Reescrita de textos literários na alfabetização inicial
Catia Eliane Nicolachik investiu em literatura de qualidade e no acompanhamento individual para ampliar a alfabetização das classes
01/02/2012
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Jornalismo
01/02/2012
Eles não são escritores profissionais. Pelo contrário, são iniciantes no mundo das letras. No entanto, reescreveram um clássico da literatura infantil e passaram por algumas das principais etapas de produção de um livro: redação do texto, revisão, ilustração e até uma tarde de autógrafos. O desafio foi proposto pela professora Catia Eliane Nicolachik para as suas duas turmas do 1° ano da EM Ayrton Senna, em Itapoá, a 220 quilômetros de Florianópolis. E, apesar de estarem em processo de alfabetização, os alunos não foram subestimados. No repertório de leitura, nada de livros curtos ou ingênuos: somente literatura de qualidade.
A proposta desenvolvida por Catia tem um bom planejamento e objetivos didáticos claros: desenvolver procedimentos de leitura, escrita e revisão com base nos contos de fadas, especificamente Chapeuzinho Vermelho. Cada turma deveria produzir um livro para a mostra cultural que seria posteriormente doado à biblioteca da escola.
Antes de escolher a história a ser reescrita, os pequenos tiveram contato com versões tradicionais, como a dos irmãos Jakob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) e a de Charles Perrault (1628-1703), e outras contemporâneas, como a de Guimarães Rosa (1908-1967) e a de Chico Buarque de Holanda.
Catia também se apoiou nos contos para levar a classe a refletir sobre o sistema de escrita. Propôs atividades, por exemplo, com o nome dos personagens e o título das histórias. Os alunos puderam escrever da forma que sabiam até então e com isso ela criou as condições ideais para que eles aprendessem.
O avanço das crianças é inegável. Quando o projeto teve início, 30 dos 40 estudantes não eram alfabéticos. No fim do trabalho, que durou quatro meses, apenas 13 ainda não estavam alfabetizados, mas haviam avançado consideravelmente.
Sem medo do Lobo Mau
A empolgação tomou conta da classe quando Catia começou o projeto e contou a história de Chapeuzinho Vermelho. Os alunos demonstraram que já conheciam o conto, mas com algumas variações. Sinalizaram, por exemplo, que em algumas versões não há o personagem caçador, e sim lenhador, e que nem sempre a barriga do lobo é aberta. Mas, quando ela aproveitou a animação e solicitou que eles reescrevessem individualmente a história, muitos acharam a tarefa difícil demais.
Para orientá-los, a professora organizou um reconto coletivo e registrou os principais episódios no quadro. A próxima atividade foi em duplas. Aqueles que ainda não se sentiam à vontade para escrever foram auxiliados por Catia, que assumiu a figura de escriba. Essa primeira parte do processo serviu como um diagnóstico, já que as crianças demonstraram seus conhecimentos em relação ao enredo da história e também em qual hipótese de escrita estavam. Tendo as produções em mãos, ela tabulou os resultados para apontar quais haviam utilizado título, pontuação e espaçamento e conseguido ordenar a sequência de fatos.
Segundo a professora, registrar cada passo do projeto e digitar os textos foram as principais dificuldades e muitas vezes ela precisou levar trabalho para casa. "Nem sempre as horas de atividades extraclasse são suficientes para isso. É difícil conciliar o projeto com o planejamento dos conteúdos que são levados paralelamente", lembra.
A qualidade dos registros feitos ao longo do projeto foi destacada por Denise Guilherme da Silva, selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10. Ela ficou surpresa com o volume de texto que os alunos produziram, mesmo sem saber escrever convencionalmente. "Esse trabalho foi fundamental para a realização do projeto. Isso possibilitou que a professora acompanhasse de perto o desenvolvimento de cada um", comenta.
Do ponto de vista didático, trabalhar com a reescrita de histórias é imprescindível, pois a leitura permite que a turma entre em contato com as características da linguagem que serão necessárias para a produção de texto. "A grande vantagem de aproveitar uma narrativa conhecida, em vez de criar uma, é que as crianças não precisam inventar e podem se concentrar em outros aspectos dessa complexa atividade que é escrever", comenta a argentina Cinthia Kuperman, que atua na equipe de Práticas da Linguagem da Direção de Currículo da Secretaria de Educação de Buenos Aires, na Argentina.
Pequenos leitores, grandes autores
"Se tivesse de eleger o principal critério para escolher os livros que serão trabalhados nas escolas, responderia que são aqueles imprescindíveis, que não caem no esquecimento e permitem aos alunos debater o tema com outros leitores dessas mesmas histórias", recomenda Cinthia. De acordo com ela, uma boa seleção envolve pensar em que leitores se quer formar e no percurso que eles já fizeram em relação à leitura.
