O circo que inclui todos na Educação Física
Fernanda Pedrosa de Paula trabalhou as práticas circenses e ampliou o repertório da turma, com o cuidado de garantir a inclusão de todos os alunos
01/01/2012
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Jornalismo
01/01/2012
O desejo de romper com práticas tradicionais foi uma das motivações de Fernanda Pedrosa de Paula ao introduzir o circo nas aulas de Educação Física. Ela iniciou o planejamento das turmas de 4° e 5° anos da EM José de Calasanz, em Belo Horizonte, com dois objetivos: ampliar o repertório de práticas da cultura corporal da garotada para além dos esportes coletivos e propor algo que representasse um desafio tanto para ela como para seus alunos, acostumados apenas a jogos de quadra. "Recorri, então, a memórias de infância e tive a ideia de explorar as modalidades circenses", diz a professora.
A proposta está em sintonia com as orientações mais recentes para o ensino da disciplina. A perspectiva atual valoriza práticas corporais ditas não convencionais. Em síntese, o que importa é propiciar o contato com manifestações diversas e ensinar a importância do trabalho em equipe e da convivência com diferentes pessoas - aspectos que foram contemplados no trabalho de Fernanda, a grande vencedora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10.
Graças a essas características, o projeto é um bom exemplo de que é possível desenvolver um tema como o circo sem necessariamente ser especialista no assunto. "O trabalho pode servir de referência para educadores de todo o Brasil interessados no mesmo conteúdo", afirma Fábio D’ Ângelo, selecionador do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10.
A professora deu início ao planejamento com uma pesquisa. Como não tinha vivência anterior com atividades circenses, Fernanda fez buscas na internet, leu artigos científicos e livros de referência, consultou fontes teóricas e assistiu a práticas registradas em vídeo. Só depois de ter mergulhado nesse universo, veio o momento de selecionar as modalidades que iria apresentar à garotada.
Para fazer a seleção, ela se baseou em uma premissa: não pretendia formar exímios artistas, mas propiciar o contato com práticas corporais da cultura circense. "Atividades simples e que não demandam conhecimentos técnicos dos professores são um bom começo nesse caso", afirma Marco Antônio Bortoleto, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Circus - Grupo de Estudos e Pesquisa das Artes Circenses, da mesma instituição.
Outro ponto a ser considerado: para que o projeto tivesse êxito, a realização dele tinha de ser viável no ambiente escolar. Por isso, as atividades deveriam exigir apenas materiais já existentes na escola ou que pudessem ser adaptados. Assim, ela optou por trabalhar com três eixos: manipulações, acrobacias e equilíbrio (leia o quadro abaixo). Depois disso, foi a vez de ajustar as modalidades escolhidas. Fernanda elaborou adaptações com o intuito de criar e explorar novas formas de realizar os movimentos tradicionais de modo a torná-los acessíveis aos alunos.
Modalidades acessíveis
Conheça práticas que podem ser facilmente executadas na escola
Manipulações
Exercício Malabares.
O que usar Balões de ar, bolas de meia ou feitas com jornal e fita crepe, lenços (ou pedaços de tecido) e arcos (bambolês).
Desenvolve Agilidade e coordenação motora.
Acrobacias
Exercícios Corda, estrela, cambalhota, rolamento e parada de mão.
O que usar Corda e colchonetes para amortecer o impacto das quedas e dar segurança.
Desenvolve Força e resistência musculares.
Equilíbrio
Exercícios Tambor e perna de pau.
O que usar Latões e latas de leite em pó com um furo de cada lado, por onde passa uma corda de náilon.
Desenvolve Equilíbrio e coordenação motora.
Consultoria Fernanda Pedrosa de Paula e Cristiane Cassoni
Pesquisa histórica como ponto de partida
Em classe, Fernanda propôs uma conversa inicial para saber o que os estudantes conheciam sobre o circo. Ao identificar que boa parte deles o associava apenas a palhaços e domadores de animais, ela percebeu a importância de apresentar mais práticas circenses, como as acrobacias e as manipulações. Esse primeiro momento serviu para que ela revisse alguns pontos do planejamento e o adaptasse em função das necessidades e dos interesses da garotada.
Uma pesquisa orientada na sala de informática da escola se seguiu a essa primeira etapa. Lá, a turma buscou informações sobre as modalidades circenses e sua história. Em seguida, Fernanda exibiu trechos de espetáculos da companhia canadense Cirque du Soleil (disponível em locadoras e no YouTube) que mostravam as manifestações a serem trabalhadas nas aulas. "Ao propor a pesquisa e a exibição dos vídeos, pretendia ajudar a turma a se aproximar do circo e conhecer sua evolução."
