHelena Meireles

26/01/2023

RELATO DE EXPERIÊNCIA: A professora Helena Meireles compartilha sua jornada enquanto pessoa trans na Educação. Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

“Pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, intersexo e não binárias, vocês existem e são valiosas para nós! Com esse compromisso, quero ser ministro de um país que põe a vida e a dignidade em primeiro lugar.” Essas foram algumas das palavras do ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, em seu primeiro discurso público, em 3 de janeiro de 2023. Segundo ele, palavras óbvias. O excelentíssimo ministro fez questão de reafirmar a ação enquanto alguém que compõe um coletivo governamental impulsionado pela esperança do povo brasileiro para uma nova possibilidade de nação, mais justa, plural, diversa e inclusiva, em oposição ao cenário dos últimos anos. 

Para parte da população, a LGBTQIAPN+ (veja glossário mais adiante neste texto), marcada pela violência, pela invisibilidade e pela precariedade de políticas públicas que garantam o mínimo de dignidade, foi uma fala necessária, pois é uma comunidade que ainda busca espaço em uma sociedade alicerçada pelo mito da democracia racial, social e de gênero, acompanhada de uma forte ideologia cristã e moral, herança do processo colonial e escravagista. Uma realidade em que há a omissão do Estado em relação às existências trans/travestis, tornando insustentável a inserção e o acesso dessa população aos contextos social, educacional, cultural e econômico. Vale lembrar que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans, negando, direta ou indiretamente, a sua cidadania.

É sob essa perspectiva que aceitei o convite da NOVA ESCOLA para compartilhar minhas reflexões sobre a presença e os desafios de corpos transexuais no espaço da Educação, bem como suas inserções mínimas nas diferentes camadas da população brasileira. E chamar a atenção para como essas identidades (sobre)vivem (a)o cotidiano de um espaço conservador, na medida em que expõem a imagem de um território que aceita a multiplicidade humana. Por fim, pensar na realidade e na situação do T da comunidade LGBTQIAPN+ em nosso país, no que se refere à acessibilidade ao ambiente escolar – um dos primeiros lugares onde, muitas vezes, sequer conseguem permanecer.

Assim, vou contar um pouco da minha experiência como professora trans, uma trajetória que considero vitoriosa e a qual gostaria que fosse a realidade da maior parte da minha comunidade. Em abril de 2023, vou completar 21 anos de magistério, que me possibilitaram um lugar de fala importante, com tantas histórias à frente das turmas que tive. Mas isso também me faz lembrar da minha vivência escolar como uma criança trans e, consequentemente, a educadora trans que me tornei. Hoje, carrego com muito orgulho essa experiência de vida. Mas nem sempre foi assim. 

A representatividade de um novo nome

Naquela manhã de 2011, lembro de já acordar cansada. Era sexta-feira, e o dia seria longo. 55 horas semanais dentro de uma escola não era para qualquer um, isso sem contar as horas extras “doadas” ao Estado e o trabalho em casa, que sempre me acompanhava. 

A transição, naquela época, já vinha acontecendo lentamente. A ingestão hormonal sem acompanhamento médico era um caminho que muitas mulheres trans/travestis tomavam. E acredito que, infelizmente, ainda hoje aconteça. Eu já fazia uso de medicamentos, havia alguns meses, que modificavam meu corpo, mas eu tinha muito medo da reação das pessoas, no ambiente de trabalho, caso percebessem que o meu quadril estava mais largo e eu estava com seios. Por isso, apresentar-me diante de um grupo de alunos, crianças ou adolescentes acabava sendo um desafio e uma situação desconfortante. Eu usava uma faixa que comprimia a região do tórax, ainda que já estivesse com unhas e cabelos compridos. 

Já tinha passado metade da aula, e eu escrevia incessantemente no quadro. Devido à chuva, fui obrigada a mudar o combinado que tinha feito com a turma, de ir para o pátio. Havia poucos alunos em sala, e eu escutei a seguinte conversa: “Cara, eu ia chamar o ‘Sor’, mas percebi que não tem mais como chamar de ‘Sor’! Ele nem de longe parece homem [risos].”, disse Rodrigo*, como quem observava com estranhamento. “Galera, vamos fazer um concurso para achar um novo nome para o ‘Sor’ Heleno?”, sugeriu Henrique. 

