Como crianças e adolescentes podem compreender o valor do trabalho?
Geografia, Matemática e Educação Financeira se aliam para discutir questões que envolvem renda, desigualdade social e reconhecimento profissional
24/08/2021
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PARCERIA
Jornalismo
24/08/2021
Um dos grandes pilares da Educação Financeira é o entendimento de assuntos relacionados ao trabalho. A entrada de dinheiro, que se efetiva por meio da remuneração, é o pontapé inicial de qualquer orçamento. Especialistas também apontam a importância de crianças e adolescentes compreenderem e respeitarem a atividade profissional de seus pais e responsáveis. “O trabalho é uma extensão da identidade da pessoa, é a forma que ela viabiliza e utiliza seus talentos, se mostra ao outro, contribui com a sociedade e desenvolve o seu senso de realização”, afirma Ana Paula Hornos, autora da coleção “Educação Financeira e Valores”, da Editora FTD.
Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, idade em que assuntos complexos são mais difíceis de compreender, os professores podem relacionar a temática à profissão dos familiares dos alunos. O trabalho pode ser abordado como uma característica do ser humano, explica Sueli Furlan, Professora Doutora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10. “Tudo é trabalho. Há a atividade profissional paga e o trabalho do dia a dia. Uma criança que organiza suas coisas está trabalhando”, afirma. Já nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, diferentes componentes curriculares podem se apropriar do tema de forma mais aprofundada e crítica.
A Geografia é uma das áreas que mais se relaciona com o tema transversal da Educação Financeira, junto com a Matemática. E o trabalho merece ser discutido por todos os professores, não só os de Geografia, por se tratar de uma questão social. Esse movimento fica mais evidente no Ensino Médio com a inserção da escolha profissional no Projeto de Vida e uma análise do mundo do trabalho mais próxima da realidade dos estudantes, mas a temática pode ser construída desde os anos iniciais do Ensino Fundamental.
Para Ana Paula, os mais novos, ao valorizarem o trabalho dos pais, podem ajudar até no orçamento familiar. “A criança deixa de criticar se o pai sai para trabalhar, por exemplo, porque começa a entender que o trabalho é muito valioso.” Também refletem, de maneira básica, sobre o orçamento da casa e o que pedem para comprar. Além disso, se entendem que os familiares estão realizados em seus empregos e que suas atividades impactam a sociedade, as crianças deixam de ver o trabalho com maus olhos.
Foi o que aconteceu no projeto de Jussara Schmitz, vencedora do Prêmio Educador Nota 10 em 2019, abordando justamente o valor do trabalho com alunos do 4º ano da Escola de Educação Básica Frei Godofredo, em Gaspar (SC). Em uma cidade onde a economia é dominada pelas facções (ou oficinas) de costura, a professora levou as crianças para conhecer a rotina das costureiras de perto e entender como a Matemática estava presente no dia a dia delas. Mães, avós e tias foram visitadas pela turma. “Desde o primeiro momento, os alunos sentiram essa valorização e perceberam o quanto esse trabalho é importante não só para seu núcleo familiar, mas também para a comunidade e a cidade”, afirma Jussara.
O objetivo principal da proposta era levar as crianças a compreender como a Matemática estava presente no cotidiano das oficinas. Nesse momento, no entanto, diversos aspectos da Educação Financeira também puderam ser abordados de forma indireta. “Querendo ou não, para a criança de oito ou nove anos, essa relação com dinheiro e salário é um pouco abstrata. Mas, levando em conta a faixa etária dos alunos, eles tiveram até bastante maturidade para entender questões de orçamento e planejamento no trabalho das costureiras”, comenta. Nas visitas, a turma pôde verificar as despesas com materiais como linhas e óleo para as máquinas, quantas peças eram costuradas por hora e o valor recebido por peça, e então calcular o rendimento mensal e o que sobraria para cada costureira. Desse modo, compreenderam o retorno financeiro e também o esforço investido (leia aqui reportagem com mais detalhes do projeto).
