Compartilhe:

Jornalismo

Relações étnico-raciais: como garantir práticas antirracistas nas escolas

Entenda como leis e documentos respaldam o trabalho dos educadores, abrindo caminho para a participação de toda escola e das famílias em práticas antirracistas

PorRachel BoninoNairim Bernardo

21/08/2023

Objetivo da Educação antirracista não é promover discussões e brigas, mas respeitar e valorizar culturas e pessoas em ações cotidianas. Foto: Camilla Portella/NOVA ESCOLA

Este ano, a Lei n. 10.639 completa 20 anos. Ela promoveu mudança na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ao estabelecer a obrigatoriedade do currículo escolar (ou da rede de ensino) incluir temáticas relacionadas às histórias e culturas africanas e afro-brasileiras e firmar o Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro). A legislação foi seguida, em 2008, pela Lei n. 11.645, que institui a obrigatoriedade da inclusão de história e cultura dos povos indígenas no currículo.

Ambos marcos legais determinaram que o trabalho com questões étnico-raciais deve ser realizado durante todo o ano letivo, ou seja, incorporado ao Projeto Político Pedagógico (PPP) de cada escola, de forma a fazer parte dos conteúdos explorados com os estudantes. E mais: ser um tema trabalhado, debatido e refletido por todos –  diretores, coordenadores pedagógicos, professores e funcionários.

Para amparar a aplicação prática da legislação, o governo federal instituiu, em 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com orientações de conteúdos a serem incluídos e as modificações necessárias nos currículos escolares, em todos os níveis e modalidades de ensino. 

Na sequência, foi institucionalizado o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei n. 10639/2003, com definição de seis eixos estratégicos: fortalecimento do marco legal; política de formação para gestores e profissionais de educação; política de material didático e paradidático; gestão democrática e mecanismos de participação social; avaliação e monitoramento; e, por fim, condições institucionais.

Legislação não garante prática no chão da escola

Apesar de tudo isso, de 2003 para cá, mesmo com a obrigatoriedade imposta pela lei e do apoio dos documentos citados, poucas redes de ensino estruturam uma aplicação prática orientada pelas relações étnico-raciais. É o que mostra a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, apresentada em abril deste ano pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra - e Instituto Alana, com apoio da Imaginable Futures, União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). O estudo obteve respostas de 1.187 secretarias municipais (21% de todos os municípios do país).

Mais da metade das secretarias ouvidas (53%) admitiram não realizar ações consistentes e contínuas para a aplicação da lei. A maioria afirma que as escolas da rede incorporaram a temática no PPP, mas 69% declararam que boa parte das escolas realiza atividades apenas em novembro, durante o mês ou na semana do Dia da Consciência Negra. Apenas 5% afirmam ter implementado uma área técnica dedicada à agenda da educação para as relações étnico-raciais e somente 8% têm orçamento específico.

A pesquisa mostrou ainda que os gestores municipais sentem falta de apoio de estados e do governo federal para o cumprimento da lei em ações diretas, como por meio de cooperação técnica e financeira para consolidar um plano perene para todo ano, não só considerando datas comemorativas.

Educação orientada pela equidade

São muitas questões ainda presentes no ambiente escolar quando o tema é Educação para a equidade, a começar pelo fato do  racismo ser um elemento fundante do país. “Ele estrutura nossa sociedade, por isso, muitos assuntos ligados às questões raciais são considerados problema. Tudo ligado ao negro é visto negativamente. Mas a maioria da população é negra e não dá para fugir desse fato nem de certos temas”, diz Fátima Santana, mestra em Ensino das Relações Étnico-raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e coordenadora pedagógica do CMEI Dr. Djalma Ramos, em Lauro de Freitas (BA). Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 56,2% da população brasileira se declara negra (pardos ou pretos).

Atualmente à frente de formação em equidade racial para professores e técnicos da secretaria de educação em Mogi das Cruzes (SP), Monica Couto observa no contato com os educadores, as dificuldades de tratar, debater ou mesmo incluir os temas nos conteúdos. Ela se recorda, por exemplo, de um professor de Artes que se deu conta de que não havia mencionado nenhum nome negro para turma em uma conversa sobre grandes expoentes de dança – mesmo sabendo que existem. 

“Muitas universidades já têm disciplinas sobre relações étnico-raciais na grade, inclusive mencionando as Diretrizes. Há esse aprofundamento, mas a maioria dos professores atuantes foi formada em um mundo em que o racismo era recreativo. Virar essa chave para apoiar uma geração que consiga de fato romper com isso é um grande desafio ”, fala Monica, que também é formadora e mentora da NOVA ESCOLA.

