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Recomposição de aprendizagens: como fazer o planejamento e o acompanhamento em Matemática

Trabalho com o componente curricular, cujas defasagens avançaram durante o ensino remoto, deve ser apoiado em avaliações diagnósticas e processuais e dialogar com situações-problema do cotidiano

PorNairim Bernardo

25/04/2022

O professor Alex Lopes de Sousa, que leciona no 4º ano da Escola Municipal Professora Vicência Conceição, em Cabo de Santo Agostinho (PE), usa materiais concretos para apoiar o ensino da Matemática e engajar os alunos. Crédito: Marlon Diego/Nova Escola

“Quando comecei as aulas do 4º ano em 2022, algumas crianças não sabiam nem armar uma conta de adição. Muitas chegaram ainda precisando desenvolver habilidades do 3º ou mesmo do 2º ano. Às vezes, minha vontade é de prosseguir rápido porque tenho uma série de habilidades do 4º ano para desenvolver, mas sei que não dá para ser assim. Não adianta empurrar várias atividades que meu aluno não vai dar conta de fazer”, diz Alex Lopes de Sousa, professor na Escola Municipal Professora Vicência Conceição, em Cabo de Santo Agostinho (PE), e na Escola Municipal Divina Providência, em Jaboatão dos Guararapes (PE).

A realidade e os desafios encontrados por Alex são similares aos de muitos outros professores do 3º, 4º ou 5º ano. Em 2022, eles se depararam com alunos que vivenciaram boa parte dos primeiros anos do Ensino Fundamental a distância, em função da pandemia, e tiveram dificuldade para desenvolver conhecimentos e realizar atividades de Matemática.

O componente curricular é conhecido (e temido) por supostamente ser mais difícil do que outros, percepção que o ensino remoto pode ter intensificado nos estudantes e que a formação dos professores ainda não superou.  

Segundo dados de 2019 do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) organizados pelo QEdu, apenas 57% dos alunos no 5º ano estavam com o aprendizado adequado em Língua Portuguesa, nas escolas públicas brasileiras. Já em Matemática, essa proporção era ainda menor: apenas 47%, indicando nível de aprendizado básico e necessidade de atividades de apoio pedagógico. No 9º ano e no 3º ano do Ensino Médio, a distorção entre os componentes continua. 

De acordo com Cristiane Chica, diretora de educação do Mathema, grupo que pesquisa e desenvolve soluções educacionais para o ensino de Matemática, enquanto a alfabetização oferece a vantagem de cotidianamente o aluno estar em contato com a Língua Portuguesa, a Matemática, apesar de estar relacionada a muitos aspectos do dia a dia, é mais discutida na escola.

“Em casa, não se fala de minuendo, subtraendo, resto, cubos. O estudante não usa o vocabulário, os termos e os conceitos matemáticos na vida cotidiana com os familiares. Colocar os alunos para pensar e escrever matematicamente é tarefa do professor e, se ele não a cumprir, os estudantes não terão muitas outras oportunidades.” 

Tarefa urgente

Após o biênio pandêmico (2020-2021), muitas escolas e redes estão observando as carências dos alunos dos Anos Iniciais em relação à alfabetização, que mobiliza habilidades basilares para o desenvolvimento do cidadão e do estudante. Há de fato necessidade de focar na recomposição de aprendizagens em Língua Portuguesa.

Mas isso não pode significar deixar a Matemática de lado. É preciso investir muito nesse componente para que as distorções, que já são um fato, não aumentem ainda mais. “Um grande desafio agora é os professores encararem o trabalho com Matemática como prioritário também”, afirma Christiane. 

“Na prática, é possível relacionar esse componente com Língua Portuguesa por meio do trabalho com textos instrucionais de jogos matemáticos e parlendas com números”, comenta Cristiane. Segundo ela, para que isso aconteça, as redes também precisam investir em formações específicas, uma vez que os professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental têm, em geral, licenciatura em Pedagogia e não em Matemática.

“Muitas vezes, os professores carecem de conhecimento pedagógico e dos conceitos de Matemática para saber quais relações podem estabelecer para garantir e otimizar a aprendizagem. Por exemplo, as unidades de medida são conceitos propícios para também trabalhar frações.” 