Só então teve início a experimentação das práticas. As aulas seguiam sempre a mesma sequência: numa roda de conversa, a docente expunha seus objetivos e explicava o movimento. Em seguida, a turma executava a modalidade apresentada. Ela circulava e indicava a necessidade de adaptações nos movimentos, e quem não conseguia realizá-los recebia ajuda. Por fim, em uma nova roda de conversa, a turma fazia um balanço do que havia aprendido.
Exercícios cada vez mais difíceis
Durante as aulas, Fernanda valorizava a participação de todos - como os mais e os menos habilidosos, os mais fortes e os mais fracos - de acordo com as possibilidades de cada um. Outra preocupação constante foi incluir as crianças com necessidades educacionais especiais (NEEs) - quatro alunos, entre 9 e 11 anos, com sequelas de hidrocefalia, paralisia cerebral e distrofia muscular progressiva.
A docente, que é pós-graduada em Atividade Física para Pessoas com Deficiência pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), costuma buscar informações sobre inclusão para amparar sua prática. Esse estudo permitiu a ela realizar boas intervenções, um destaque do trabalho. "Quando um projeto é bem planejado, ele naturalmente inclui todos os estudantes, inclusive os com NEEs’", explica Daniela Alonso, selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10. Levando em consideração o grau crescente de dificuldade e as características de todos os alunos, Fernanda definiu a ordem das atividades e a melhor forma de propô-las dentro dos três eixos.
- Manipulação O tecido tradicionalmente usado em atividades de manipulação foi substituído por tule, bem mais leve. Em outro momento, bolinhas de diferentes pesos e tamanhos foram usadas nos treinos com malabares. As crianças começaram com apenas uma, aumentando progressivamente o número delas durante o projeto. Enquanto isso, Victor Pereira, 12 anos, que tem distrofia muscular, manipulava um balão de ar preso a seu punho com barbante.
- Acrobacias Diante da impossibilidade de realizar exercícios na corda bamba, todos pularam corda. Daniel Rodrigues, 11 anos, que tem sequelas de hidrocefalia e é cadeirante, passou por baixo da corda quando ela era batida no ar três vezes (leia sobre essa adaptação no quadro abaixo). Em seguida, os exercícios de parada de mão foram feitos próximos à parede da quadra, que era usada como apoio pela turma. Aos poucos, todos foram abandonando o apoio e ganhando autonomia para arriscar outras manobras acrobáticas, como a estrela. Os cadeirantes não puderam participar das modalidades que envolviam saltos. Enquanto a turma fazia esse tipo de exercício, eles treinavam outras habilidades, como a corda, ou retomavam conteúdos das aulas anteriores, como a manipulação. Assim, cada um aprendia a seu tempo.
- Equilíbrio Os alunos andavam sobre o tambor com a supervisão de Fernanda, que ia na frente apoiando cada um. Já os cadeirantes deitavam sobre ele para experimentar as possibilidades oferecidas por esse aparelho.
Com o objetivo de retomar e consolidar os conteúdos já vistos, dois circuitos com atividades mescladas foram intercalados entre os exercícios de cada modalidade. No mínimo três práticas eram misturadas entre si (carrinho de mão, cambalhota e estrela, por exemplo). "Além disso, esse trabalho é fundamental para planejar ações individualizadas, pois permite observar as dificuldades e os medos das crianças. O ideal é misturar até dez modalidades em cada circuito", afirma Cristiane Cassoni, docente do curso de Educação Física das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e diretora da Acrobacia e Arte - Casa do Circo, ambas em São Paulo.
Novamente, todos participaram. Nos circuitos, as cadeiras de roda serviam de apoio para os pés dos colegas no carrinho de mão. Os cadeirantes também vivenciaram o contato com a bola, enquanto os demais a usavam como apoio para cambalhotas.
Para aprofundar o trabalho com essas modalidades, os especialistas sugerem duas alternativas: contar aos alunos a história do circo e convidar um profissional dessa área para conversar com eles. O artista pode apresentar sua experiência, suas técnicas e os procedimentos típicos dessa arte. "Assim, todos observarão que o que estão aprendendo tem pontos de contato com a prática real", afirma Bortoleto. Em ambos os casos, a intermediação do educador é fundamental. "Nada de deixar a turma solta", diz Cristiane. Tudo depende dos objetivos do trabalho e o professor deve ser responsável por realizar a aproximação pedagógica dessa atividade, de acordo com seu planejamento. "Na prática, isso significa, por exemplo, mediar o debate entre o artista e a turma e fazer adaptações da modalidade apresentada por ele, que pode ser bem mais elaborada do que o que foi visto em sala", completa ela.
