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Jornalismo

José Pacheco: criador da Escola da Ponte reflete sobre como ressignificar a escola

Em entrevista exclusiva à NOVA ESCOLA, ele fala dos modelos educacionais e das mudanças necessárias para criar um novo contexto educacional, que permita produzir conhecimento e transformar saberes em práticas

PorLisandra Matias

19/01/2023

Foto: Divulgação

Era o início da década de 1970 quando o jovem professor português José Pacheco percebeu que, dando aulas, ele não ensinava as pessoas. Surgia então a Escola da Ponte, de 1976, que fez a transição do paradigma da instrução, em que o centro da aprendizagem é o professor, para o paradigma da aprendizagem, em que o centro é o aluno. Mas, recentemente, diz ele, instalou-se uma nova crise, quando se deu conta que o centro não é o estudante, mas “um triângulo entre um educador, um aprendiz e a condição que eles estabelecem, o vínculo que eles criam para a aprendizagem ser significativa”. É o que chama de paradigma da comunicação. 

Nesse contexto, José Pacheco fala sobre como seu novo projeto em São Paulo, a Open Learning School, que vai colher os ensinamentos da Escola da Ponte, da Escola Aberta de São Paulo e do Projeto Âncora, pretende caminhar rumo a uma nova constituição social de aprendizagem e inovação. Ela inclui, entre outros fatores, desafiar os alunos a gerirem aspectos da sua vida, espaços e tempo, trabalhar colaborativamente, saber escutar, argumentar, pesquisar, comparar e analisar. E, mais do que levar a família e a comunidade para a escola, trabalhar e criar com elas. “É nisso que eu aposto nesse momento”, afirma. 

Para o educador, os projetos que acompanha, e que seguem esses outros modelos, não sofreram os impactos da suspensão das aulas presenciais durante a pandemia e, por isso, não estão trabalhando na lógica da recomposição de aprendizagens. Por isso, fomos entender o que outras escolas podem aprender com essas experiências como forma de repensar o papel das instituições. Acompanhe a seguir os principais momentos da entrevista.

NOVA ESCOLA: Da sua experiência como educador, quais aspectos foram decisivos para a criação da Ponte e, posteriormente, das outras escolas?

JOSÉ PACHECO: Eu me tornei professor vindo da Engenharia. [De certa forma], eu tive a sorte de não cursar Pedagogia porque pude aplicar um pouco daquilo que as exatas nos proporcionam, que é o rigor [metodológico]. No início da década de 1970, comecei a dar minhas aulas e instalou-se uma primeira crise profissional, quando compreendi que dando aulas eu não ensinava. Enfrentei essa crise usando o que alguns dos maiores nomes da Educação propunham, como Maria Montessori, Rudolf Steiner, Célestin Freinet, John Dewey, [William Heard] Kilpatrick, [JeanPiaget, Henri Wallon e [Lev] Vygotsky. Então fiquei tranquilo e continuei meu trabalho trazendo para a sala de aula essas estratégias, técnicas e recursos. Mas, em 1976, eu compreendi que continuava havendo alunos que não aprendiam, [e foi quando criei a Escola Ponte]. 

A Escola da Ponte fez a transição do paradigma da instrução [em que o centro da aprendizagem é o professor] para o paradigma da aprendizagem [em que o centro é o aluno]. Ela foi a primeira escola de Ensino Fundamental do mundo a fazer isso. Mas, ainda hoje, a grande maioria das escolas trabalha com o centro [da Educação] sendo o professor, como na época da primeira Revolução Industrial. Mas nós estamos no século 21, não podemos mais trabalhar como no século 19. 

Como o paradigma que orienta a Escola da Ponte foi capaz de captar todos os avanços pedagógicos do seu tempo?

A Ponte já tinha o centro no aluno, pois é ele que desenvolve os projetos, pesquisa, apresenta e evidencia a aprendizagem. Ainda que tenha feito essa transição, essa ruptura, a Ponte continuava no século 19. Então aconteceu recentemente a terceira crise, quando percebi que o centro não é o aluno. 