Alex conta que as duas redes em que trabalha têm se preocupado muito mais com a questão da alfabetização do que com a Matemática – e essa situação não é de hoje. “Eu questiono a Secretaria sobre as formações na área de Matemática, e me avisaram que estão sendo planejadas. Isso me deixa muito feliz, pois sinto que preciso delas.”

O que e como ensinar

O ensino remoto aconteceu de modo diferente em cada rede e escola e até mesmo para cada estudante. Enquanto algumas crianças conseguiram acompanhar encontros virtuais síncronos com os professores, outras tiveram acesso apenas a aulas transmitidas por canais de televisão para toda a rede, e outras, ainda, mal conseguiram realizar as atividades impressas enviadas para casa.

Assim, para que a recomposição de aprendizagens seja efetiva, é essencial realizar avaliações diagnósticas e estar preparado para readaptar o planejamento.

“A priorização de habilidades deve ser revista no sentido de elencar quais delas dão maior possibilidade de encadeamentos. Os educadores devem se perguntar o que serve como gancho e abre o leque para outras habilidades”, diz Rita Batista, gerente de ensino em Cabo de Santo Agostinho (PE) e doutora em Educação Matemática. “Além disso, não dá para priorizar só uma unidade temática da Matemática, pois todas são muito importantes. É preciso olhar o que é essencial em cada uma.”

Folhetos de supermercado, com os preços dos produtos, estão entre os materiais utilizados pelo professor Alex Lopes de Sousa para mostrar que a Matemática está presente no cotidiano. Crédito: Marlon Diego/Nova Escola

Cristiane alerta que os professores do 4º e 5º ano precisam ter cuidado para não focarem só no pensar numérico. “O pensar geométrico também é muito importante, pois organiza a arquitetura, a arte e o espaço em que vivemos. Classificar é uma operação de pensamento essencial, o pensar métrico desenvolve números e medidas ao mesmo tempo, e os dados possibilitam o trabalho com estatística e probabilidade”, destaca.

“Aprende-se estabelecendo relações, não na habilidade pura. Se o professor não entende isso, isola os conhecimentos e pensa que as crianças não sabem fazer contas, mas, na verdade, elas não estão sendo estimuladas para isso.”

Ainda de acordo com a especialista, o ensino da Matemática vai muito além de levar os alunos a realizar contas no papel. É essencial ampliar as modalidades de cálculo propondo atividades nas quais eles possam resolver problemas por meio de procedimentos pessoais, uso da calculadora, estimativas e cálculo mental.

A resolução de operações não pode ser abandonada, mas a aprendizagem ganha muito mais significado para as crianças quando esses cálculos aparecem em situações-problema, que devem estar diretamente relacionadas ao cotidiano, a desafios propostos para a turma e a jogos analógicos e digitais. 

“Temos de colocar o aluno para pensar, refletir, levantar hipóteses e propor várias estratégias de solução para um mesmo problema. Ele pode dar uma resposta equivocada, o que é uma oportunidade para colocar outros estudantes para pensar e discutir junto. O erro é importante para refletir sobre a forma como se pensou e é também um processo avaliativo”, explica Rita.

As mudanças no processo de ensino e aprendizagem da Matemática

A Matemática, assim como a Língua Portuguesa, é uma área que sofreu muitas alterações conceituais nos últimos 20 ou 30 anos. “Chegamos à conclusão de que o ensino tradicional da Matemática é mecânico, em detrimento da compreensão dos conceitos matemáticos e do desenvolvimento do próprio raciocínio lógico-matemático”, afirma Patrícia Barreto, assessora da Educativa Consultoria Pedagógica e consultora pedagógica desta série de reportagens sobre recomposição de aprendizagens.

“Matemática não é memorizar a sequência numérica nem saber armar uma conta, seja ela de qualquer operação. É preciso compreender o conteúdo em questão em situações reais de uso e os princípios e conceitos que estão por trás dessa simbologia para aprender a Matemática.” 

Prova disso, segundo ela, é que os alunos egressos da Educação Básica sofrem nas faculdades de engenharia, pois não sabem pensar matematicamente ou aplicar corretamente uma fórmula, uma vez que as aprenderam mecanicamente, sem entender os conceitos e as aplicações no cotidiano.

