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Sem trégua contra a evasão: toda a escola em ação para trazer jovens de volta

Exemplos na Bahia e em Pernambuco mostram que a busca ativa é essencial para não piorar as estatísticas de abandono e evasão alcançadas na pandemia

PorBeatriz Vichessi

04/07/2021

As fotos desta reportagem foram tiradas remotamente pela fotógrafa Tainá Frota, através de videochamadas com a aluna Crystal de Souza Ourives Lopez e seu filho Chrysthian.

A aluna Crystal de Souza Ourives Lopez, em sua casa durante sessão fotográfica remota.
Crystal de Souza Ourives Lopes é uma das alunas que voltou aos estudos graças à busca ativa do Colégio Estadual Seabra, na Bahia. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Crystal de Souza Ourives Lopez, 17 anos, estava em casa quando recebeu uma mensagem de WhatsApp da colega Carla Beatriz Santos Souza, também 17 anos, há cerca de dois meses. As duas estão matriculadas na mesma turma do Colégio Estadual de Seabra, no município de mesmo nome, na região da Chapada Diamantina, na Bahia. “Carla perguntava se estava tudo bem comigo e o motivo de eu não estar participando das aulas online”, conta Crystal.

Apesar de ser mãe de um bebê de apenas 10 meses, Crystal tinha dado conta da rotina de estudos até então, desde o ano passado. Mas o aparelho celular que a moça usava para assistir às aulas se quebrou depois de uma queda. A este problema se somaram a rotina de cuidar da casa, o cansaço provocado pelos afazeres do dia a dia e as novas responsabilidades, incluindo a amamentação do pequeno Chrysthian. Sem as obrigações escolares, ela diz, conseguia ficar mais concentrada para cuidar do pequeno e descansar um pouco ao longo do dia.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que traçou um cenário do setor educacional em 2019, dentre os motivos da evasão escolar de mulheres, a gravidez e a necessidade de trabalhar (ambas com 23,8%) aparecem pouco atrás da falta de interesse (24,1%). Depois, vêm os afazeres domésticos (11,5%).

“A mudança de realidade foi radical para mim, apesar de o bebê ser muito bonzinho e de minha mãe e meu marido me incentivarem a continuar os estudos. Porém, o celular quebrado foi o que faltava para eu parar de estudar na pandemia. Mas não foi um alívio, não. Fiquei preocupada e triste. Quero dar um bom exemplo para meu filho”, diz Crystal, que fazia planos para voltar às aulas assim que a pandemia acabasse.

Ainda bem que Carla Beatriz entrou em contato com ela: Crystal já tinha conseguido um novo aparelho celular e só precisava de um empurrãozinho. “Carla me incentivou e eu voltei. Estou fazendo as atividades impressas que minha mãe busca na escola e voltei a frequentar os encontros virtuais”, diz. Seguindo esse passo, a jovem vai concluir o 2º ano agora em junho, já que, devido à pandemia, o calendário escolar se estendeu por um semestre. Em agosto, ela inicia seu último ano do Ensino Médio.

A diferença entre abandono e evasão

O abandono se dá quando o aluno deixa de frequentar as aulas durante o ano letivo. É configurada evasão quando o aluno que abandonou a escola ou reprovou o ano letivo não se matricula no ano seguinte para dar continuidade aos estudos.

Crystal é um dos perfis do retrato multifacetado que ilustra o cenário de abandono e evasão escolar no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus. Apesar de não ter dificuldade no acesso à internet nem a um suporte que lhe permita assistir às aulas e fazer as tarefas, Crystal sofria com questões relativas à rotina de gente grande e se fiava na esperança insustentada de que as aulas retornariam em breve.