Durante a formação com os educadores de Mogi das Cruzes (SP), são feitas leituras conjuntas dos documentos oficiais de suporte, o que ajuda na compreensão das práticas. Mas os educadores, demonstram limitações anteriores, de acordo com Monica. Têm dificuldades para usar termos adequados, falta repertório para amparar discussões e até mesmo para entender as participações dos colegas nos debates (sendo eles negros ou não) . “Os educadores pensam:  ‘será que tenho direito de fazer essa discussão com os meus estudantes sendo branco?’. Sabemos que sim: todos os educadores podem e devem estimular esse debate”, afirma.

Para Monica, aliás, esse é um debate que precisa estar no dia a dia dos professores que não devem enxergá-lo como mais uma questão ou mais um tema dentro do currículo. É uma prática diária na Educação.

“Na formação em Mogi das Cruzes, chegamos a uma reflexão importante que é a de que fazer uma Educação antirracista significa garantir que todo estudante chegue à escola, entre, tenha sucesso e consiga encerrar o processo e que o educador seja um apoiador na caminhada dele”, conta.

Debates, polêmica e resistência

Assim, é preciso que os estudantes negros sejam respeitados dentro do ambiente escolar e se vejam representados no que estudam. Para os estudantes não-negros as pautas raciais são igualmente importantes. Pois é, a partir do contato com a história do outro, que eles poderão refletir sobre a própria identidade e respeitar as diferenças. 

Por isso, antes de propor determinadas reflexões e conversas em sala de aula, é essencial que o professor tenha em mente que o objetivo da Educação antirracista não é promover discussões e brigas, mas sim respeitar e valorizar a cultura e as pessoas negras em ações cotidianas.

"Não há nada de polêmico e nem de tabu em trabalhar com a temática. São práticas em sala de aula que geram a Educação antirracista, não debates isolados sobre questões específicas”, comenta Priscila Eiras, professora de Língua Portuguesa nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio na rede municipal e estadual do Rio de Janeiro (RJ) e em um cursinho popular pré-vestibular. 

Entretanto, mesmo que não seja a intenção inicial, algumas aulas e situações podem suscitar discussões que o professor não se sinta apto a mediar. “Ouço muitos colegas brancos dizerem que não sabem trabalhar certas questões, mas, assim como nós, negros, temos que nos capacitar para isso, todo educador tem que ir em busca dessas informações e formações. Cabe aos professores negros e brancos promover uma Educação antirracista”, diz Priscila.

E se alguns assuntos forem questionados pelas famílias?

Além de destacar a importância da temática que abordamos anteriormente, confira sugestões de como agir se os responsáveis questionem o trabalho com questões consideradas polêmicas

Por que os conflitos entre escola e família ocorrem?

As gerações mais velhas viveram em um tempo e passaram por uma escolarização que não valorizou a diversidade — diferente dos mais novos que já estão imersos e cresceram em um mundo que se preocupa com essas questões. Utilizando pesquisas, dados, leis e apresentando os motivos que embasam a prática pedagógica é possível fazer um trabalho formativo com as famílias.

Como explicar a imoprtância de trabalhar determinados temas?

O processo de apagamento histórico fez com que narrativas, culturas e pessoas negras fossem esquecidas, retratadas de modo secundário ou negativo. Além de conversar sobre a importância de uma Educação que apresente referências afro-brasileiras e africanas, é importante incluir esses pontos no Projeto Político-Pedagógico (PPP), no currículo e localizar os trechos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que se relacionem com a temática — saiba mais sobre o papel da gestão escolar nesse trabalho. A gestão e os professores podem organizar reuniões para compartilhar esses documentos e apresentar a proposta pedagógica aos familiares dos estudantes.

Como responder aos questionamentos relecionados às religiões africanas?

O objetivo da escola não é desrespeitar a crença religiosa, mas apresentar diferentes cosmovisões, linguagens, saberes, crenças, mitologias e narrativas. A intenção também não é fazer qualquer tipo de iniciação religiosa. A proposta trazida pelos documentos oficiais é a de estudar as manifestações religiosas a partir de pressupostos científicos, filosóficos, estéticos e éticos. Assim como os alunos estudam sobre os deuses gregos, também podem conhecer os orixás e figuras de outras religiões de matriz africana.

A força das ações em rede

Para Alessandra Tavares, coordenadora pedagógica e formadora da Comunidade Educativa CEDAC, documentos como as Diretrizes ou o mesmo o Plano Nacional apresentam pistas sobre como levar o tema para o dia a dia da sala de aula. Mas para ela, antes disso, é preciso dar um passo atrás na discussão. 