“Infelizmente, isso não se ensina na formação inicial dos professores, nos cursos de Pedagogia nem nas licenciaturas de Matemática. Por isso, juntando a pandemia a esse ensino tradicional da escola, se faz urgente uma formação de professores que de fato ajude alunas e alunos a avançar nas suas aprendizagens de Matemática, de Língua Portuguesa e das outras áreas do conhecimento, lembrando que todas elas têm suas especificidades, mas estão interligadas de alguma forma.”

Estratégias matemáticas

Em suas duas turmas, o professor Alex diz ter percebido uma série de dificuldades que geralmente não são comuns aos estudantes do 4º ano, como escrever os numerais por extenso, escrever e representar os numerais ordinais, usar o símbolo monetário, diferenciar unidade, dezena e centena, escrever numerais acima de cem e reconhecer figuras não planas. 

“Sempre retomo conteúdos de anos anteriores para eles praticarem as operações fundamentais [adição, subtração, multiplicação e divisão]. Percebi que alguns já têm esse conhecimento, mas falta um aprofundamento, o que é importante para eles prosseguirem em outras habilidades. Por exemplo, eles sabem somar, mas têm dificuldade em fazer adição com mais de duas parcelas e entender a importância do valor posicional dos algarismos na montagem de uma conta”, ressalta.

Nas aulas de Matemática, os estudantes da Escola Municipal Professora Vicência Conceição, em Cabo de Santo Agostinho (PE), realizam atividades em grupo, em que mobilizam a cooperação e a colaboração. Crédito: Marlon Diego/Nova Escola

Como estratégia, o professor utiliza uma série de materiais concretos para apoiar o ensino e mostrar que a Matemática está presente no cotidiano – por exemplo, tampas de garrafas para as operações, sólidos geométricos prontos e para montar, ábaco, encarte de supermercado para cálculos monetários e instrumentos de medida (régua, trena, copo milimetrado e garrafas PET para estudar volume).

“Eu gosto não só de situações fictícias, mas também de pegar elementos da vida deles e da escola para ensinar Matemática. Recentemente, tivemos eleições de representantes de turma, e guardei os dados para quando estudarmos dados e gráficos. Vamos trabalhar os polígonos, e eles vão comparar com a arquitetura da escola. Também gosto de organizar a sala de uma maneira matemática, com relógio de ponteiro e calendário.”

Alex costuma propor atividades em duplas, momentos em que alunos com mais facilidade ajudam os demais. Ele também pede que os estudantes resolvam problemas no quadro, o que em alguns casos mobiliza a cooperação de toda a turma. 

De olho na transição entre etapas de ensino

Cícero Clácio Santos, professor de Matemática no 5º ano do Colégio Estadual José Inácio de Farias, em Monte Alegre de Sergipe (SE), conta que as avaliações diagnósticas, que foram elaboradas segundo descritores da Prova Brasil, indicam que os alunos permanecem com muitas dificuldades em habilidades que deveriam ter sido desenvolvidas no 3º e no 4º ano.

“Elaboramos com a rede um planejamento prioritário para o primeiro semestre, para repor as aprendizagens do 3º e 4º ano. Aí, no segundo semestre, vamos pegar os conteúdos do 5º ano mesmo.”

No começo de 2022, a Secretaria de Educação enviou sugestões de habilidades que deveriam ser priorizadas no planejamento, com base nos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica de Sergipe (Saese). Na escola, professores e coordenadores adequam as prioridades à realidade das turmas.

Uma das preocupações do professor é a transição dos alunos dos Anos Iniciais para os Anos Finais do Ensino Fundamental. “Eu sempre me esforço para apresentar os conhecimentos necessários para, quando o professor do ano seguinte expor os conteúdos, eles já terem uma noção. Neste ano está difícil alcançarmos os objetivos, mas estamos tentando.”