Naquele momento, internamente, fiquei paralisada. Logo eu, que pensava estar tomando as devidas precauções para não chamar a atenção de ninguém. Mas eu tinha me tornado o assunto da aula. Porém, algo me dizia que eu não deveria cercear aquele diálogo. Era uma das turmas de Ensino Médio mais difíceis da escola, mas também a turma, entre as cinco que eu tinha, com a qual eu mais tinha construído uma relação de afinidade. Em sua maioria, eram meninos que carregavam o estereótipo de bagunceiros e problemáticos. Por isso achei aquele momento tão importante. Era o reflexo do laço que construí com eles e o que sempre entendi ser essencial para uma boa aula: a construção do afeto.

Então, continuei a escrever no quadro e a conversa seguiu, agora já com a maior parte da turma envolvida. Após concordarem em peso com a ideia do Henrique, passaram a sugerir os mais variados nomes. Até que, entre Vanessas, Micheles e Anas, um deles gritou: “Meu, parem com essa besteira de inventar nomes para o ‘Sor’! É só puxar uma perninha no ‘o’ que está resolvido!”. E foi naquele momento, após a maior parte concordar, que um outro aluno resolveu me incluir na conversa: “‘Sor’, a gente pode começar a te chamar de ‘Sora’ Helena?” 

Frente àquela situação, fiquei surpresa, mas respondi que sim. No processo conturbado da transição, o nome era o que menos importava para mim. A partir daquele dia, em meio a momentos de tirar dúvidas em aula ou mesmo diante da agitação do recreio, o que eu mais gostava de escutar era meu novo nome pronunciado por eles. 

Uma semana depois, na primeira consulta ao Hospital de Clínicas** para dar início ao acompanhamento médico, foi o nome que falei. Após o psicólogo ter me explicado o que era um nome social, aquele 21 de abril de 2011 foi o dia em que eu renasci para o mundo. A partir daquele momento, graças aos meus alunos, eu abandonava um nome de registro que já não me representava. Ao ser questionada, eu respondia: “Meu nome é Helena”.

Glossário
Entenda os conceitos usados neste texto

LGBTQIAPN+: sigla para designar pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais, pan/polissexuais e não binárias. A comunidade cada vez mais se amplia ao passo que novas identidades ganham destaque. Por isso, optou-se nos últimos anos por incluir o + para abranger a todos.

Cisgênero: pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuido ao nascer, ou seja, seu sexo biológico. Ela pode ser uma mulher ou um homem cis.

Transgênero: não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído. Dentro dessa categoria, estão aquelas que se identificam como mulheres ou homens trans e as travestis (sempre mulheres).

Não binária: identifica-se com mais de um gênero. Geralmente, entendem sua identidade como algo fluido, que vai além das categorias homem e mulher.

Heteronormativo: padrão que considera apenas um jeito de existir: heterossexual e cisgênero.

Veja também

Ambiente escolar e desconstrução de estereótipos

INCLUSÃO: Em 2011, a professora já estava em sala de aula quando viveu o início do processo de transição. Ela relata sua luta para começar a ser chamada pelo seu nome social na escola. Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

Outra lembrança relacionada à minha experiência de professora trans é a de um aluno da Educação Infantil, o Pedro*. Durante as atividades, ele sempre dava um jeitinho de se aproximar de mim e fazer as atividades junto à minha mesa. Entre um rabisco e outro, ele fazia questão de dizer o quanto eu era bonita, com especial destaque para as minhas unhas. Até o dia em que ele chegou em sala triste e não se aproximou de mim. Eu achei estranho aquele comportamento e descobri que, em casa, ao dizer para a família que queria ter unhas como as da professora, o pai cortou as unhas dele. Detalhe: machucou as mãos do menino, pois as unhas tinham ficado muito curtas! Uma tristeza. 

 Outro momento importante no contexto escolar foi quando o Coletivo Quilombelas – que criei em parceria com outras cinco professoras pretas para a prática da Educação para as Relações Étnico-Raciais na comunidade da Restinga, em Porto Alegre (RS) – desenvolvia ações na escola e três alunos do turno da EJA [Educação de Jovens e Adultos] demonstraram interesse em participar. Porém, esses estudantes – um deles se colocava como gay, outre como não binárie e outra como travesti – estavam com receio de participar do desfile. Depois de uma longa conversa, na qual fiz questão de enfatizar a importância do território da escola como um lugar de protagonismo dos alunos, eles não somente participaram da atividade como se tornaram referência de colaboração para as ações do Coletivo. E, ao final daquele ano letivo, um deles encorajou-se a ir à formatura com um belo vestido longo, vermelho. 