A aluna Crystal de Souza Ourives Lopez e seu filho de 10 meses, Chrystian, durante sessão fotográfica remota.
Mãe do pequeno Chrysthian, Crystal dava conta das aulas a distância até seu celular quebrar. Foi então que ela notou a rotina de mãe e dona de casa ficando pesada. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Como ela, existem muitos outros. Apesar de não serem apenas dados estatísticos – cada pessoa fora da escola tem nome e sobrenome, história de vida, sonhos e direito de estudar –, é inevitável destacar que esses indivíduos somam números alarmantes. De acordo com dados do estudo Cenário da Exclusão Escolar no Brasil − Um alerta sobre os impactos da pandemia da COVID-19 na Educação, do Unicef, o Brasil vinha avançando nos últimos anos, ainda que lentamente, no acesso à educação. Em 2019, eram quase 1,1 milhão de crianças e adolescentes em idade escolar obrigatória fora da escola no país. Com a pandemia da Covid-19, as desigualdades se acentuaram a ponto de, em novembro de 2020, mais de 5 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos não terem tido acesso à educação no Brasil – em especial meninas e meninos negros e indígenas, das regiões Norte e Nordeste.

A estratégia da busca entre pares

O papel de Carla Beatriz foi crucial para o retorno de Crystal. Carla é membro do projeto Caçadores de Pérolas, em que líderes de sala e alunos monitores entram em contato com os colegas ausentes e conversam com eles – via WhatsApp ou redes sociais (jamais presencialmente, conforme orientação da gestão, para não invadirem a intimidade de ninguém ou se exporem a riscos) –, explicando que eles fazem falta e incentivando-os, além de oferecerem ajuda para a retomada da rotina escolar. “A ideia é deixar claro que ninguém está atrasado demais a ponto de não valer a pena voltar às aulas”, conta Carla.

Realmente, acertar o tom da conversa é fundamental para conseguir engajamento. “É preciso pensar na vida da pessoa fora da escola, no possível cenário de vulnerabilidade, nas questões familiares… A escuta tem de ser acolhedora, jamais acusatória. Não faz sentido tomar atitudes fiscalizadoras”, explica Angelo Damas, especialista em educação e proteção à criança do Unicef, no escritório de São Luís. “A busca ativa escolar inclui repensar a relação da escola com o estudante e com a família e fazer uma reflexão sobre o currículo”, complementa.

A aluna Crystal de Souza Ourives Lopez, está com celular em mãos durante sessão fotográfica remota.
Já com um celular novo e ainda longe da escola, Crystal recebeu uma mensagem de Carla Beatriz, do projeto Caçadores de Pérolas. A colega incentivou Crystal a retomar as aulas. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

“Quando envolve alunos, a busca ativa é bem-sucedida porque os jovens se abrem com os colegas, falam coisas sobre as quais não se sentem à vontade para falar com os adultos. Antes de entrar em ação, eles recebem uma formação da gestão escolar para saberem como agir, até onde podem ir”, explica Teresa Cristina Abade, professora de Língua Portuguesa do Colégio Estadual de Seabra. “Nosso papel é identificar quem não está fazendo as atividades nem frequentando as aulas, organizar as informações junto à gestão e apoiar os líderes de turma e monitores. E eles nos acionam quando a solução necessária não puder ser encaminhada por eles”, diz.

O protagonismo juvenil é de fato um elemento potente para a busca ativa escolar. “Os jovens são mobilizadores e, quando professores e gestores trabalham em parceria com eles, a abordagem entre pares tende a ser muito bem-sucedida”, diz Angelo.

“Fora da escola, não pode!”

Este é o slogan da campanha do Unicef, que vigora desde 2017 para combater a evasão escolar. Agora, em tempos de pandemia, a campanha de busca ativa escolar ganhou força em todos os estados do Brasil. Municípios, secretarias de educação, diretores escolares, coordenadores pedagógicos e professores que quiserem apoio para fazer a busca ativa de alunos podem contar com a metodologia do Unicef. “Evidentemente, não se trata de um passo a passo fixo, rígido. Cada um vai adaptar as ações ao seu contexto”, explica Angelo Damas. “Precisamos levar os jovens de volta à escola, seja ela onde for e mesmo que esteja funcionando de formas diferentes das que conhecíamos”, reforça.

Para a busca ativa funcionar e ser uma ação contínua, o ideal é que o trabalho não seja solitário. Por isso, os arranjos com os aparelhos sociais e de saúde locais são essenciais para que ninguém fique sobrecarregado.