Catia segue à risca essa recomendação e o repertório escolhido por ela foi decisivo para que o projeto tivesse êxito. "A professora não nivela por baixo e demonstra que é possível trabalhar uma literatura de qualidade mesmo com os pequenos", reforça Denise. Ao produzirem seus textos, as crianças se apropriaram do vocabulário e de aspectos específicos do universo dos contos. Muitas delas mencionaram, por exemplo, o enorme lobo de olhos brilhantes relatado pelos irmãos Grimm.
Após ter contato com inúmeras versões, os alunos apontaram no quadro os diferentes autores e compararam título, a figura salvadora e o local onde a história ocorre. "Ao analisar Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque, muitos argumentaram que a narrativa ocorre em um apartamento, e não em uma floresta ou um bosque", lembra Catia.
Cada turma escolheu a versão que iria reescrever. A da manhã optou por Chapeuzinho Preto, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. A preferida da classe da tarde foi Uma História Atrapalhada, de Gianni Rodari (36 págs., Ed. Biruta, tel 11/3085-0233, 36 reais). Em um novo momento de reescrita coletiva, nasceram os textos que figuram na versão final do livro, revisados também com o grupo todo.
Antes de encerrar o trabalho sobre Chapeuzinho, houve mais uma atividade em duplas formadas intencionalmente por alunos com hipóteses de escrita semelhantes. Após a produção, Catia inovou na maneira de realizar a revisão do enredo. Digitou cada um dos textos, deixando lacunas para que eles completassem com informações que ficaram de fora. Para realizar a tarefa, foi preciso retomar a leitura e discutir sobre aquilo que estava faltando. Além da revisão do enredo, a turma se debruçou sobre aspectos como a pontuação e a eliminação de palavras repetidas.
Como explica Delia Lerner em Ler e Escrever na Escola: O Real, o Possível e o Necessário (128 págs., Ed. Artmed, tel 0800-7033444, 39 reais), ao aprofundar o aprendizado sobre esse tema, o professor contribui para a formação de escritores "conscientes da pertinência de emitir certo tipo de mensagem em determinado tipo de situação social". Quando se desenvolve a capacidade crítica sobre a produção textual desde os primeiros anos na escola, evita-se um problema que Delia denuncia ainda ser recorrente: os alunos acreditarem que "a escrita foi concluída quando se pôs o primeiro ponto final na primeira versão", ou ainda que compete "a outra pessoa - o professor, não o autor - se encarregar da revisão".
Ler para aprender a desenhar
Antes de chegar a tarde de autógrafos, ainda havia muito a fazer. Era preciso pensar nas ilustrações do livro e, para que os estudantes escolhessem a técnica a ser usada, Catia utilizou a mesma estratégia aplicada aos textos: selecionou um repertório com bons modelos, nos quais eles pudessem se apoiar.
A professora, que é fã de artistas como Ziraldo, levou vários livros infantis (não apenas de contos de fadas) com diferentes técnicas de ilustração, baseadas no uso de massinha, bordado, recorte, colagem e desenho. Essa última foi eleita para ilustrar os dois livros. "O resultado foi muito bom. Os alunos fizeram desenhos ricos em detalhes, com ângulos pouco convencionais, como o lobo de perfil", comenta Denise.
O trabalho de Catia é mais um exemplo do quanto o uso de livros infantis bons e adequados pode fazer a diferença. A jornalista Graça Ramos, mestre em Literatura Brasileira e doutora em História da Arte, explica em A Imagem nos Livros Infantis - Caminhos para Ler o Texto Visual (173 págs., Ed. Autêntica, tel 0800-2831322, 39 reais) que, ao escolher uma obra, o professor deve levar em conta a qualidade, e não a quantidade de ilustrações. Entre as características que a especialista aponta para uma boa ilustração estão as suas diferentes funções, como a de reiterar, contradizer, ampliar ou sugerir aspectos que não estão explícitos no texto. "As imagens podem reafirmar, negar, expandir ou propor uma visualidade nova para o que está dito com as palavras", afirma.
Na avaliação de Rosa Iavelberg, docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10, um bom livro é aquele que articula tanto as competências artísticas quanto as literárias. "Cada linguagem colabora para a construção da narrativa. Ela não é só textual ou falada, mas também visual", defende.
Deve-se fugir de ilustrações que infantilizem os leitores, que se limitem a fazer correspondência com o texto literal, com imagens estereotipadas ou clichês. "Com isso, é possível criar as condições para que o aluno se torne um leitor exigente em relação à articulação do texto e da imagem", pondera Rosa. Catia conta que hoje as crianças sabem valorizar as ilustrações. "Após tantas referências, para eles é importante identificar não só o autor mas também o ilustrador de cada livro", diz a docente.
Produzir uma história do começo ao fim, cumprir várias etapas de revisão e ilustração não é uma tarefa simples para aqueles que estão em processo de alfabetização, mas a professora conseguiu garantir os estímulos necessários para que a tarefa fosse concluída com bastante sucesso. "Saber que o livro seria lido pelos pais e colegas foi fundamental. Eles se empenharam muito. É muito diferente de escrever por escrever", orgulha-se Catia.
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