Ao chamar a atenção para a importância de ocuparem o espaço da escola, evoquei os sentimentos de responsabilidade e de pertencimento daqueles jovens. Uma oportunidade de, naquele momento, desconstruir estereótipos e, por meio da presença, combater a discriminação e estimular o respeito às diferenças. Enfim, fazer com que aqueles jovens diversos se sentissem parte do todo escolar. 

Mas nem sempre os resultados foram positivos. No caso de Pedro, uma criança foi alvo das violências que atingem as pessoas destoantes daquilo que é esperado nos padrões de uma sociedade cis-heteronormativa. Felizmente, tive a oportunidade de reencontrar Pedro nos anos seguintes, ainda como professora, e ver que, à medida que crescia, não perdia a doçura, a gentileza e a delicadeza, características marcantes de sua personalidade, mesmo ainda pequeno. 

Lutas e conquistas contínuas de espaços e direitos

LUTA COLETIVA: A educadora criou o @coletivoquilombelas, em parceria com outras professoras, focado em pensar práticas ligadas às relações étnico-raciais. As ações do grupo abriram espaço para construir formas de combater todo tipo de discriminação e estimular o respeito às diferenças na escola. Foto: Daniel Sasso/NOVA ESCOLA

Ao relembrar essas histórias, pego-me refletindo sobre como tem sido a trajetória do meu corpo trans dentro do espaço escolar. A forma como adquiri o nome que carrego relaciono à maneira como se dá a nomeação em algumas comunidades africanas. Dentro de um pressuposto afrocêntrico, destaco a importância da ritualística que aconteceu naquela sala de aula para que eu de fato existisse enquanto ser no espaço escolar. “Em sua essência, o nome, para os africanos, traz a existência, identifica e carrega uma história do porquê (ASANTE, p. 8, 2019)”. Ou ainda, como diz a filósofa Aza Njeri, “O nome é a capa do nosso ser.” 

Ao refletir sobre minhas experiências enquanto um corpo preto e trans, no ambiente escolar e diante das violências cotidianas às quais corpos como o meu e de grande parte da população LGBTQIAP+ estão expostos, concluo que a encruzilhada entre a realidade de mulheres trans, travestis, intersexo e não bináries e o desejo do ministro Silvio Almeida ainda está distante. 

Segundo a Rede Trans Brasil, que monitora as violações de direitos humanos das pessoas trans no país, foram detectados como espaços mais hostis para a comunidade trans/travesti, em 2022, o banheiro e a escola. Contudo, é por meio dos passos já dados muito antes que esses mesmos corpos podem estar cada vez mais organizados, lutando e conquistando espaços, direitos e políticas públicas. Afinal, a encruzilhada nunca foi um lugar ruim. A encruzilhada é lugar de esperança e de aprendizados. A encruzilhada é lugar de possibilidades. 

Um dos meus nomes é Helena. E digo isso pois, antes de qualquer adjetivo que o Ocidente (e toda a sua colonialidade) usa para me (des)qualificar, sou um corpo preto que, há alguns anos, vem buscando o suleamento [direcionamento do olhar para o Sul, em contraposição ao Norte hegemônico] de possibilidades culturais, políticas e econômicas, a partir de perspectivas mais africanamente clássicas. Sendo assim, também sou a Preta Guardiã, dentro dos coletivos dos quais faço parte. E sou a Ominaré, meu Orukó (nome) a partir da vivência no Terreiro. Enfim, sou o que minha capacidade de autonomeação quiser. 


Helena Meireles é arte-educadora na rede municipal de Porto Alegre (RS) desde 2011 e mestranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Faced-UFRGS). A partir de fevereiro de 2023, será assessora de Educação de Direitos Humanos (EDH) e de Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre.

Referências

O livro dos nomes africanos, de Molefi Kete Asante (Afrocentricidade Internacional Brasil);

Somos sóis vivos, com Aza Njeri. TEDxBlumenau, disponível no YouTube.

* Os acontecimentos narrados são reais e aconteceram comigo, porém os nomes dos envolvidos são fictícios. 

** Nessa mesma instituição, fiz todo o processo de transição, os exames e fui atendida por diversos especialistas até chegar à cirurgia de redesignação sexual em outubro de 2013. 

Veja mais sobre

Últimas notícias