O tema do trabalho pode desencadear outros assuntos importantes relacionados à Educação Financeira. No projeto de Jussara, apareceram as questões ambiental e da doação, já que as crianças pegaram retalhos das costureiras para produzir bonequinhas que foram doadas para uma instituição local. “Apareceu um leque de coisas que foram se interligando, e o resultado foi uma Matemática que valorizou a vivência deles”, observa Jussara.
Sueli acredita que a questão ambiental e do desperdício são fortes temas da Educação Financeira ligados ao trabalho e que casam muito bem com os anos iniciais do Ensino Fundamental e até com a Educação Infantil. Ela explica que os pequenos podem aprender sobre a relação entre comida e produtores rurais. Assim, sempre que forem deixar sobras no prato, vão se lembrar que alguém se esforçou para que aquele alimento chegasse até ali.
Educação Financeira: o que ensinar em cada etapa do Ensino Fundamental?
Anos iniciais
• Valor do trabalho: ensinar às crianças a importância do trabalho dos responsáveis;
• Planejamento para poupar: trabalhar a questão dos sonhos e como deve haver planejamento e análise para identificar a melhor maneira de juntar dinheiro para realizá-los;
• Bom uso dos recursos: além do dinheiro, ensinar também o bom uso de recursos como água e energia, abordando o meio ambiente;
• Empreendedorismo: introdução da temática, explicando o que é empreender;
• Atitude consciente: trabalhar exemplos práticos e cotidianos de comportamentos para os quais as crianças podem ficar mais atentas, como os pedidos que fazem aos pais;
• Importância social da doação: o tema deve ser tratado ao longo de todo o ensino de Educação Financeira.
Anos finais
• Orçamento doméstico: além de poupar para si, as crianças já podem começar a entender como funciona o orçamento de toda a família;
• Ética: temas como respeito às leis, respeito ao patrimônio, corrupção e bom uso do dinheiro podem ser abordados;
• Matemática Financeira: conteúdos como juros compostos já podem ser trabalhados com o direcionamento às finanças;
• Comportamento, empreendedorismo e importância social da doação devem continuar sendo abordados, mas agora com exemplos mais maduros e relacionados à faixa etária e ao contexto das crianças e adolescentes.
Fonte: Ana Paula Hornos, autora da coleção “Educação Financeira e Valores”, da Editora FTD.
Nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, o tema do trabalho pode ser aprofundado, discutido criticamente e apresentado em diversos componentes curriculares, sobretudo Geografia e Matemática. Em 2018, uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 foi a professora Ivonete Dezinho, da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Milton Dias Porto, em Naviraí (MS). No projeto que desenvolveu com os alunos do 8º ano, Ivonete buscou desvendar a matemática que existe em cada profissão, e, para isso, os alunos pesquisaram o trabalho de seus familiares.
Assim como Jussara, Ivonete também percebeu que seus alunos passaram a valorizar o trabalho dos pais. “Nós tínhamos 30 alunos e 27 profissões diferentes, e conversamos muito sobre cada uma delas durante rodas de conversa. Eles foram percebendo a importância de todas elas para que a sociedade funcione de forma eficaz”, conta a professora (confira detalhes da proposta aqui).
Sueli ressalta que, com estudantes mais maduros, temas mais complexos, como a dignidade dos diferentes tipos de profissões e como a sociedade as enxerga, podem ser abordados. “Essa aproximação não é feita para apresentar profissões e enaltecer algumas, como médico, dentista, engenheiro e advogado. É para trazer o trabalho como um valor. É muito importante as crianças e os adolescentes saberem que estão vivendo com adultos que trabalham para manter a vida deles e que toda profissão é digna”, orienta.
No projeto de Ivonete, a Matemática se apropriou de temas relacionados ao trabalho e à Educação Financeira. Os alunos analisaram como um pai caminhoneiro calculava seu frete, como uma mãe confeiteira cobrava por seus doces a partir do preço da matéria-prima e do tempo dedicado e como uma avó aposentada dividia seu salário entre as despesas, por exemplo. “Conhecer a profissão dos pais e responsáveis e saber qual a remuneração de cada família fez com que eles refletissem sobre os gastos e a necessidade de pensar no orçamento, na organização e no planejamento”, afirma a professora.