“Quando tratamos de uma Educação voltada para o reconhecimento da história dos diferentes povos africanos, afro-brasileiros e indígenas, estamos falando de um grande apagamento. Os profissionais ficam muito inseguros porque esse conteúdo não fez parte da formação inicial deles”, afirma. “O primeiro passo, então, é reconhecer que a escola atuou muitas vezes de modo estigmatizado a desvalorizar e homogeneizar essas identidades e apagar as contribuições, apresentando esses conteúdos de forma eurocêntrica e hegemônica. Na verdade, precisamos falar sobre rever essas práticas.

É ainda por conta da dificuldade em abordar o tema, trazê-lo à tona e trabalhá-lo em classe que muitas iniciativas boas ainda são individualizadas e recaem como tarefa apenas de docentes negros.  “Assim, a escola tem uma sala com determinada atuação e outra, não. Esse é um grande problema, precisamos de atuações em rede”, avalia Alessandra. “Não podemos responsabilizar exclusivamente o professor pelo o compromisso com a equidade. Precisamos de processos que saem da alçada do governo federal, passem por todos os órgãos de tomadas de decisão do executivo estadual e municipal e que envolvam os conselhos de educação até chegar no que cabe da Educação Infantil ao Ensino Médio de cada escola.”

Articulação nacional

Apesar de as discussões sobre equidade terem ganhado mais espaço e visibilidade com as redes sociais e outros meios de comunicação nos últimos anos, as aplicações dentro da educação pouco avançaram nas esferas executivas de poder, especialmente na federal. “Você pode ter um bom arcabouço jurídico, um bom plano de implementação, mas se não tiver coordenação federativa, nada acontece. Não conseguimos avançar para a implementação dos marcos legais porque faltou uma coordenação federativa densa e sólida, que contasse com financiamento”, analisa Zara Figueiredo, secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do Ministério da Educação (MEC). Destituído em 2019, o órgão foi reativado em 2023 .

Zara conta que a Secadi tem atuado para estabelecer metas de equidade para todas as instâncias do MEC e para todos os seus programas e estratégias. Com seis meses de reativação, a Secadi também está redesenhando políticas com foco na população negra e indígena (como as que pregam maior levantamento de dados para esses perfis dentro de todas as instâncias do MEC) e estruturando formações para docentes e gestores voltadas para as relações étnico-raciais. Há também a intenção de incorporar as definições do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares ao Plano Nacional de Educação (PNE), para reforçá-lo como política de Estado e “consolidar a gestão democrática para as relações étnico-raciais na educação nacional”, conta Zara.

Há ainda um movimento para atualizar as Diretrizes Curriculares. “Elas são estruturalmente atuais porque lidam com dimensões essenciais que o tempo não alterou. Mas do ponto de vista da sua tradução em mecanismos, precisam ser atualizadas”, analisa. Em maio de 2023, o MEC reativou a Comissão Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Cadara), que vai concentrar as discussões sobre essas atualizações - tanto das Diretrizes quanto da incorporação do Plano Nacional de Implementação ao PNE. 

“Precisamos de um movimento de gestão, sistema, financiamento e da avaliação de coordenação federativa, porque são esses elementos que estruturam a grande política. A educação antirracista não é questão individual de um professor ou uma questão de conscientização. É questão de política pública, de Estado e que induz comportamentos institucionais que devem ser seguidos”, finaliza Zara.

Não cometa esses erros

Educadoras compartilham três erros que são comuns e devem ser evitados

Responsabilizar professores negros pelas conversas sobre temas raciais

“Os professores brancos ocupam a maioria das vagas nos quadros das escolas — em algumas instituições todas as vagas. O ensino da história e da cultura afro-brasileira é obrigatório e todos os professores são responsáveis por isso”, aponta Fátima. 

Não falar sobre negritude quando há poucos ou nenhum aluno negro

“A Educação decolonial e antirracista não é só para as crianças negras. A escola não existe para bater de frente com crianças ou famílias brancas. Se quisermos formar uma sociedade melhor, o trabalho de conscientização e respeito também precisa ser feito com elas”, diz Cris Coelho, diretora da Escola Afro-brasileira Maria Felipa, em Salvador (BA).

Limitar o trabalho sobre questões raciais a uma ocasião ou data específica

“Para além do 20 de novembro, o acesso a histórias reais do povo negro, e não à história distorcida, é um direito dos nossos alunos negros e não-negros. Isso precisa estar no currículo e em uma prática antirracista que não cabem em um dia ou em um mês”, finaliza Priscila Eiras.

**Conteúdo publicado originalmente em 09/11/2021 e atualizado em 21/08/2023 para o acréscimo de dados de novas pesquisas e de informações após entrevistas com Monica Couto,  Alessandra Tavares e Zara Figueiredo.

continuar lendo

Veja mais sobre

Últimas notícias