Educação Infantil: caminhos possíveis para trabalhar de forma não presencial
Campos de experiências e objetivos de aprendizagem da BNCC podem orientar as propostas. Ter o apoio das famílias e aproveitar a rotina e o contexto das crianças são essenciais no processo
Desde que a pandemia da covid-19 virou o mundo de cabeça para baixo, a Educação Infantil tem sido uma das etapas de ensino mais afetadas pelo distanciamento social. Isso porque a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças de 0 a 5 anos dependem muito da relação estabelecida entre elas e os professores no cotidiano escolar. Mesmo diante dos desafios impostos pelo ensino a distância, os educadores têm buscado maneiras de manter o vínculo com os pequenos.
No entanto, pensar caminhos possíveis para a Educação Infantil nessa situação requer algumas reflexões e pontos de atenção, de acordo com Beatriz Ferraz, psicóloga e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). O primeiro deles é lembrar que a interação é algo fundamental na construção de conhecimentos nessa fase da vida, uma vez que as crianças dessa faixa etária aprendem pela ação e não tanto pela “falação”, contexto que o ensino remoto torna mais restrito.
“No ensino remoto para a Educação Infantil, a interação está prejudicada, mas não inviabilizada. Isso porque quando o professor tem a oportunidade de encontrar as crianças online, por exemplo, ele está no mesmo tempo, embora em espaços diferentes em relação a elas”, pontua a psicóloga. Mas, mesmo nos encontros virtuais, as condições de trabalho com as crianças são mais complicadas. “É mais difícil de fazer a mediação para que os diálogos entre elas possam se encadear e trazer respostas responsivas dos professores”, comenta.
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A professora Chalimar da Rosa, finalista do Prêmio Educador Nota 10, edição de 2020, está sentindo essas dificuldades há mais de um ano. Educadora de crianças de 2 e 3 anos na Escola Municipal de Educação Infantil Vó Olga, em Mato Leitão (RS), ela diz que promover interações e brincadeiras entre as crianças é quase impossível no ensino a distância, mas que, mesmo assim, tenta se reinventar diariamente. “Do ano passado para cá, fui experimentando possibilidades, por meio da parceria com as famílias, criando rotinas via WhatsApp, para que nossos vínculos pudessem ser fortalecidos”, conta. O aplicativo tem sido o principal meio de contato dela com as crianças e seus familiares.
O mesmo acontece com a professora Elaine da Silva Santana, também finalista da edição do ano passado do Prêmio Educador Nota 10, mas em um contexto social fortemente impactado pela crise sanitária. Educadora na Escola Municipal de Educação Infantil Alceu Maynard de Araújo, localizada no bairro do Bom Retiro, em São Paulo (SP), ela trabalha com crianças de 4 e 5 anos e frisa que a situação socioeconômica da comunidade, que já não era favorável, piorou durante a pandemia.
Elaine conta que toda a adaptação para o uso do Google Sala de Aula, determinada pelo município, foi permeada por muitas dificuldades. Poucas crianças interagiram pela plataforma ao longo do ano, algumas por falta de acesso à internet e equipamentos, outras por falta de domínio da ferramenta, e as famílias não tinham condições de fazer esse acompanhamento. A interação e as propostas, que incluíam contação de histórias, músicas e mini documentários, passaram então a ser feitas por WhatsApp, o que garantiu maior alcance aos pequenos.
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Beatriz Ferraz afirma que o ensino remoto normalmente não seria uma opção para a Educação Infantil mas que, no atual cenário, é possível pensar em um ensino não presencial com foco nas vivências das crianças, seguindo os campos de experiências e os objetivos de aprendizagem previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“Quais são as experiências que as crianças vivem no ambiente familiar que são semelhantes àquelas que ocorrem no contexto escolar? Nós falamos que a escola é um lugar de aprender a viver a vida e, nesse sentido, levamos práticas para a escola que fazem parte da cultura da sociedade em que a criança está imersa. Mas essas práticas, muitas vezes, são similares às que acontecem em casa”, observa a especialista.
Como exemplo, ela cita a construção da rotina das crianças, que considera momentos que ocorrem tanto em casa como na escola, como banho, descanso, sono, brincadeiras e refeições. “Todos esses momentos são potenciais promotores de aprendizagem”, reforça.
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A psicóloga sugere que o professor faça um trabalho conjunto com os pais e responsáveis, no sentido de orientar as famílias sobre como elaborar com as crianças essa rotina no cotidiano para que possam ganhar cada vez mais autonomia. Isso também pode ocorrer na hora de organizar um espaço para guardar os brinquedos e livros, no momento das brincadeiras e contação de histórias, e também nas interações genuínas.