Ivonete conta que não fez parceria com nenhum outro docente para esse projeto, mas que, se o repetisse hoje, pensaria em como o trabalho pode ser abordado em diversos componentes curriculares. Para ela, poderia haver uma exposição de fotos das profissões na aula de Artes, a produção de diversos gêneros textuais com o professor de Língua Portuguesa e a discussão a respeito das lutas trabalhistas em Geografia, por exemplo.
Sueli comenta que essa interdisciplinaridade é muito importante para os alunos e deve ser planejada previamente pelos docentes. Ela orienta que o professor de Geografia pode realizar projetos junto com o de Matemática, mas sem deixar esse segundo “só fazer as contas”. “A linguagem matemática dá muita concretude, a partir da análise de dados, para temas de Geografia como a substituição crescente do trabalho humano pelo tecnológico e o modo como funciona o programa de habitação popular do governo federal, por exemplo”, ressalta ela. “Os professores devem decidir juntos quais são os conteúdos, resultando em boas reflexões didáticas nas quais a linguagem matemática seja tão importante quanto o conteúdo que está sendo trabalhado em Geografia”, completa.
O valor do trabalho em Geografia
Nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, os professores de Geografia podem abordar o tema do trabalho em dois eixos principais. O primeiro deles enfatiza o lado crítico e social; já o segundo, mais prático, pode contar com a parceria de outros componentes curriculares, como História e Biologia.
Assuntos que podem render reflexões a respeito do trabalho:
• Como o trabalho organiza o espaço social;
• O que é salário e como ele surgiu;
• O que é capitalismo e como ele funciona;
• De que forma o trabalho é estruturado hoje, em uma sociedade pautada no capitalismo financeiro;
• Como as lutas trabalhistas influenciaram o entendimento que temos hoje do trabalho.
Temas ligados à Educação Financeira que podem ser abordados em Geografia:
• O que é imposto de renda e como ele se relaciona ao salário;
• Na prática, o que é ser um trabalhador que vive de salário;
• Como funcionam os sistemas de financiamento de imóveis e como eles se relacionam com a vida urbana;
• Como a organização da vida financeira está relacionada ao trabalho;
• De que maneira a questão ambiental se relaciona com o trabalho.
Fonte: Sueli Furlan, Professora Doutora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10.
“Uma boa parte da Geografia vai estudar como o trabalho se organiza, como ele impacta a vida social, econômica e ambiental nas situações geográficas”, diz Sueli. Para a especialista, os professores do componente curricular podem propor reflexões relacionadas à Educação Financeira por meio de dois aspectos principais: primeiro, refletindo sobre a sociedade atual e, depois, aprendendo a lidar com ela.
No primeiro caso, temas como salário, valorização do capital, exploração e lutas trabalhistas podem gerar discussões interessantes sobretudo com estudantes mais velhos, dos últimos anos do Ensino Fundamental ou do Ensino Médio. “Muitas pessoas sofrem achando que o problema do trabalho é dela, porque ela não tem formação e é uma pessoa desqualificada, mas, na verdade, não. Para o sistema capitalista, é necessário que seja assim. Para que alguns sejam muito ricos, outros têm que ser pobres”, exemplifica, acrescentando que essas questões sociais podem gerar um pensamento crítico nos alunos.
Para ela, porém, o professor de Geografia não pode permitir que o tema do trabalho fique só nessas reflexões. “O docente pode ajudar os estudantes a aprenderem a lidar com o mundo do jeito que ele é para sofrerem menos. Educação Financeira não serve só para estudar os bancos; ela serve para estudar a economia doméstica e como a gente lida melhor com o consumo”, diz.
Esses dois aspectos precisam caminhar juntos na Geografia, avalia Sueli. “É preciso entender que a sociedade nos coloca em uma situação subalterna na questão da renda, mas também é necessário saber que usar melhor a renda pode nos tornar pessoas mais felizes, mais bem alimentadas e que aproveitam melhor seus recursos.”
Consultor Pedagógico: Fernando Barnabé, professor de Matemática, integrante do Time de Autores e do Time de Formadores da NOVA ESCOLA, autor e editor de materiais didáticos.
Acesse aqui a página especial do projeto Educação Financeira Transforma e conheça todos os conteúdos da parceria entre a Nova Escola e o Instituto XP.
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