Rotina de registros
Em seu diário de classe, Fernanda refletia sobre as flexibilizações realizadas, fazia ajustes em seu planejamento e definia os próximos passos do trabalho
Depois de cada aula, Fernanda escrevia sobre as atividades realizadas e planejava as próximas etapas. As flexibilizações também eram anotadas, bem como as dificuldades surgidas. Os resultados das discussões nas rodas de conversa também tinham destaque. Nesses momentos de debate, a professora valorizava a construção coletiva do trabalho. Todos podiam opinar e sugerir mudanças e adaptações. Em algumas ocasiões, esses debates geraram soluções alternativas que foram registradas no diário da professora e retomadas em outros momentos do projeto. Um exemplo foi a sugestão dada pela turma diante de um desafio colocado por ela: o que fazer para que os alunos cadeirantes participassem das atividades que envolviam a tarefa de pular corda? A turma deu a ideia de bater a corda três vezes no chão e três vezes no ar. Assim, o colega teria tempo suficiente para atravessá-la com sua cadeira de rodas, passando por baixo enquanto ela estivesse no alto. "Achava que não ia passar, mas consegui!", diz Daniel Rodrigues, 11 anos, sorrindo. O procedimento de registro adotado por Fernanda sugere sua preocupação em sistematizar cada ação. Também mostra uma prática docente que valoriza as interações entre os estudantes e incentiva a participação deles na tomada de decisões. Ao fim do projeto, o diário também ajudou na avaliação de todo o percurso. "Analisando essas anotações, notei que poderia aprimorá-lo se o realizasse novamente", diz Fernanda.
Um universo de novas aprendizagens
Ao fim do trabalho, a turma toda realizou uma apresentação para a comunidade escolar. Nesse momento, ficou claro que tinha avançado em seu conhecimento, passando por uma série de novas aprendizagens graças à pesquisa e à prática de modalidades circenses diversas. "As crianças desenvolveram novas habilidades motoras", comemora Fernanda. Elas também conquistaram mais força, agilidade e equilíbrio. Aprenderam atitudes de cooperação e respeito pelo outro e de auto- conhecimento sobre suas potencialidades e suas limitações. "O projeto valorizou as aulas como um espaço voltado a uma prática corporal da qual todos podem participar, independente de sua condição", avalia D’Ângelo. Além disso, a garotada entendeu que o circo é uma manifestação cultural que vai muito além dos antigos espetáculos com palhaços e animais, como supunha no início.
A história do circo
As primeiras manifestações circenses de que se tem notícia foram registradas há mais de 3 mil anos em pinturas encontradas na China. Elas retratavam acrobatas, contorcionistas e equilibristas. Registros do gênero também foram localizados no Egito, na Índia e na Grécia antiga. Algumas modalidades, como as acrobacias, chegaram a ser incluídas em jogos olímpicos disputados na Antiguidade. Os espetáculos gregos foram levados para Roma, onde integraram o regime de entretenimento implantado pelos governantes, que ficou conhecido como "política do pão e circo". Eles eram apresentados em anfiteatros e despertavam grande interesse do público. O declínio do Império Romano levou à diminuição do interesse da população por apresentações dessa natureza. Os artistas viram-se obrigados a perambular por ruas, praças, feiras e outros locais com concentração de pessoas, apresentando números de equilibrismo e mímica, entre outros. Nasciam assim os saltimbancos. Já na Idade Média, com a religiosidade crescente, eles passaram a ser discriminados. Surgiu, então, a necessidade de rumar de cidade em cidade à procura de oportunidades. No século 17, começaram a se apresentar em barracas cobertas por lonas, que funcionavam como palcos improvisados. Na Inglaterra do século 18, nasceu o circo de picadeiro circular que conhecemos hoje. Exibições de cavalos eram alternadas a números de palhaços e malabarismo. Leões, serpentes e elefantes eram uma grande atração na época, assim como apresentações de anões e mulheres barbadas. Isso prevaleceu até meados do século 20, quando, progressivamente, as antigas atrações foram sendo substituídas por modalidades que privilegiam outras formas de expressão artística, como a dança e o teatro.
Fonte Cristiane Cassoni e Marco Antônio Bortoleto
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