Ela diz que, nesse aspecto, a família tem um papel fundamental, mas o professor também deve levar em conta as diferentes realidades da comunidade onde atua. “Temos sempre que considerar com empatia e generosidade a condição dessas famílias, o que podem usar de elementos que existem em casa e, principalmente, a disponibilidade e a condição que têm para interagir com essas crianças nesse período”, observa.
Outra orientação importante é trabalhar com as famílias sem tentar colocá-las no lugar de professor. A interação com os familiares deve ser na perspectiva do que é possível propor a partir do que se tem em casa. “Outro ponto de atenção é tomar cuidado com o excesso de atividades que requerem a presença do adulto, o que, muitas vezes, tem gerado estresse e sensação de impotência nos pais”, comenta Beatriz.
Seleção do que é essencial neste momento
Em tempos de tantas incertezas sobre o que é viável ou não, olhar para a BNCC tende a ser um alívio para os professores da Educação Infantil, que encontram no documento um norte para suas práticas pedagógicas. De acordo com Beatriz Ferraz, o professor deve se embasar nas aprendizagens que a escola precisa garantir e verificar quais delas são possíveis de serem realizadas no contexto familiar.
Para isso, uma dica é se debruçar na Base e selecionar os objetivos de aprendizagens e desenvolvimento que as experiências familiares possam tornar possíveis de serem alcançados no dia a dia da criança em casa. “E podemos potencializar isso quando temos a oportunidade de conversar com os pais e dar algumas orientações de como agir”, recomenda Beatriz.
É o que a professora Chalimar tem feito com suas turmas. “No ensino remoto, não conseguimos alcançar todos os campos de experiências, mas tentamos ao máximo contemplar a maioria. As famílias têm sido peças fundamentais nesse processo e se comprometem em realizar as propostas enviadas para casa, todas muito simples, de fácil acesso e desenvolvimento para nossos pequenos”, conta. No contato diário, ela envia áudios, vídeos, sugestões de atividades e recados para os pais.
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Uma das atividades que ela destaca foi a que realizou com bebês, usando espelhos em casa. “Com os vídeos e fotos que as famílias mandaram, vi que conseguimos contemplar, mesmo a distância, aquilo que muitos dos bebês descobrem na escola, que é se identificar e identificar o outro.
Já com as crianças maiores, propostas que envolvem movimentos e conexão com a natureza são as que mais fazem sucesso, segundo Chalimar. Atividades como subir em árvores, escorregar em morros e brincar na terra -- aproveitando o contexto de estarem em uma cidade pequena, em que muitas casas têm quintais e árvores -- proporcionam experiências que seriam realizadas na escola e que favorecem o desenvolvimento das crianças.
“O indispensável tem sido manter o vínculo e a comunicação com as famílias. A partir desse contato, é possível planejar as ações de acordo com a realidade das crianças”, ressalta a professora Elaine. Para ela, toda a experiência do ano passado foi uma aprendizagem e, com isso, é possível se organizar para propor atividades mais interativas e variadas para as crianças, de acordo com os materiais de referência.
Dicas e propostas para conduzir o ensino remoto com as crianças
Veja algumas orientações e sugestões de atividades
- Mantenha a comunicação com as famílias. Estabeleça uma conversa com os pais e responsáveis de cada criança, se possível, uma vez por semana. A ideia é acolher as angústias em relação ao desenvolvimento dos pequenos e dar sugestões de atividades.
- Envie dicas frequentemente. Além da conversa com os familiares, alimente os grupos de WhatsApp com dicas de brincadeiras e sugestões. Por exemplo, dê uma recomendação aos pais de bebês, que estão no momento de exploração, de como eles podem estimulá-los a ter novas conquistas.
- Procure conhecer o contexto de cada criança e família. Isso é importante para poder pensar em propostas que as engajem. Se a criança mora na zona rural, o professor pode propor uma rotina de cuidados com os animais e plantas, junto com os pais, ou uma brincadeira de faz de conta que dialogue com o seu universo.
- Estimule as investigações. Jogos investigativos com perguntas provocativas que levam a criança a formular hipóteses ou ideias para responder algo podem ser bem interessantes. Por exemplo, a criança pode gravar sons que fazem parte do seu cotidiano e colocar no grupo, para os outros escutarem e tentarem adivinhar o que é. O professor também pode enviar alguns sons.
- Incentive a contação de histórias. Peça para as famílias lerem, se possível, pelo menos uma história por dia e brincarem com as crianças a partir do enredo. Sugira a montagem de cenários, o uso de fantasias e a atuação de todos os familiares presentes.