Como os estudantes voltaram do ensino remoto muito dispersos, o professor está propondo exercícios que trabalham o foco, com a utilização de jogos. Segundo ele, há jogos digitais muito dinâmicos, que desenvolvem a concentração e habilidades matemáticas. A escola tem um laboratório de informática com um computador para cada dupla de estudantes, e uma plataforma muito utilizada por Cícero é o Wordwall. Quando os alunos têm acesso à internet, também é possível sugerir jogos para serem feitos em casa.

Para ele, que também leciona para o 7º e 9º ano, o diálogo com os professores dos Anos Finais está sendo essencial em 2022 e também será em 2023. Os estudantes estão com muitas dificuldades e não será possível resolver tudo neste ano.

Assim, o trabalho de recomposição de aprendizagens e continuum curricular terá de prosseguir no ano que vem, quando os alunos atualmente matriculados no 5º ano já estiverem no 6º. “Estamos em diálogo constante com os professores das séries seguintes. Para ajudar, até o professor de Geografia está trabalhando alfabetização matemática por meio da cartografia. O docente de Matemática sempre teve um trabalho mais solitário, mas agora todos precisam agir juntos”, salienta Cícero. 

Patrícia lembra que os conteúdos são mesmo interdisciplinares, ou seja, não pertencem apenas a uma determinada área de conhecimento. “A Geografia usa a Matemática assim como utiliza a Língua Portuguesa”, exemplifica.

Avaliar continuamente para ensinar e aprender melhor

Como em todos os componentes curriculares e em todas as etapas de ensino, o professor de Matemática precisa considerar a importância de realizar avaliações formativas ou processuais. Ou seja, a avaliação que não se resume a uma prova ou um momento específico, mas que seja constante e considere diferentes instrumentos. 

Rita Batista comenta que, na cidade de Cabo de Santo Agostinho, a recomendação é que os professores não se preocupem com as notas dos alunos, mas com o desenvolvimento processual das habilidades. Há uma ficha de habilidades prioritárias (veja um exemplo aqui), e o professor preenche em quais delas os estudantes estão ou não avançando.

“A maioria das pessoas pensa em nota, em aprovação e reprovação, mas não queremos que a avaliação seja engessada em um único momento. Temos incentivado o planejamento de boas atividades avaliativas porque o princípio de equidade pressupõe que alguns alunos vão te dar uma resposta com um instrumento e outros, com outro. Temos de dar oportunidades para ver o pensamento matemático de cada um.”

Jussara Cristina Vandalen Schmitz, professora do 4º ano na Escola de Educação Básica Frei Godofredo, em Gaspar (SC), foi uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 de 2019, com o projeto “Costurando a Matemática”.

Ela conta que, por meio de avaliações, pôde observar que os alunos não só deixaram de desenvolver habilidades como regrediram em algumas por falta de prática. “Eles já tiveram contato com as quatro operações, mas agora poucos se lembram da divisão. No ano anterior, foi dada prioridade para a alfabetização. Se a Matemática antes já era abstrata, agora ficou ainda mais.”

A especialista Patrícia Barreto aponta que um conhecimento significativamente aprendido não regride. “Quando um aluno deixa de executar uma atividade realizada há dois anos é porque [o conhecimento] foi memorizado e não aprendido de fato.”

Devido às necessidades e dificuldades específicas do ensino remoto, em 2021, a rede deixou de atribuir notas na avaliação das crianças, o que de início preocupou a professora Jussara, que pensou que seria cobrada pelos pais em relação a isso.

“Temos uma tabela para ver no que cada criança avançou. É tudo descrito para as famílias, mas não de forma numérica. Fazemos devolutivas relatando o que a criança conseguiu, o que ainda precisa alcançar e quais habilidades foram trabalhadas naquele trimestre”, diz.

Como o formato tem funcionado bem, ela acredita que ele poderá ser adotado a longo prazo. “No começo, fiquei um pouco angustiada, mas o retorno das famílias foi bom. Elas disseram que o importante é o que a criança aprendeu, não a nota.”

Consultoria pedagógica: Patrícia Barreto, professora, formadora e assessora pedagógica na Educativa Consultoria Pedagógica.

Esta reportagem faz parte do projeto Recomposição de Aprendizagens nos Anos Iniciais do Fundamental. Confira os demais conteúdos realizados em parceria com a Fundação Lemann e o Instituto CSHG.

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