Professores na linha de frente

Dulcineia Amorim da Silva atuava como professora de Língua Portuguesa da EE Profa. Amélia Coelho, em Vitória de Santo Antão (PE), em 2020, e atualmente é diretora-adjunta da escola. Pouco antes do início da pandemia e da suspensão das aulas, ficou sabendo que um dos alunos do 3º ano estava enfrentando um dilema: ele queria passar para o período noturno e se matricular numa turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). O motivo é que precisava trabalhar, mas, por ainda ser menor de idade, não poderia.

“Nem tive tempo de continuar preocupada porque a pandemia chegou, a escola foi fechada e novos problemas apareceram”, conta Dulcineia. “Ele começou a fazer as atividades, mas logo parou. Como eu não tinha acesso às redes sociais dele nem o seu número de telefone, fiquei sabendo por uma vizinha que ele tinha começado a trabalhar. Quando as aulas parcialmente presenciais foram retomadas, em setembro, ele não voltou. Fiquei frustrada.”

O aluno em questão é Marivaldo de Lima Junior, 18 anos. Dulcineia fez o que pôde para entrar em contato com ele e mandou mensagens de incentivo para que voltasse. “Parei de fazer as atividades porque estava com dificuldade para organizar os estudos a distância e porque acreditava que voltaríamos à normalidade rapidamente”, diz Marivaldo, que acabou perdendo o ano letivo. “Na época das provas finais, antes de 2020 terminar, fui até a escola, e eles me deram todo o apoio para voltar e assistir às aulas antes dos exames. Mas fiquei preocupado: como daria conta das matérias, se não tinha estudado esse tempo todo? Acabei abandonando”, conta.

Apesar desses desencontros, Marivaldo se matriculou novamente em 2021 e está estudando presencialmente três vezes na semana e no formato online às segundas e sextas-feiras. Foi em conversas com professores e gestores da escola e com os pais que o rapaz encontrou razões para voltar às aulas com firmeza. E esse é o retorno que realmente conta pontos na luta contra a evasão. De nada adianta o jovem fazer a rematrícula se não mergulhar fundo nos estudos, ou seja, é a chamada matrícula de fluxo contínuo que sinaliza que tudo voltou a caminhar bem.

A aluna Crystal de Souza Ourives Lopez e seu filho Chrystian, durante sessão fotográfica remota.
Dividindo as atenções entre o bebê e os estudos, Crystal voltou a participar dos encontros virtuais e faz as tarefas impressas que a mãe busca na escola. Crédito: Tainá Frota/NOVA ESCOLA

Diversos alunos, assim como Marivaldo, desacreditaram da própria capacidade de se adaptar aos novos tempos, com aulas online e atividades realizadas a distância. Frente a isso, Verônica de Queiroz Dutra Souza, professora de Língua Portuguesa da escola Amélia Coelho, conta que os docentes e a equipe da gestão escolar se mobilizaram desde o início da pandemia para acolher e facilitar os horários de aulas dos estudantes que tiveram de arrumar bicos para contribuir com a renda mensal da família.

“Quem dá aulas consegue disparar o alarme primeiro, notar os sinais iniciais de quem não está conseguindo acompanhar as matérias ou está se desinteressando”, explica Dulcineia. Conforme reforça Angelo, do Unicef, a escola, por estar conectada com aparelhos sociais e de saúde, é um dos atores principais para combater a evasão dos estudantes nesta pandemia. Evidentemente, existem muitas questões externas que contribuem com o abandono e com a evasão: a escalada da violência doméstica, a gravidez na adolescência, o trabalho para ajudar a família, a falta de conectividade… Mas não se pode tirar os olhos da escola quando o assunto é o interesse dos jovens pelo estudo em si, o engajamento deles.

Para manter o vínculo, é possível lançar mão de muitas estratégias e inventar outras tantas. Flexibilizar o horário das aulas online, como foi feito na Amélia Coelho, oferecer outros conteúdos – impressos, disponíveis em podcasts, áudios de WhatsApp, slides digitais – para serem acessados offline e promover encontros virtuais para que os jovens conversem entre si sobre amenidades e matem um pouco a saudade da convivência entre pares. “Quando a aula online está terminando, os professores deixam que a gente converse pelo chat com os colegas, e é muito legal, parece que estamos na sala de aula de novo”, conta Crystal.

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