Compreendi que a nova educação teria de ser, não a criação de ações dentro de um sistema de ensino, mas uma nova constituição social de identidade das pessoas. O institucionalismo vai continuar, a aula vai existir sempre, mas não na sala de aula. É aí que está a diferença. As escolas são pessoas, não são prédios. Quando são prédios, vem uma pandemia e as consequências estão aí. 

Então, o centro não é o aluno. É um triângulo entre um educador, um aprendiz e a condição que eles estabelecem, o vínculo que eles criam para a aprendizagem ser significativa. 

A Open Learning School já estaria dentro desse novo modelo educacional?

Vai partir daquilo que nós somos e daquilo que sabemos fazer. Ela colhe os ensinamentos da Escola da Ponte, da Escola Aberta de São Paulo e do Projeto Âncora e já está no caminho para uma nova constituição social. 

Quando um professor nos pergunta como é que vamos, por exemplo, criar círculos de aprendizagem – pois isso não está nos livros, é um conceito na prática –, [eu respondo que] “é dando aula; é o que você sabe fazer, e você é competente dando aula”. 

Tenho de valorizar as competências deles [dos educadores] e lhes dar segurança. E ainda trazer um misto de institucionalismo. É preciso não jogar a criança fora com a água do banho. 

Quais as premissas desse novo projeto?

Há um ano decidi me lançar nesse projeto, no qual vai funcionar o protótipo de uma nova constituição social de aprendizagem de inovação em Educação. Vai juntar famílias, sociedade e escola; poder público, universidade e escola; Educação, cultura e saúde pública. Vai sintetizar aquilo que o Brasil é hoje: uma cultura pré-colombiana fantástica, que são as comunidades indígenas que nos dão lições de Educação. Depois, tem as contribuições dos quilombos que trazem o velho provérbio africano que diz que é preciso uma tribo inteira para educar uma criança – e cá estamos nós, tentando. 

Temos ainda o caldo cultural da mistura de portugueses, alemães, espanhóis, italianos, japoneses e árabes, o que cria um campo de criatividade extraordinário. Aparecem também as tecnologias digitais. 

E, finalmente, no Brasil, temos a quarta contribuição: um lugar onde se constrói os roteiros de estudo, um currículo de atividades, como se produz evidências de aprendizagem, como se elabora projetos de vida. É um espaço aberto a quem quiser realmente melhorar a vida das escolas e dar o direito à Educação. 

As escolas brasileiras sofreram muito com a pandemia. Quais aprendizados elas podem tirar desse período e como se reerguer no pós-pandemia?

Há alguns grandes obstáculos para que se faça a escola de que nós precisamos. O primeiro obstáculo é a cultura tradicional, portanto, vai ser preciso que a formação do professor se transforme. Depois, temos outros grandes obstáculos, por exemplo, a sociedade que acredita que a escola deve ser onde se aplica a norma. 

Tem de haver também uma nova regulamentação [da lei], que é de natureza institucionalista, técnico-instrumental e burocrática. As escolas têm de ter autonomia efetiva e estabilidade das equipes. Se isso acontecer, nós podemos enfrentar outras pandemias, que virão certamente, sem prejuízo para a aprendizagem. O currículo tem de ser alterado profundamente, o professor tem de passar a construir projetos com os colegas – não em sala de aula, mas em espaços de aprendizagem variados. É possível aprender dentro da escola, na natureza, na internet, na praça, na biblioteca, no centro cultural – os espaços são múltiplos. 

Foto: Divulgação

A transição para esse outro modelo exige também uma mudança na postura do professor. O que avalia que os educadores devem alterar em sua prática docente?

O planejamento deve deixar de ser de uma aula [um conteúdo curricular], para passar a ensinar o outro a planejar seu projeto de vida. Isso significa ensinar o outro a gerir sua vida, os espaços e o tempo, trabalhar com outras pessoas, saber escutar, argumentar, transformar e colaborar. Também é importante ensinar a pesquisar, comparar, sintetizar, analisar etc. Trata-se de produzir conhecimento e transformar esse saber em prática. 

O saber é relacional [necessita de uma relação entre professor e aluno], o professor transmite aquilo que ele é também. Eu não posso estar na sala de aula com um aluno que é totalmente anônimo [desconhecido], pois o aprendizado não acontece – e os testes e as provas são exemplo disso. 

Se você fizer uma prova sobre raiz quadrada agora, daqui a um ano, você pode fazer a mesma prova e já não lembrar mais de nada. Essa avaliação excludente tem de se tornar contínua, avaliativa e sistemática. Quando uma escola atinge 8 ou 9 no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], isso pode estar apenas medindo a “decoreba”, algo de curto prazo, que o aluno aplica em uma prova e depois esquece. Quando isso acontece é um desperdício de tempo, é uma ilusão de que se aprende. O que tem de acontecer é a produção de conhecimento a partir de projetos. 

Tem de haver uma mudança profunda para que as coisas aconteçam. Eu sou professor de chão de escola, e aquilo que vejo há 50 anos é a sofisticação do discurso, mas as práticas continuaram as mesmas, com alguns novos enfeites que pouco ou nada adiantam.

Essa Educação que o senhor propõe para o século 21 exige muitas mudanças. Como vê a transição para uma escola que faça sentido, que se aproxime do modelo da Escola da Ponte, em que a aprendizagem não está apenas na sala de aula?

Talvez isso seja possível fugindo da escola instrucionista, com sala de aula, por exemplo, e seguindo um caminho paralelo. Então, o que é preciso fazer? Manifestar disponibilidade para o diálogo é a primeira ação. Depois, exigir condições, estabilidade e autonomia. Autonomia é responsabilidade social, não é “oba oba”, “vamos ver o que nós faremos” ou “a criança faz o que quer” – não é isso; é saber o que se faz. 

Este ano, devemos ter no Brasil mais de cem secretarias de Educação com protótipos de redes de comunidades de aprendizagem. Se pensarmos que, até 2030, 800 milhões de empregos serão eliminados, nós não podemos mais ficar no discurso de buscar o empreendedorismo ou reinventar o homeschooling. Teremos de virar aprendizes, ou seja, teremos de ser designers de nós mesmos para enfrentar uma diversidade de opções. E o que a escola está fazendo hoje? Está preparando os alunos para profissões atuais. 

Como essa parceria está sendo pensada e como será a adaptação para as muitas realidades das escolas públicas que temos no país?

Há uma série de princípios que tivemos de estabelecer e estamos praticando, porque todo trabalho começa com a definição de valores. As escolas são pessoas, as pessoas são seus valores, e os valores refletem uma determinada visão de mundo e implicam em uma mudança na práxis. Depois, esses valores vão gerar princípios de ação. Esses conduzem aos sucessos formativos coletivos, solidários, porque há um grande diálogo e participação. E, como Ramón Flecha diz, é uma questão de tempo, de persistência e de muita humildade para entender a realidade.   

Como engajar as famílias, que têm diferentes realidades, para participarem da vida escolar de seus filhos?

Não há dois projetos iguais, evidentemente, pois eles têm de estar integrados ao contexto social, político e educacional. A Open Learning vai, como a Escola Aberta de São Paulo e outras escolas que eu acompanho, concretizar aquilo que está na Constituição, que a Educação é um dever da família, da sociedade e do Estado – um não pode prescindir dos outros. 

O que quero dizer com isso? Quando uma escola se lamenta de uma difícil relação com a família, deve-se lembrar que os pais querem o melhor para seus filhos, assim como a escola também quer o melhor para seus alunos. É necessário perceber qual a função de cada um. E, depois, deixar de fazer visitas à comunidade, porque ninguém visita a sua [própria] casa. Uma escola não visita a comunidade, uma escola é da comunidade, faz parte da comunidade. 

As famílias, a escola e a comunidade têm de estar juntas, e hoje isso não acontece. Não se trata de levar a comunidade para a escola, trata-se de juntar, unir. Trata-se de criar uma nova relação e um novo contexto de aprendizagem. É nisso que eu aposto neste momento.

Entrevista: Paula Salas 
Transcrição e edição: Lisandra Matias

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